O resgate

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Foto: Ana Mary C. Cavalcante

Por esses dias, tem uma imagem atravessada no meu pensamento: o resgate da menina turca Ayda Gezgin, de três anos, soterrada sob os escombros de um prédio, em uma cidade da Turquia, na costa do mar Egeu. O local foi atingido por um terremoto, no dia 30 de outubro deste ano; pelo menos cem pessoas morreram.

A criança passou 91 horas – quase quatro dias – em um vão mínimo, excepcionalmente formado entre concreto, ferro, eletrodomésticos. De acordo com relatos dos socorristas, Ayda não sofreu ferimentos graves. Coberta por poeira e destroços, quando foi encontrada, a menina tinha apenas os olhinhos acesos, bem abertos, e uma das mãozinhas livres – que, nas imagens divulgadas, segura a mão do bombeiro, nos primeiros momentos do resgate. Um dos socorristas contou, a repórteres, que ouviu a voz da criança surgir de um pequeno buraco, naquela montanha de escombros.

As notícias destacam a resistência da menina, que sobreviveu à fome, à sede, à solidão, aos medos, a toda e qualquer incerteza daquela situação extrema. Algumas matérias informam também que, ao ser encontrada nos escombros, Ayda perguntou onde estava seu pai e afirmou que ela mesma estava bem. E ainda que gostaria de comer “köfte e ayran” – almôndegas turcas e uma bebida de leite fermentado, típicos da região.

Neste período de isolamento social, imposto pela pandemia de covid-19, e de outras distâncias, causadas pelo desamor, eu tenho me demorado no jardim de casa, garimpando manhãs.
Foto: Ana Mary C. Cavalcante

O resgate de Ayda foi muito aplaudido e emocionante até para quem o teve, por segundos, na televisão. Foi lindo ver aquele parto do cinza, do nada. O belo sempre nos toca. Especialmente, neste ano tão marcado por perdas – de vidas (pela Covid-19 e outros males), de relacionamentos, de perspectivas -, eu guardo o resgate da pequena menina estrangeira comigo.

Eu não sei o que significa o nome “Ayda”, em turco, mas, neste novembro, quando um ano inteiro ainda não aconteceu, o resgate dela quer me dizer sobre “esperança”. Uma tradução possível de uma força vital, uma força de última hora.

Por esses dias, no Brasil do “e daí?”, país radicalmente dividido entre ódio, indiferença e resistência, também andamos em socorro da esperança, soterrada na imensidão das desilusões que sofremos como Nação, coletivamente. O amor pelo próximo, a fé diversa, a alegria de nascença estão escombros, neste momento de pandemia, de corrupção descarada, de violência normalizada.

“Salve-se quem puder” é uma sentença que se repete, na história do Brasil, proferida pelos podres poderes ao longo dos séculos. E ela se mostrou, uma vez mais, espelhada pelos discursos do presidente eleito dos EUA, Joe Biden, e da vice-presidente, Kamala Harris, na noite em que comemoraram a conquista do governo daquele país.

Kamala, mulher, negra, imigrante e advogada (a inversão é porque vivemos a realidade invertida; a capacidade de um ser humano quase nunca é dita antes de sua categorização) declarou, por exemplo:

(a democracia) é tão forte quanto nossa vontade de lutar por ela, de protegê-la e nunca tomá-la como garantida. E proteger nossa democracia exige luta e sacrifício, mas há alegria nisso. E há progresso, porque nós, o povo, temos o poder para construir um futuro melhor.”;

“Por 4 anos, vocês marcharam e se organizaram pela igualdade e justiça, por nossas vidas e por nosso planeta. E, então, vocês votaram. Vocês deixaram uma mensagem clara. Vocês escolheram a esperança, a unidade, a decência, a ciência e, sim, a verdade.”

“Joe é alguém especializado em curas. Um unificador. É experiente e firme. Uma pessoa cuja própria experiência de perda lhe dá um senso de propósito e que nos ajudará, como nação, a recuperar nosso próprio senso de propósito.“

“Então, estou pensando nela (mãe, a imigrante indiana Shymala Gopalan Harris) e nas gerações de mulheres negras, mulheres asiáticas, brancas, latinas e nativas americanas, ao longo da história de nossa nação, que pavimentaram o caminho para este momento esta noite. Todas as mulheres que trabalharam para garantir e proteger o direito ao voto por mais de um século.”

“Eu posso ser a primeira mulher neste cargo, mas não serei a última. Porque cada garotinha que está assistindo esta noite vê que este é um país de possibilidades.”

“Agora é quando o verdadeiro trabalho começa. O trabalho duro. O trabalho necessário. O bom trabalho. O trabalho essencial para salvar vidas e vencer esta pandemia. Para reconstruir nossa economia, para que ela funcione para os trabalhadores. Para erradicar o racismo sistêmico em nosso sistema de justiça e sociedade. Para combater a crise climática. Para unir nosso país e curar a alma de nossa nação.”

Joe Biden, homem, branco, advogado e político vivido também foi eloquente:

“Prometo ser um presidente que não busca dividir, mas unir. Que não vê estados vermelhos e azuis, mas os Estados Unidos. E que trabalhará com todo o seu coração para conquistar a confiança de toda a população.”

“Como eu já disse muitas vezes, sou o marido de Jill. Eu não estaria aqui sem o amor e o apoio incansável de Jill, Hunter, Ashley, todos os nossos netos e seus cônjuges e toda a nossa família. Eles são meu coração.
Jill é uma mãe – uma mãe militar– e uma educadora. Ela dedicou sua vida à educação, mas ensinar não é só o que ela faz – é quem ela é. Para os educadores da América, este é um ótimo dia: vocês terão uma de vocês na Casa Branca.”

“Agora vamos dar uma chance uns aos outros. Está na hora de pôr de lado a retórica dura. De baixar a temperatura. De vermos uns aos outros de novo. De escutarmos uns aos outros de novo.”

“Para progredir, precisamos parar de tratar nossos oponentes como inimigos. Não somos inimigos. Somos americanos.”

“Nosso trabalho começa por controlar a covid. Não podemos reparar a economia, restaurar nossa vitalidade ou desfrutar os momentos mais preciosos da vida, abraçar um neto, aniversários, casamentos, formaturas, todos os momentos mais importantes para nós, enquanto não tivermos esse vírus sob controle.”

“A história americana tem a ver com a lenta, mas constante ampliação das oportunidades. Não se enganem: muitos sonhos foram retardados por um tempo longo demais. Devemos tornar a promessa do país real para todos, não importa sua raça, etnia, religião, identidade ou deficiência.”

“E nós somos um bom povo. (…) E nunca houve nada que não conseguimos fazer quando o fizemos juntos. Com corações plenos e mãos firmes, com fé na América e nos outros, com amor pelo país – e sede de justiça –, sejamos a nação que sabemos que podemos ser. Uma nação unida. Uma nação fortalecida. Uma nação curada.”

O valor da democracia (como ação), o diálogo entre as diferenças, a conciliação, a pacificação e a cura unem os discursos da vice e do presidente eleitos dos EUA.

Noves fora a retórica necessária à política e as peculiaridades da história norte-americana, essa fala estrangeira me disse o que eu precisava ouvir neste momento inacreditável do mundo, quando os propósitos se descarrilharam do tempo. Nós, os brasileiros, é que precisávamos ouvir tudo isso; é que precisamos de um governar – mais leal e sábio – que nos (re)afirme, honestamente, tudo isso, algum farol que nos conduza a tudo isso. Amor, igualdade, fraternidade. Justiça, dignidade, oportunidade. Sonhos, fé, recomeços. Respeito, compaixão, empatia. Saúde e paz. Nós estamos distantes de tudo isso.

Estamos perdidos: nós nos desencontramos uns dos outros e das referências. A politicagem não nos representa. Estamos, profundamente, machucados com as desilusões que desabam sobre nós, desde quando nos sabemos brasileiros. Historicamente, não somos um povo feliz e isso nos custa muito. Barganham nosso acreditar. Temos apenas os fevereiros e o time de futebol; é muito pouco diante do que merecemos, humanamente, ter.

Para mim, que sempre acreditei no bem maior, é difícil escrever esse contrário. Mas é preciso reconhecer o mal, para conhecer a cura. É mesmo um processo de depuração, na escrita e na vida.

Foi nesse cruzar uma e outra – escrita e vida – que, por esses dias, antes que o ano não existisse, o resgate da menina turca Ayda Gezgin aconteceu. A esperança é assim: acontece quando tem que acontecer, ignora a lógica tempo. Ayda personifica, para mim, a imagem da esperança: uma menina encontrada onde só havia destroços e que, mesmo sob a morte de tudo o que desabou, escapa sem ferimentos graves. Sim, a esperança é remediável. E tem fome de viver o bom viver.

Essa menina tão frágil quanto resistente a toda e qualquer incerteza espera ser resgatada a qualquer hora. Já nem sei se escrevo sobre Ayda ou se sobre Esperança, o que sei é que ambas mantiveram os olhinhos acesos, na escuridão da procura, para iluminar o caminho até elas, e acenavam de dentro para fora. Também a voz de Ayda, ou seria da Esperança?, guia os bombeiros na pergunta: onde está meu pai? A resposta: está em cada um de nós – juntos, nesse resgate. A mão do socorrista na qual a menina se agarrou, e que agarrou a menina, é a mão da humanidade. A Esperança precisa de nós, tanto quanto nós precisamos dela.

A lição da natureza: sempre haverá o tempo de nascer. l Foto Ana Mary C. Cavalcante
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Um comentario para "O resgate"

  1. Rafaela disse:

    excelentes dicas, sempre objetivo,conteúdo exemplar.

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