Mojubá: Uma viagem pelo imaginário dos orixás no Brasil de hoje

Primeiro romance de Claudio Daniel será publicado em março pela editora Kotter

Mojubá, primeiro romance do poeta, escritor e professor de Literatura Claudio Daniel, é ambientado na época atual, marcada pela crise política, intolerância religiosa, racismo, violência contra mulheres e homoafetivos. O livro será publicado em março pela editora Kotter.

Os personagens principais do romance são os orixás da cultura afro-brasileira, apresentados em ocupações como as de advogado (Xangô), serralheiro (Ogum), dançarina (Iansã) e secretária (Oxum). A narrativa principal é mesclada a várias outras narrativas, nas quais são contadas a origem, atributos e ações mais conhecidas de cada orixá, ambientadas nos dias de hoje, envolvendo ainda a questão ambiental, as crises de saúde pública e outros temas do Brasil de hoje.

Abaixo, o Prosa, Poesia e Arte publica um trecho do romance:

   Jerônimo gostava de caminhar na Praça Antônio Prado, nas imediações do mosteiro beneditino, no intervalo do almoço ou na volta do trabalho para casa. A igreja de São Bento, aliás, recebeu a contribuição de um arquiteto negro, conhecido como Tebas, no século XVIII: foi ele quem fez a ornamentação da fachada da antiga igreja do Mosteiro de São Bento e planejou a construção do Chafariz da Misericórdia, o primeiro chafariz público da capital paulista. Hoje, ninguém sabe disso, porque foram obras de um negro, de um coisa-nenhuma, um joão-ninguém. O senhor está interessado nessas antigas histórias? Acho que não, vamos voltar a falar de Jerônimo. Ele perambulava entre os coretos, o antigo relógio vertical de três faces, o chafariz, os jardins descuidados, os vendedores ambulantes, os moradores de rua, os imigrantes haitianos e os meninos que fazem samba fumando cigarros de canela. Às vezes, parava e conversava com algum conhecido na cervejaria, na revistaria, na sapataria, ou então caminhava até o Café Girondino para tomar um capuccino, abrir o jornal e ler as mentiras do dia, ou então seguia por uma das pequenas ruas do centro até achar um lugar para comer tapioca com leite condensado, essas pequenas delícias. Depois, caminhava pelo Largo do Patriarca, onde bolivianos vestidos com plumas de pássaros tocam flautas de bambu, passava pelo Viaduto do Chá, onde mulheres muçulmanas exibem belos lenços coloridos cobrindo os cabelos, pelo Theatro Municipal, com seu jardim cheirando a ópera e urina, e pela rua Barão de Itapetininga, onde barracas de senegaleses vendem tecidos, brincos, colares, máscaras e estátuas de madeira. Então, entrava na rua Ipiranga, onde mendigos dormem com seus cães na calçada em frente à casa de câmbio e finalmente encontrava Bárbara, que devia estar bebendo o segundo ou terceiro copo de cerveja artesanal, sentada num degrau da Praça Roosevelt. Os dois andavam de mãos dadas até o mercado árabe do Seu Mustafá e Dona Yasmin, onde compravam coalhada seca, homus, babaganush, patê de azeitona preta, pão sírio e uma garrafa de vinho shiraz, para a refeição noturna.

   Quando chegavam em casa, os dois se sentavam na pequena mesa redonda de madeira, no centro da sala, e preparavam as delícias: dispunham os pães, os patês e os frios em travessas, abriam o vinho, brindavam, comiam, contavam um para o outro as acontecências, depois começava o jogo amoroso do pavão: ele alisava as pernas de Bárbara, tirava as meias compridas dela, os sapatos de salto alto, acariciava seus pés, levantava da cadeira, ficava atrás da moça e beijava seu pescoço, boca e tetas com beijos de sua boca acendendo o lumaréu, como canta Salomão no livro do cristão. A menina-tempestade, guria-ventania, recebia o carinho de seu macho, transformada em búfala-da-espuma-das-águas-do-rio. Oiá vem com o vento, vem e revém, mãe do meu pensamento. Mulher-animal faz amor amar e medo sentir medo. Eeparrei! Come pimenta vermelha. Dança com pés vermelhos. Olha com olhos vermelhos – como se quebrasse cabeças. Mulher-animal dona do raio e do vento – aquela que vem dançando aquela que vem dança-dançando aquela que vem dança-noite-dançando. Oiá ô! Afefê Ikú Funã, cantava voinha Nanã para Yansã, em Cruz das Almas.

   Exu Mojubá! Num sábado de manhã, no mês de julho, meu mano e sua mina foram ao bairro da Liberdade, no dia do Tanabata Matsuri, o Festival das Estrelas, celebração do encontro dos amantes-que-são-estrelas. O senhor conhece a lenda? Contam os velhos japoneses que a princesa-tecelã Orihime, mulher-estrela-de-vestido-verde-como-o-jade, passeava no rio-de-branca-luz-da-via-láctea quando viu o pastor-dos-rebanhos-do-céu Hikoboshi, moço-luzeiro-azul-safira, e os dois se apaixonaram, no alucinar do desvario. Isso foi nos dias-do-dragão-de-prata, nas noites-do-unicórnio-de-ouro. Um só pensava no outro, na pele-olhos-lábios do outro, só queriam ficar no juntinho-do-perto-um-do-outro, em amor-de-amor, e assim se esqueceram de suas lides. A princesa-tecelã não trabalhava mais na roda de fiar, o príncipe-pastor abandonou seus rebanhos nas terras-azuis-do-céu e os dois ficaram assim, estranhos-estranhados-na-encantação. Até que o pai da princesa alucinada, Tentei, o Senhor Celestial, notou que a princesa-da-neblina ficou muito preguiçosa e quis saber o motivo. Quando o soberano-do-céu viu os amantes-em-amor-no-se-amando, num dos terraços azulados da luz áurea, ele entendeu o que se passava. Como punição aos apaixonados, ao ele-transformado-em ela e à ela-transformada-em-ele, o rei-soberano-das-cascatas-do-céu separou os dois amantes, obrigando-os a morar em lados opostos da Via-Láctea. A separação trouxe infinita tristeza ao ele-fauno-luzeiro e à ela-ninfa-tenin, que derramaram lágrimas-de-névoa-e-nuvem, até que o soberano-das-águas-aéreas, em seu trono de pérolas, sentiu o pesar da punição e compensou os jovens namorados, que receberam permissão de se encontrarem uma vez por ano, no sétimo dia do sétimo mês do calendário lunar.

   Como retribuição ao favor celestial, o casal-da-via-láctea deveria atender a todos os pedidos feitos pelos mortais no dia desse encontro. Assim nasceu o Tanabata Matsuri. Durante a festa, as ruas e praças do bairro oriental da Liberdade são decoradas com grandes ramos de bambu, ornados com enfeites de papel colorido que representam as estrelas-amantes. As pessoas que participam da festa escrevem seus pedidos em pequenos pedaços de papel, chamados tanzaku, que são pendurados nos bambus, para serem lidos por Orihime, a princesa-tecedeira, e por Hikoboshi, príncipe-pastor, em suas núpcias celestiais. Jerônimo e Bárbara fizeram os seus pedidos e circularam pela Liberdade, ouviram a música dos tambores taiko, assistiram às danças típicas, viram lutas de espada samurai e outras artes marciais, compraram amuletos xintoístas e por fim almoçaram anchova grelhada com legumes e arroz num restaurante japonês. Antes de irem embora, visitaram a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, localizada entre a rua Galvão Bueno e a rua da Glória, em cujo cemitério eram sepultados os corpos de escravos, indigentes, pessoas que morreram de doenças contagiosas e os condenados à forca, os supliciados. A Praça da Liberdade, naqueles tristes tempos, tinha outro nome: era o Largo da Forca. Os condenados continuaram a ser enterrados no Cemitério dos Aflitos, localizado junto à capela, até a aprovação de uma lei que proibiu os sepultamentos no espaço das igrejas. Bárbara e Jerônimo, comovidos, rezaram para que mamãe Yansã levasse as almas dos sofredores para o Orum-Além-Céu, depois se levantaram e foram para casa.

   No dia seguinte, Jerônimo foi à Faculdade do Largo de São Francisco, participar de um ato em homenagem a Marielle Franco, a vereadora carioca, mulher, lésbica e negra, morta por milícia de fascistas. O ato, organizado pelos estudantes de Direito, incluía um ato religioso ecumênico, com sacerdotes cristãos, budistas, muçulmanos, da umbanda e do candomblé, a projeção de um filme sobre a moça-negra-da-favela-que-incomodou-o-capitão e no final o número musical de um conjunto feminino de tambores. Na hora do evento, porém, oh minha loucura, aconteceu o insano inesperado: jovens truculentos, vestidos com botas de montaria e trajes de cavaleiros medievais invadiram a faculdade, picharam suásticas nos muros, bateram nas moças que tentaram conversar com eles e invadiram o auditório com porretes e armas de fogo, para impedirem a celebração. Jerônimo, moleque-fogaréu, aquele-que-nunca-fugia-de-uma-briga, entrou no rebuliço do alvoroço para defender os estudantes; trocou socos com os desajustados, derrubou o primeiro, derrubou o segundo, se jogou contra o terceiro, jogando capoeira-de-angola, e caiu, com um tiro de revólver no ombro; a bala passou de raspão, mas o sangue avermelhou sua camisa. Outros tiros foram disparados para o alto, oh minhas alucinações, e a multidão se dispersou, no corre-corre do pavor-assombro-desbrio. Viaturas chegaram mais tarde, após a fuga dos arruaceiros, e os policiais prenderam cinco estudantes que protestavam contra a violência por desacato às autoridades. No dia seguinte, o diretor da faculdade foi intimado a ir à delegacia para prestar depoimento e recebeu ameaças anônimas de morte pelo telefone, por promover atividades contra a moral da família brasileira e promover a subversão comunista.

      Assim é o Brasil desses tempos-cérberos-tempos-de-plutão-e-prosérpina.

      A porteira dos infernos se abriu, no-depois-do-acontecido: Azazel, Abalam, Alastor, Asmodeus, Astaroth, todas as coisas medonho-lazarentas saíram dos buracos-de-tormenta-do-capeta-de-chifre-furado, das tocas-de-corno-do-grande-cão. Em crocitar de gralhas, marcharam pela Avenida Paulista, na arribação de amência. Os cramunhões-da-terra-debaixo-da-cova desfilaram em trios elétricos e carros de som com camisetas e bandeiras verde-amarelas, oh minha loucura, mulheres de seios desnudos levavam cartazes em defesa da família e contra a corrupção, arlequinal, arlequinal. Pastores evangélicos vociferavam salmos e versículos em microfones, amaldiçoando gays, feministas e macumbeiros, que iriam para o inferno dos behemoths, oh minhas alucinações. À frente do cortejo, uma senhora idosa, em cadeira de rodas, levava um cartaz que dizia: MARIELLE MERECEU MORRER. Colunas de policiais militares protegiam o desfile desvairado, saudados com vivas à polícia. Uma moça que caminhava na Paulista, saindo de seu local de trabalho, foi xingada e agredida pelos insanos, por usar vestido vermelho, e uma senhora de peruca loura e óculos escuros gritava que ela devia ser estuprada e morta, por ser comunista e puta. A loucura foi até o final do dia, quando os desatinados cantaram o hino nacional em frente ao prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a FIESP, que apoiou o movimento golpista que derrubou a presidenta Dilma. Os amalucados-da-terra-debaixo-da-cova assumiram um nome-de-guerra: eles eram OS PATRIOTAS e publicaram vídeos de suas ações no Instagram, Twitter e Facebook.

   Meu neto, meu neto, você acredite: naqueles dias, era assim-a-insânia.

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