O texto que escrevo ao tempo

Só podemos compreender o que se passa dentro de outra pessoa quando nos mudamos para ela.

Este é um texto que me faltava; é um entendimento que escrevo, particularmente, ao tempo. Talvez este texto não seja tão útil a vocês, companheiras e companheiros, porque não tenho a intenção de falar, aqui, sobre jornalismo. E nem saberia, pois estou entre aqueles que me ensinaram, na prática, o complexo ofício de mudar o mundo e a delicada função de tecer a vida.

Nesta escrita desmedida, sem deadline ou forma, a intenção maior é abraçar cada um de vocês da maneira que as palavras podem abraçar: anulando distâncias, realizando trocas, reescrevendo a mim e o outro a quem abraço, existindo diante de tudo o que passa. Pensando agora, sendo, a palavra, matéria-prima do jornalismo, talvez, o jornalismo seja também sobre abraços.

E este é um texto que escrevo ao tempo com o ingênuo, mas firme, propósito de reter os instantes – destino recorrente dos textos que escrevo. Uma sina parecida com aquela que a areia da praia tem, de guardar o mar. Para mim, escrever sempre foi a chance de guardar o tempo. Pensando agora, sendo, o jornalismo, o primo ousado da história, talvez ele seja também a subversão da própria natureza – perecível – ao querer fabricar o eterno.

Por me meter a escrever, eu possuo um inventário de instantes que me refazem, me restauram. Tenho camadas e camadas de encontros, e da vida dos outros, e de perguntas, e de respostas, e de perguntas, e de chegadas, e de partidas, e de chegadas…

Sou, por exemplo, o primeiro dia em que desembarquei aqui, com o coração na mão, para cumprir o estágio curricular. Era julho de 1996, bem dizer ontem. A editora de Cidades, na época, me deu a pauta mais simples daquela manhã: uma secundária, era só ir ao local e entrevistar uma única pessoa; qualquer estudante de jornalismo daria conta. Menos eu. Pois é, não dei conta do meu primeiro dia na Redação. O gravador não gravou a entrevista, e a editora completou: “Assim não vai dar”.

Naquele instante, havia dois finais para esta história. Ou eu revia a matrícula no curso de Administração; ou eu começava, mais uma vez, na manhã seguinte. Acontece que eu tinha desembarcado aqui com o coração na mão – e eu uso o coração para escrever, não para administrar.

Desde então, a experiência daquela editora se tornou um farol, para mim. E não existiu um dia, nos últimos 23 anos, em que eu não começasse, em que eu não amanhecesse. Em par com o jornalismo, eu tenho entendido isto: o que a vida, essencialmente, quer da gente é nascimento – e nascer não é fácil nem cômodo. Pensando agora, talvez o jornalismo seja também sobre nos inaugurar.

Mais do que saber sobre jornalismo, na verdade, é o jornalismo que sabe de mim. Depois daquele estágio curricular, não tinha vaga de trabalho e eu voltei para a imaginação de ser apresentadora de programa de esportes. Acontece que eu só fui ao estádio de futebol uma vez e ainda sentei do lado da torcida adversária. Não era esse o meu caminho, eu acho.

Seis meses à frente, peguei uma trilha por um caderno que ia ser lançado aqui, para o leitor jovem. O suplemento durou pouco, o das crianças e o da literatura também logo deixaram de circular. De passagem por cada um, encontrei abrigo na editoria Vida & Arte – e em outra Ana, e na Eleuda, e na Silvinha, e na Ethel, e na Pat, e na Chris… – durante uns dez anos.

Até que uma editora me disse que não precisaria mais dos meus textos. A ela, agradeço a sinceridade – e também o primeiro abraço na tarde em que meu pai morreu, ainda no hospital. Estes foram dois instantes que me ensinaram o tanto para continuar, sendo diferente. Menos arrogante, mais solidária.

Na manhã seguinte, a editora de Economia acenou para mim, me deu livros e revistas sobre investimentos e outras palavras que nunca decorei, e eu fui ao encontro da tentativa e da gentileza dela. Também sempre precisei pagar as contas. Mentira. Nunca foi por isso que eu fui.

Foi pelo sonho, todas as vezes. Fosse por menos, eu não saberia das minhas próprias asas e nem alcançaria quem já voava no rumo de mudar o mundo e de tecer a vida. Pensando agora, talvez o jornalismo seja também sobre ir até a utopia.

Meio perdida entre os números, cruzei a editoria de Cotidiano, as coberturas do Sete de Setembro, dos domingos de praia, dos plantões de polícia. E teve até um poste caído no meio do caminho.

Mas também existiu a Maria Audenete – uma pessoa que atrofiou porque não teve a chance de uma consulta médica naquele fim onde ela mora até hoje. E existiu o seu Pedro catador, que remediava os vícios e aprendia a escrever o nome, para assinar o casamento com a andarilha do Maranhão. E existiu a Nazaré, enfermeira que se casou com um paciente soropositivo terminal, ficou viúva e noiva outra vez – na última notícia, de um jovem esquizofrênico.

Houve ainda duas companheiras muito importantes, nessa caminhada entre as pessoas e as palavras: a Ritinha, meu anjo-da-guarda azul, que me mostrou o tamanho do céu, e uma colega que me disse para eu usar menos o dicionário porque era sempre difícil entender o que eu escrevia. Agradeço-lhe o conselho que me faz aprender a sentir mais e a definir menos. Pensando agora, talvez o jornalismo seja também uma ponte entre os sentimentos e as razões, entre aqui e além.

Quase 15 anos depois dessa travessia cotidiana por significados, recebi o convite que todo repórter espera: trabalhar com os Especiais. Todo repórter, menos eu. Ninguém entendeu quando eu pedi para pensar. É que tinha uma pergunta no meio do pensamento: como eu vou dar conta dos dias que viriam?

Acontece que muitas vezes, assim no jornalismo como na vida, não é possível esperar pela certeza: a gente mesmo se fabrica. Então, dei a grande notícia para a aquela pessoa que é a leitora incondicional do que eu escrevo:

– “Mãe, agora eu sou repórter especial, acredita?”

– “O quê? Você vai fazer o que o Demitri faz? Pelo amor de Deus, não vá se meter em confusão!”.

Não, mãe. Eu nunca fiz o que o Demitri Túlio e o Cláudio Ribeiro fazem. Eles são os especiais. São os “fuleiragens” mais especiais que eu conheço. A única investigação que já arrisquei fazer é a dos sentimentos: gosto de espiar dentro das casas e das pessoas.

E eu não sei o caminho que eles sabem, eu mal sei o meu caminho. O que eu fiz foi caminhar. Por estradinhas de terra, por altos e baixos, pelos sertões dos lugares e das pessoas, atrás da chuva, dos afetos e das convivências, acreditando que depois daquela curva ia ser a chegada. Às vezes, era mesmo; tantas outras, eu me perdia.

A propósito, nesses últimos dias, ouvi uma frase de um amigo muito querido que me acendeu novo farol, noutra margem de mim. Ele me disse: quando nós não encontramos o caminho, o caminho nos encontra. Pensando agora, talvez o jornalismo seja também sobre se perder e se achar.

Nunca, em nenhum instante, foi fácil. A profissão é difícil por natureza, as redações são o que são e dias melhores, neste País da negação, estão longe de vir. Reafirmo: nunca é, honestamente, fácil. Mas, muitas e muitas vezes, é feliz. O jornalismo é o meu Semiárido: a gente luta, convive, renasce.

Cobri o voto do pobre, o investimento do pobre, a alfabetização do pobre, o casamento do pobre. Chorei o desespero do pobre, senti a fome do pobre, aprendi a alegria e a resiliência do pobre; me enriqueci de humanidade. Estive com os loucos, os abandonados, os presos, as prostitutas, os suicidas, os torturados, os caciques, os mortos, os santificados. Com as crianças do lixo, da aids, do câncer. Com os velhos esquecidos, as mulheres violadas, os transexuais aviltados; me coube investigar os desimportantes. E eu sou imensamente grata a esse ofício de esticar horizontes, como bem diz o escritor Manoel de Barros.

Sou a infância interrompida, a juventude sitiada, a dor do parto violentado, o medo dos espancados, a espera dos que ficam, a oração pelos desaparecidos, a loa do maracatu, o samba nos pés descalços, o cheiro de chuva na terra seca, o grito da floresta queimada. É bem verdade que eu quase não estive nas manchetes, nas métricas e nas lives. Segui o norte que uma editora sertaneja me apontou quando me disse: “Ana, é assim. Você está onde tem que está”. Pensando agora, talvez o jornalismo seja também sobre esse lugar no mundo ou em alguém.

Só podemos compreender o que se passa dentro de outra pessoa quando nos mudamos para ela. Nem que seja somente pelo tempo de uma pergunta e de ouvir a resposta.

O jornalismo nos dá essa possibilidade de mudança. De morar em alguém. É um ofício, profundamente, humano. E isso é bonito, eu acho. Pensando agora, talvez o jornalismo seja também sobre se mudar para o próximo e sobre salvar o belo. Pensando agora, talvez o jornalismo seja sobre todos os homens do presidente e sobre todos os pássaros, todas as árvores, todas as dunas, todos os rios.

Não sei por que este texto insiste sobre o jornalismo, não era a minha intenção. Acontece que um texto assim, escrito de dentro para fora, é um filho que nasce do jeito que quer. Mas meu propósito, aqui, é escrever ao tempo sobre o amor. Porque sou, agora, este instante da despedida – palavra adiada e até evitada.

Eu não vou me furtar da despedida. Compreendo, depois de me despedir incontáveis vezes, isto: o que, amorosamente, vivemos segue conosco. E reescrevo: agora acho descabido significar as despedidas como um fim melancólico. As despedidas não deveriam ser medidas pela tristeza ou pela melancolia, como nos educaram. Deveriam ser a medida do amor que vivemos. Eu amo o jornalismo, esse cafajeste. E acho graça desse grande amor. É mais ou menos assim. Eu fui feliz aqui e, por isso, me demorei.

Vou-me embora, neste outubro, porque alguém me mostrou o tamanho do céu. Vou-me embora porque já fiquei no sertão das pessoas e dos lugares; nesse canto do extraordinário, onde escrever é quando o olhar transborda, o corpo arrepia e o coração bate. São tantas as desrazões de ir embora enquanto se ama…

Eu só sei fazer jornalismo assim – e reconheço que preciso aprender o tanto que me falta. O jornalismo é a minha parte gauche na vida. Seria desonesto eu ficar, se o caminho precisa me encontrar, entendem?

Particularmente, entendi tudo isso no instante em que o jornal me abraçou no corredor, no meio da mudança da Redação, e me disse: “Obrigada pelos dias que você passou aqui”. Entendi, para sempre, que amor é esse abraço que nos deixa ir.

Escrevo ao tempo: agora eu sei, foi amor. E este amor foi, inteiramente, amado. Fiquei até compreender que o amor também acaba e que há começos nas despedidas. Amor é para se consumir até a última gota, é água de beber. Amar é que é nascente, e é conjugação. Cuidemos das nascentes.

Por falar em nascente, neste outubro de 2019, voltei até aquela editora que me começou em julho de 1996. Foi só o tempo de fazermos, juntas, um derradeiro caminho pelas crenças. Foi bonito voltar, foi bonito o caminho, são bonitas as crenças. É também por isso que eu vou embora, enquanto o belo está a salvo. Ah! Desta vez, essa editora me deu quatro páginas limpas e um editorial. E a reportagem deveria construir uma ponte entre os sentimentos e as razões, entre aqui e além. Acho que dei conta, desta vez, porque a editora me mandou uma mensagem pelo zap, nesses últimos dias, dizendo sobre saudades.

Refazendo os mil e um caminhos de terra, de altos e baixos, de curvas e mais curvas, sinceramente, não sei como dei conta do que eu precisava dar conta até aqui. É parecido com ir a pé até Canindé. Quem já foi lhe ampara, mas chega uma hora que é só você e Deus na madrugada sem fim. Ou você acredita, ou você arrefece.

Sinceramente, não sei como comecei todas manhãs, como nasci todas as vezes, naquela estrada de expiação até Canindé ou na escrita de cada dia. Eu apenas não parei de caminhar. Só sei que foi assim.

Pensando agora, talvez o jornalismo seja também procissão e fé. E uma espécie de oração. Somos romeiros, eu acho. Não tem muita explicação para o que nos destinamos fazer – mudar o mundo e tecer a vida – nas condições em que fazemos.

Pensando agora, talvez o jornalismo seja também sobre acreditar, simplesmente, assim, feito quando se ama. E quando amamos, juntxs.

Obrigada, companheiras e companheiros, por esta conjugação.

(fim)

Fortaleza, outubro (mês de São Francisco) de 2019.

(depois que eu terminei de escrever este texto, às 4 horas da manhã do dia 6 de outubro, choveu. E eu rezei uma Ave-Maria, para agradecer a Nossa Senhora Auxiliadora)

Fonte: Ana dos Suspiros

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