que fim levaram todas as palavras

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Foto: Ana Mary C. Cavalcante

eu tive que mudar meu número de celular, depois que bandidos clonaram o número antigo. uma grande chateação, principalmente, porque uma amiga teve um prejuízo financeiro significativo ao cair na extorsão.

mas houve também um prejuízo, particularmente, sentimental: eu perdi as mensagens, crônicas e declarações de amor, mal guardadas em conversas de WhatsApp. palavras-abraços do meu afilhado único e silencioso, da minha mãe enquanto envelhece, da minha irmã preferida, de amigas e amigos raríssimos e até mesmo de fontes agradecidas. tanto tempo e sentimento foi roubado de mim: Natal, ano novo, aniversário, chegadas e partidas. e a minha precisão sempre foi por palavras.

aos poucos, tenho recuperado os contatos telefônicos que foram perdidos com a clonagem. e dias melhores virão – porque virão; a vida é esse trancelim. outros Natais, anos novos, aniversários, outras chegadas e partidas. outras mensagens, crônicas e declarações de amor.

mas, especialmente, em tempos de tristeza e pandemia, aquelas palavras-abraços eram companhia. vez em quando, nas travessias, eu revisitava uma a uma. e ria ou rezava tudo outra vez. a palavra, bem dita, é também uma presença. eu acho.

ontem, recebi, por aqui, uma música do grupo Secos & Molhados, chamada “Que fim levaram todas as flores”. um presente em troca das fotografias do meu jardim secreto, que tenho revelado ao longo desta quarentena infinita. um bonito. e que me fez pensar que fim levaram todas as palavras (de amor, de fé), ao tempo que nos roubam as horas e os sentimentos. e, principalmente, como se farão (como faremos) os recomeços de todas elas.

sigamos, pelas linhas tortas e pelos amanheceres

Publicado originalmente no Instagram anadossuspiros

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