Sérgio Ricardo (1932-2020), um múltiplo artista de protesto

Cantor morreu nesta quinta-feira (23), no Rio, de insuficiência cardíaca

Gauche na vida, ninguém melhor que o cantor, compositor, cineasta e escritor paulista Sérgio Ricardo para se apresentar numa sessão da Câmara dos Deputados que, pouco depois das polêmicas jornadas de junho de 2013, homenageava comunistas. E não só homenageava.

Sob a presidência da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), a sessão solene de 13 de agosto de 2013 devolveu, simbolicamente, os mandatos dos 14 deputados federais do Partido Comunista do Brasil eleitos em 1945 para a Assembleia Nacional Constituinte. Mandatos que, cassados à margem da lei em 1947, foram definitivamente tomados no início de 1948. Parlamentares como Jorge Amado, Carlos Marighella, João Amazonas, Maurício Grabois e Gregório Bezerra foram perseguidos e expulsos da Câmara.

Num momento tão histórico, lá estava Sérgio Ricardo, ao lado do filho João Gurgel, para cantar duas músicas da trilha de um filme insuperável, Deus e o Diabo na Terra Sol, de Glauber Rocha. Uma das canções, Calabouço – homenagem ao estudante Edson Luís, morto pela ditadura militar (1964-1985) –, unia premonitoriamente, num mesmo verso, “milícia, morte e mourão”, além de repetir constantemente a sentença “Cala a boca moço”. A outra música, Antônio das Mortes, de letra curta, evoca o “matador de cangaceiro” do longa de Glauber.

João Lutfi, nome verdadeiro de Sérgio Ricardo, nasceu em 1932, na cidade de Marília, no interior de São Paulo. Nos anos 1960, envolveu-se diretamente com dois dos mais célebres e influentes movimentos culturais do Brasil – a Bossa Nova e o Cinema Novo. Em 1967, ao ser vaiado durante a apresentação de Beto Bom de Bola, de sua autoria, no 3º Festival da Música Popular Brasileira (MPB), da TV Record, o cantor não pensou duas vezes. Depois de quebrar o próprio violão no palco, atirou-o no público. Antes, admitiu em alto e bom som a irritação: “Vocês ganharam, vocês ganharam!”.

O projeto Memórias da Ditadura registrou a cena com precisão, pontuando a saga do “ator de novela, pianista e compositor de bossa nova” que, uma vez no Centro Popular de Cultura da UNE, na década de 1960, aderiu às canções de protesto e ao violão:

“É verdade que Beto Bom de Bola não era lá essas coisas. Não tinha a cadência harmônica nem o sentido social de Zelão (‘Todo o morro entendeu / Quando Zelão chorou’), nem a pertinência política de Deus e o Diabo na Terra do Sol, trilha sonora do filme de Glauber Rocha, que tanto (re)significava naquele período pós-1964 (‘Se entrega, Corisco / Eu não me entrego, não / Não me entrego a tenente / Não me entrego a capitão / Eu me entrego só na morte / De parabelo na mão’). Mesmo assim, o episódio foi um ponto fora da curva na história dos festivais, menos pela vaia do que pela reação violenta”.

Um ensaio autobiográfico de Sérgio Ricardo, lançado em 1991, teve o sugestivo título Quem Quebrou Meu Violão e trazia histórias não apenas dos festivais. Lembrava-nos também, entre outras passagens, da censura sofrida pelo longa-metragem Esse Mundo é Meu (1964), escrito, dirigido, produzido e estrelado por ele. O filme gira em torno da história fictícia de um operário metalúrgico que se torna um líder grevista.

Ricardo também repetiu a tríade escrever-dirigir-atuar em mais dois filmes seus – Juliana do Amor Perdido (1970) e A Noite do Espantalho (1974). A cooperação com Glauber Rocha, antes de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1968), já havia ocorrido na trilha de Terra em Transe (1967). Poeta, escreveu o livro de poemas Canção Calada (2019), um de seus últimos projetos. Em todos os momentos – e sob qualquer expressão cultural –, foi essencialmente um artista de protesto. Múltiplo, mas coerente.

Sérgio Ricardo morreu nesta quinta-feira (23) no Rio de Janeiro. Após ser infectado em abril pelo novo coronavírus, o artista foi internado no Hospital Samaritano do Rio e se livrou da Covid-19 – mas ficou com sequelas. Sua causa mortis foi insuficiência cardíaca. “Hoje pela manhã partiu nosso mestre Sérgio Ricardo, nosso amado João Lutfi, aos 88 anos de muita arte, resistência e, acima de tudo, muito amor”, anunciou sua página no Instagram. “Suas expressões nos deram e darão ainda muita alegria, mas até os mais inspiradores guerreiros precisam descansar.”

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