As narrativas de Emilianinho não lhe causaram espanto e orgulho. A eloquência sempre esteve presente naquele menino
Publicado 27/12/2020 09:21 | Editado 28/12/2020 11:10
Seu Emiliano José da Silva não gostava muito de pensar no passado. Achava que o passado não existe porque já passou e o futuro não existe porque não chega nunca. Tudo que há é o presente. O mais importante é viver o agora, sem olhar pra trás, filosofava em silêncio, no pensamento, porque não era de muitas palavras. Mas, após morrer, concluiu que a morte muda tudo. Então, ávido, leu letra por letra, palavra por palavra de O Cão Morde a Noite, autobiografia de Emilianinho, seu filho.
A morte muda tudo. Até os mortos. Mas não mudou naquele homem rígido a convicção de que devemos fazer o que os instintos mandarem sem dar bolas para o que outros pensam. Trata-se de uma espécie de militância em prol da liberdade e do bem-estar individuais. Mesmo que isto fira indelével e profundamente outras pessoas, inclusive aquelas que amamos.
A leitura atenta do livro mordeu-lhe fundo desde o começo. Forçou o pensamento acomodado, ajudou-o a auto decifrar-se. Seu Silva viu, então, sair das letras um ser de que sequer suspeitara. Era um homem forte, adubado pelo destemor e avidez da busca por prazeres surpreendentes. Só um filho puxou a ele: Antonio Carlos (Cal).
As narrativas de Emilianinho não lhe causaram espanto e orgulho. A eloquência sempre esteve presente naquele menino. Seus silêncios divagadores às vezes pareciam sermões. Jamais esquecera aquele olhar do mordido pelo cão, do infante no cavalo prestes a superar o obstáculo intransponível. E do rapaz, dentes de polícia nos pés, mergulhando na irresoluta noite do seu sonho coletivo.
O que espantava e permitia orgulhar era o manejo com as palavras. No princípio, eram as águas contidas em um dique. Presas e hesitante. De repente, o verbo se desprega do temor. Revolta-se como pororocas. Não escorre: debate-se, contorce em toda fibra e vigor até explodir em cores – vermelho do sangue das torturas, negro da noite escura acolhedora dos peregrinos; em sabores – do pão com caneca de café preto à milagrosa comida de dona Conceição, no bairro da Saúde; em sons – sonhados, como os acordes do acordeom e a viola enluarada da sua íntima trilha sonora, e concretos tal qual o imponente Elvis de pélvis dissonante para a caretice xenófoba da esquerda pré-tropicalista.
Ultrapassado o estágio do verbo prisioneiro, a gramática se revela pequena para traduzir o que Drummond chamava de o sentimento do mundo. As vírgulas são desprezadas ou viram alvo de desprezo até o sacrossanto ponto perde sua divindade para dar conta das emoções. É chegada a hora, além da vez, de matracar. Não como um palrador. Ou o antigo e robótico datilógrafo do Banco Comercial do Brasil.
Mais como um psicógrafo de si mesmo. Autopsicografia no sentido de Fernando Pessoa; Olhos fechados, alma (s) aberta (s) para o essencial, o mais profundo, o mais bonito, o mais aterrador, o mais vívido e vivido.
Em discreta, mas certeira metamorfose, o narrador encarna a mãe, Maria Aparecida Barbosa da Silva, a forte, que admira o pai tanto quanto se irrita com as paixões irrefreadas do sedutor. O processo camaleônico avança para as irmãs e irmãos. De Picida, que chama para si o papel de reunificadora da família, a Edvard, o mais novo dos homens, e deste a Cal, de quem pouco se sabe. É um honesto e fecundo mergulho no passado do menino de Jaçanã e outras paragens. Em busca de si mesmo, dos seus pais, do seu País.
Ainda há pedras no caminho do texto, é claro. Uma delas tenta inútil conter a aspereza das pinaúnas nos pés descalços: a exagerada retórica do baianês. Na boca ‘estrangeira’, mesmo que quase aclimatada, soa estranho. Mas, porra nenhuma, esses percalços são insuficientes para nublar a luminosidade do sendeiro.
A vida não é reta. O significado é impreciso até para os crentes na redenção. Impreciso como a verdade. E este parece ser um dos grandes pontos do texto. O detour marca a narrativa do agora imortal Emiliano José. As dúvidas valem mais do que as certezas. Há um gesto generoso e talvez sábio quando ele vê “sensibilidade”, humanidade mesmo, em algumas almas no cenário infernal onde vicejam a bestialidade do opróbrio e da tortura. Nem todos os gatos são pardos. O sargento Pádua, “um negro muito forte”, destaca, “era incapaz de qualquer violência”. A frase acabaria aí se a dúvida não fosse o nome da verdade. Então emenda: “Ao menos conosco”.
O livro vai além, muito além, dos conosco e nosotros. Aponta para uma perspectiva coletiva, sem desprezar a saída individual tão dimensionada pelo Seu Silva e o enigmático Cal, que morreu aos 29 anos. Relata a história recente do Brasil, com destaque para a Ação Popular, importante organização na luta contra a ditadura militar. Expõe virtudes e equívocos e dimensões da entidade, que conquistou corpo e alma de muita gente, especialmente jovens na encruzilhada dos caminhos da paz e amor e da ação política tradicional, que contemplava até a luta armada.
Sem expressa militância, destaca o papel das mulheres na sua família e na humanidade. Revela dramas religiosos e moralistas da sexualidade na esquerda, abrindo-se ao entendimento LGBTS de que vale a pena toda forma de amor.
A despeito de tanta dor, ou exatamente por isso, reafirma a política como saída única para a sociedade humana e o polêmico credo da liberdade como bem universal. E mantém integral e triunfante a esperança no idealizado amanhã.
Seu Silva chega ao fim da leitura, mas retrocede à página em que Emilianinho lembra que, às vezes, ele e o pai, choravam na escuridão. “O choque da realidade o atormentava”, interpreta o filho. Seu Silva pensa na vida e debocha da morte. Satisfeito, sorri. E fecha o livro.
Publicado originalmente no site Bahia Notícias
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