Quarentena ] Particular inventário das horas

Quis reunir as miudezas que garimpei desse primeiro momento de isolamento social, para medir o tamanho de certos achados; ou daquilo que eu pensava desimportante

Foto: Blog Ana dos Suspiros

Há pouco mais de uma semana, no último dia 20 de março, a pandemia causada pelo novo coronavírus (revelado, em dezembro de 2019, na China) impôs o isolamento social na cidade onde eu moro (Fortaleza, Capital do Ceará, no Nordeste brasileiro). Desde então, foi preciso adaptar o trabalho em casa e, igualmente, a convivência com as horas do confinamento. E isso tem significado, para mim, estar com as horas que passam: me demorar com minha mãe que envelheceu, encarar as solidões (minhas, dos meus próximos e da humanidade que as notícias me trazem), me encontrar com os pensamentos que eu evitei, remexer nos entulhos das gavetas onde – inutilmente – acumulei passados, limpar o que precisa ser limpo, perdoar o que ainda precisa ser amado, recompor morada e alma, descobrir os meios que a vida tem de viver.

Dessa convivência inevitável e complexa, ganho o saldo de um particular inventário das horas, que reúno aqui. Originalmente, publiquei os posts (a que chamo “cotidiano-postal”) na conta do blog no Instagram (@anadossuspiros). Mas quis reunir as miudezas que garimpei desse primeiro momento de isolamento social, para medir o tamanho de certos achados; ou daquilo que eu pensava desimportante.

Já experimentei, vida afora que tudo passa; de uns anos para cá, atravesso: não é em vão passar por tudo. Sigo, então, o curso da vida – rio que deságua no mar que também sou -, mas segurando forte o leme ou o remo (embarcações e forças variam de acordo com as águas do tempo) e não descuido de ver as paisagens. Hoje escrevi a uma amiga-irmã: já estou mais conformada (ou melhor, serena) sobre muitas coisas, em saber que a vida não segue uma linha reta, que existem altos e baixos, pedras, curvas e abismos. Mas também que existem pontes e boas safras. Chegadas, partidas e chegadas.

Então, por estes dias, tenho navegado e aportado nas alternâncias dos minutos e dos turnos, entre manhãs, tardes e noites. E tem sido mais ou menos assim:

(marços)
deixemos as coisas,
cuidemos da vida.
(apurado do dia)
esta semana, minha mãe, que tem quase 80 anos (a imprecisão é porque não é pra ninguém saber a idade dela, ela fica danada se eu contar, rs), me disse a seguinte notícia, com a voz mais triste que eu já ouvi: “você viu? na Itália, os médicos estão deixando as pessoas com 80 anos morrerem desse vírus. eles não atendem, falam que já estão velhos mesmo e não vão escapar…”. era uma dessas informações de zap. expliquei que não era bem assim e que ela podia se prevenir ficando em casa, reforçando a alimentação, dormindo melhor e não se estressando com tanta informação. e contei a ela a notícia de uma senhorinha, que mora sozinha na Espanha, e que completou 80 anos em pleno isolamento dessa pandemia: então, um vizinho fez um bolo e lhe ofereceu parabéns pela janela. minha mãe sorriu, admirada, como quando descobre as flores do jardim da casa dela. é mais ou menos assim, há tempos de recriar o mundo para os nossos pais.
(as palavras em tempo de corona)
há alma no deserto das ruas.
(anotar os dias, para não esquecer a vida)
chegou o tempo das desimportâncias. o que você vai fazer com o acaso?
(apurado do dia)
o voo é livre.
(fim de tarde no deserto da rua)
(bom-dia)
minha colheita de amanhãs.
(apurado do dia)
a vida passa por grandes mudanças ao longo do viver. que tenhamos o discernimento, para encaixotar as lembranças mais leves e as saudades mais necessárias que levaremos conosco pelos tempos e tempos.
… assim, como quando se tem uma flor no mundo.
(os dias têm sido assim)
(os dias têm sido assim)
aprender a ver tudo de outra maneira,
olhar para dentro de nossa morada e perceber o que nos habita,
nos demorar conosco.
e só então, sabendo-nos nossa própria chance, voltar para o mundo.
p.s. acho mesmo que Deus apertou o “pause”. antes de mandar o meteoro.
(pequena prece das manhãs)
que não nos falte o amor e a coragem, para a vida de cada dia.
(apurado do tempo)
(eu acho)
(do ofício de seguir garças)

Fonte: Blog Ana dos Suspiros

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