Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, completa 60 anos

Considerado um best-seller improvável, clássico literário segue incômodo e atual e chegou a ser traduzido para 13 idiomas

A luxuosa sede da editora Francisco Alves, em São Paulo, presenciava uma noite diferente naquele 19 de agosto de 1960. Afinal, não era sempre que uma mulher negra e de origem humilde lançava um livro, ainda mais com uma recepção lotada, com mais de 1.500 convidados.

Toda a alta sociedade queria conhecer a mineira Carolina Maria de Jesus, a catadora de papel transformada em autora que assinava Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada. No livro, ela revelava, com relatos calcados em sua vida, a realidade miserável da favela do Canindé, às margens do rio Tietê.

O evento se tornou ainda mais curioso quando uma Kombi do jornal Última Hora parou na porta e de lá desceram vários moradores do Canindé, alguns deles descalços, para ver de perto o livro em que apareciam como personagens. Emocionada, a escritora parou de autografar para receber os vizinhos, que nunca haviam ido a uma livraria: a maioria não sabia ler.

Otimista, a editora Francisco Alves imprimiu 10 mil cópias do livro para o lançamento – tiragem alta até para os padrões atuais. Foi pouco: os exemplares se esgotaram em apenas quatro dias. Foram tiradas diversas reimpressões, um total de mais de 100 mil cópias vendidas, e o livro frequentou o topo das listas dos mais vendidos por um ano. O diário também comoveu o mundo. Foi traduzido para 13 idiomas e publicado em mais de 40 países, como Estados Unidos, França, Itália, Japão, Cuba e Tchecoslováquia.

“Foi a primeira vez que a crítica ao processo de modernização excludente que o país passava foi feita pela própria vítima, uma mulher que estava à margem, miserável”, conta Eduardo de Assis Duarte, professor da pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG e coordenador do Literafro, projeto sobre literatura afrobrasileira. “A importância é mais do que literária: é documental, é um retrato de um Brasil que passa fome”, completa.

“Ela quebrou o cânone”, avalia o jornalista Tom Farias, autor de Carolina – Uma Biografia, lançado em 2018. “A academia foi surpreendida por uma linguagem coloquial, porém com poder narrativo muito forte, muito precisa nas orações que ela faz”, explica. Junto do sucesso, vieram as críticas. “A intelectualidade torceu o nariz. Não admitiam uma mulher negra, que acusavam de iletrada, vender tantos livros como ela fez”, reforça.

A publicação representou uma guinada de vida radical para Carolina. Em seis meses, ela conseguiu dinheiro para deixar a favela do Canindé, mudando-se para um sobrado no bairro de classe média de Santana – e, de lá, para um sítio em Parelheiros, área rural no extremo sul de São Paulo.

“Ela se torna popular em São Paulo: sai nos jornais e nas rádios todos os dias, vai para grandes festas, é convidada para eventos e jantares, passa a ter uma vida social intensa. Passa a ter a qualidade de vida que sempre desejou”, conta Tom Farias.

A badalação, porém, durou pouco. Com a ditadura, em 1964, a obra de Carolina Maria de Jesus, mesmo sendo best-seller, acabou sendo relegada ao ostracismo. Afinal, não pegava bem a denúncia social em um país que se pretendia uma grande potência.

Retrato

Passados 60 anos da publicação, o relato em Quarto de Despejo passa por ciclos de redescoberta e ainda causa impacto em quem lê. O crescente interesse pelo livro vem acompanhado de uma curiosidade sobre a vida de Carolina Maria de Jesus e por toda a sua obra, que é analisada em universidades e exaltada por seu vanguardismo.

São pelo menos dois pontos que fazem com que o livro esteja cada vez mais em evidência. O primeiro é sua atualidade. “Os problemas apontados há 60 anos não foram resolvidos, continuam. A favela do Canindé não existe mais, mas existem centenas de outras. Nós continuamos com um nível de miséria enorme no país”, destaca Duarte.

Ele também ressalta a permanência de um abismo social de desigualdade, que só se aprofundou. “Ela dividia a cidade em dois espaços: os bairros chiques são a sala de visitas, a parte social da casa, e a favela é o quarto de despejo, uma metáfora, onde se amontoa o lixo – nesse caso, humano”, completa.

O outro motivo para o atual sucesso do livro é que os excluídos estão se organizando. “A realidade brasileira projetou pessoas como Carolina para o que chamam de ‘empoderamento’ – eu prefiro o termo ‘apoderamento’ –, tomando conta da sua história, seus discursos e seu lugar de fala. Isso fez com que houvesse uma redescoberta dos textos dela, porque temas como a pobreza, o racismo e a violência contra a mulher estão em Quarto de Despejo”, avalia Tom Farias.

Tesouros guardados

O público que presenciou o lançamento de Quarto de Despejo aguardava a oportunidade de ler Carolina Maria de Jesus desde 1958, quando o jornalista Audálio Dantas publicou, no jornal Folha da Noite, uma reportagem que continha alguns trechos do diário da escritora.

Dantas prometeu a Carolina encontrar uma editora para publicar o livro e se comprometeu a editar os manuscritos. O processo foi controverso e é debatido até hoje, sob a acusação de que Dantas teria pesado a mão para valorizar apenas o aspecto social do relato de Carolina.

Atualmente, os cadernos originais estão disponíveis para quem quiser ver. O Acervo de Escritores Mineiros da UFMG mantém cópias em microfilmes de mais de 30 cadernos. Doado pelo historiador José Carlos Sebe Bom Meihy – que capitaneou o processo de microfilmagem nos anos 90 em parceria com a embaixada dos Estados Unidos –, a produção é vasta e, em boa parte, inédita.

Professora do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Aline Arruda mergulhou nos originais de Carolina para sua tese de doutorado. “Tem de tudo lá: textos em diversos gêneros literários, peças de teatro, romances, contos, os originais dos diários, de onde saiu Quarto de Despejo, cartas, listas de coisas que ela tinha que fazer no dia, coisas do cotidiano, anotações”, detalha.

Como resultado de sua pesquisa, Aline editou um livro inédito de Carolina a partir dos originais. Doutor Sílvio conta a história de uma moça que vive em uma pensão e se apaixona por um dos hóspedes, rapaz de família rica do interior. “São romances bem no estilo clássico do século 19, de novela, que refletem o que ela leu. Embora ela estivesse em São Paulo na época do modernismo, não alcançava esses círculos, não convivia com Mário de Andrade”, detalha.

Para o professor Eduardo de Assis Duarte, que intermediou a doação dos microfilmes para a UFMG, ainda há muito o que se descobrir da obra de Carolina Maria de Jesus. “O material é vastíssimo. A maior parte do trabalho dela segue ainda sem ser publicado”, conclui.

Memorial

Quem quiser ver os cadernos originais de Carolina Maria de Jesus deve ir até a cidade mineira de Sacramento, na região do Alto Paranaíba, onde ela nasceu. É lá que estão 37 volumes originais dos manuscritos da escritora.

“O acervo fica guardado em uma sala climatizada do Arquivo Público Municipal, acondicionado em caixas de pH neutro, e já foi digitalizado para consultas”, afirma o secretário de Desenvolvimento Econômico, Turístico e Cultural da cidade, Carlos Alberto Cerchi. O objetivo é expor esses volumes em breve. A prefeitura está desocupando uma sala do Museu Histórico de Sacramento, que deverá abrigar um memorial sobre Carolina.

Além dos cadernos, vários outros materiais vão compor o acervo do espaço, como um filme, registrado pelo jornalista Audálio Dantas em super 8, que mostra a escritora deixando a favela após a publicação de Quarto de Despejo. O prazo, se a pandemia deixar, é em agosto, para coincidir com os 60 anos do livro e os 200 anos de fundação de Sacramento.

Publicado originalmente no jornal O Tempo

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