Neste 17 de maio, os amantes da boa e melhor poesia do Recife comemoram os 90 anos do nascimento do poeta Carlos Pena Filho. Talvez mais próprio fosse dizer: os amantes da boa e melhor poesia do Brasil.
Por Urariano Mota*
Publicado 16/05/2019 21:50 | Editado 13/12/2019 03:29
Mas entendam e perdoem: apesar da aparência, a primeira frase não é atestado de recifense provinciano. A primeira quer fazer referência ao poeta cuja obra se tornou um hino da cidade, na poesia a que deu o nome de Guia Prático da Cidade do Recife. E aqui, se arrisco uma interpretação desse poema, posso cair no papel de moldura supérflua de um quadro. Melhor me recolher à plateia na comum admiração, deixar que o poema inteiro seja interpretado em si mesmo:
Esse tempo, há muito gasto,
resiste apenas, agora,
em feriados de escola
e em frias e sonolentas
ordens do dia, em quartéis
onde fofos capitães,
esverdeados por fora,
ganham a vida e as estrelas,
o dia, o mês e o ano
à custa do amarelinho
e alegre ‘porque me ufano’.
MANOEL, JOÃO E JOAQUIM
Desse tempo, é o que resta
para um discreto dizer,
pois quem cantou esse tempo
já não é do meu saber.
Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manoel, João e Joaquim.
No jardim Treze de Maio,
Manoel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do seu avô
e nem a rua da Aurora,
nem o que o tempo acabou,
nem o mar nem a sereia
e nem boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.
Desde a Velha, carcomida,
paisagem para detentos,
que é por onde sempre passa
esse povo marginal,
escuro e anfíbio que habita
o cais dito do Areal,
até à ponte mais nova
que tem o nome mais velho:
a ponte de Duarte Coelho.
Mas tudo o que for do rio,
água, lama, caranguejos,
os peixes e as baronesas
e qualquer embarcação,
está sempre e a todo instante
lembrando o poeta João
que leva o rio consigo
como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
que aqui no Recife estão,
já começaram areia e pedra
lá bem perto do sertão
e é por isso, talvez,
que escuras e tristes são.
Porém não foi só tristeza
sua peregrinação,
em seu trajeto tiveram
a farta satisfação
de dar de beber a secos
homens, cavalos e bois
e em seu incerto caminho
ainda viram depois
os sítios cheios de sombra,
onde dorme o sonho espesso
do poeta Joaquim que foi
fazer uma estação de águas
nos olhos do seu amor
e trouxe nos seus, acesos,
os cajueiros em flor.
A PRAIA
Mas não é só junto ao rio
que o Recife está plantado,
hoje a cidade se estende
por sítios nunca pensados,
dos subúrbios coloridos
aos horizontes molhados.
Horizontes onde habitam
homens de pouco falar,
noturnos como convém
à fúria grave do mar.
Que comem fel de crustáceos
e que vivem do precário
desequilíbrio dos peixes.
Nesse lugar, as mulheres
cultivam brancos silêncios
e nas ausências mais longas,
pousam os olhos no chão,
saem do fundo da noite,
tiram a angústia do bolso
e a contemplam na mão.
Só os velhos adormecem,
lembrando o tempo que foi,
vazios como o vazio
e fácil sono de um boi.
SUBÚRBIOS
Nos subúrbios coloridos
em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar
e em esqueletos da sombra,
onde a luz chega filtrada,
as tecelãs vão parar.
Adeus lembrança de amores,
adeus leve caminhar.
Agora resta somente
um desencanto sereno:
o gerente e as botinas,
magoando o silêncio pleno.
Mas, nos domingos mais claros,
as tecelãs se transformam
em puras rosas de sal
e oferecem os seus braços
à curva do litoral.
Nem se lembram mais do mangue,
podre, virgem, vegetal,
onde os homens são sem sonhos,
como qualquer mineral.
A LUA
Mas, enquanto tudo é fome,
por todo o reino animal,
existe ainda fartura
na "terceira capital",
pois os que forem passear
no cais da rua Aurora,
em certa noite do mês,
poderão sair dizendo,
todos juntos, de uma vez:
Era uma lua tão grande,
de tão vermelha amplidão
que mesmo Ascenso Ferreira,
comendo só a metade,
morria de indigestão.
IGREJAS
Não é que somente em luas,
o Recife farto seja;
é farto, também de igrejas.
Tem a de São Francisco,
na rua do Imperador,
com rezas pra Santo Antônio
e promessas por amor;
tem a Igreja de São Pedro,
no pátio do mesmo nome
que se fosse gente, há muito
tinha morrido de fome,
mas, como é, firme, resiste,
sozinha, em seu abandono
e em seu destino bem triste
de igreja quase sem dono.
E como se fosse pouco
seu exílio obrigatório,
ainda está condenada
a ver o bar de Gregório,
onde os nossos literatos,
criados a uva e maçãs,
levam os amigos de fora
pra comer sarapatel,
depois transformado em obra
com tinta escura e papel.
Mas não é só; o Recife
ainda tem muitas igrejas
lavando os pecados seus.
Tem lá perto do mar,
plantada em meio do mal,
a sua concatedral
chamada Madre de Deus,
que é onde essas menininhas
de Maria Madalena
vão à missa e à novena.
O BAIRRO DO RECIFE
Ali é que é o Recife
mais propriamente chamado,
com seu pecado diurno
e o seu noturno pecado,
mas tudo muito tranquilo,
sereno e equilibrado.
No andar térreo, moram os bancos
(capitais da Capital)
no primeiro, a ex-austera
Associação Comercial,
no segundo, a sempre fútil
Câmara Municipal
e, no terceiro, afinal,
está a alegre pensão
da redonda Alzira, a viga
mestra da prostituição.
Mas como vivem tão bem,
em tão segura união,
qualquer dia, todos juntos,
vão fundar a Associação
dos Múltiplos Pecadores,
com banqueiros, comerciantes,
prostitutas, vereadores,
ingleses do British Club,
homens doentes e sãos,
pois o camelô já disse
que somos todos irmãos.
Esse é o bairro do Recife
que tem um cais debruçado
nas verdes águas do Atlântico
e ainda tem o cais do Apolo,
apodrecido e romântico,
beleza que ainda resiste
lá nos desvãos da memória
desse bairro que se escoa
pela Ponte Giratória,
que é uma estranha armação
que aguenta em seu férreo dorso
automóvel, caminhão
e trem de carga bem cheio,
mas não resiste às barcaças
que a fendem do meio a meio.
SAO JOSÉ
É por ela que se chega
ao bairro de São José,
de ruas de casas juntas,
cariadas, mas de pé.
De classe média arruinada,
mas de gravata e até
missa ao domingo, pois sempre
é bom ter alguma fé.
Bairro português que outrora
foi de viver e poupar,
nascer, crescer e casar
naquela igreja chamada
São José de Ribamar.
CHOPE
Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isto no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
ORADORES
Este ponto verde aqui,
feito de folhas e flores,
é o Jardim Treze de Maio,
onde os nossos oradores
vão um ao outro contar
como foi que conseguiram
a vida inteira passar
nas trevas da ignorância
sem nunca desconfiar.
Pois, cada qual sente um gênio
dentro de si borbulhar
e, coitadinhos, nem sabem,
que o que borbulha é a ameba
que não puderam tratar.
SECOS E MOLHADOS
Ainda existe muita coisa
de bom e ruim pra contar,
mas como sou conhecido
por discreto no falar,
irei, agora, evitar.
Mas não sem antes passar
pelos armazéns de estiva,
mar dos nossos tubarões,
de brasileiros sabidos
e portugueses sabidões
que na vida leram menos
que o olho cego de Camões,
mas que em patacas possuem
muito mais que Ali Babá
e os seus quarenta ladrões.
É por isto que aos domingos,
cada qual na sua Igreja,
reza, assim, as orações:
Naquele mastro real,
vê se descobres um meio
de aumentar meu capital.
Vendendo carne de charque,
importando bacalhau,
dizendo que prata é ouro
e latão é bom metal.
É assim que vivemos desde
Pedro Álvares Cabral.
Pois o Papa já nos pôs,
no Trato das Tordesilhas,
além do bem e do mal.
O FIM
Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução
Para os versos acima, há quem os considere um poema, e o batizem até com um nome: O Chope, como está ao lado da estátua do poeta, na pracinha do Diário no Recife. Na verdade, esses versos são parte orgânica do poema longo e único Guia Prático da Cidade do Recife. O leitor viu. Esse grande poema, como um Guia Histórico, Geográfico e Sentimental, recebe divisões às quais o poeta deu os nomes de O Início, O Navegador Holandês, Manoel, João e Joaquim, A Praia, Subúrbios, A Lua, Igrejas, O Bairro do Recife… Mas nem por isso O Início, O Navegador Holandês são poemas, de existência autônoma – são versos: braços, pernas, olhos, cabeça, peito, mãos de um ser único, indivisível, do poema Guia Prático da Cidade do Recife. Entre os dedos do poema existe um que se chama Chope, jamais O Chope.
Agora, tentemos continuar no quase crime de tentar interpretar a poesia. Esse hino do Recife chama nossa atenção já a partir do nome: “guia prático”. Prático? Pois sim, olhem de novo – e olhar de novo um poema é sempre redescobri-lo – releiam como Carlos Pena escreve o Início da cidade no Guia PRÁTICO. Eis um retrato maior do Recife:
Agora, num salto do texto, notem o quanto é contraditória e surpreendente a natureza humana. Carlos Pena, como se confirmasse o sobrenome, era um poeta magríssimo, um peso pluma, que não agia tão suave quanto parecia na poesia. A julgar por algumas saborosas anedotas, como esta.
O poeta puro, como a provar que pureza somente há nas mais loucas abstrações, um dia chegou ao Bar Savoy no Recife e contou que talvez não tivesse se saído bem em uma prova oral no curso de Direito:
Jorge Amado o adorava pela poesia e capacidade de contar anedotas, que iam do cômico ao picante. E aproveitou uma das histórias contadas por Carlos Pena em uma de suas melhores obras, A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua. Verdase ou lenda, Carlos Pena contou a ele que um cachaceiro gostava de beber copos cheios de cachaça em um bar. Um belo dia, o atendente, já pago por um grupo de gozadores, trocou a cachaça por água. E o que faz o nosso pobre e sedento homem? Ao levar o copo cheio à boca e tomá-lo de um só gole, demorou uns dez segundos para assimilar a bebida. Então gritou a plenos pulmões:
– Água!
Carlos Pena contou essa anedota real numa mesa de pôquer em Pernambuco, e acabou sendo apelidado de Berrito Dágua. No livro, Jorge Amado pôs a dedicatória:
Se houvesse mais tempo, se não tivéssemos de atender a muitas urgências nestes dias de tsunami, haveria de falar que Carlos Pena deixou pelo menos um samba imortal. Ele escreveu, e Capiba pôs música, o samba A Mesma Rosa Amarela:
Mas nestes dias de carnaval
para mim, você vai ser ela.
O mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será
quando chega a lembrança dela
e de você apenas restar
a mesma rosa amarela,
a mesma rosa amarela.
Para uma vida tão curta, porque ele morreu em um acidente de carro aos 31 anos de idade, é uma felicidade reler alguns dos sonetos mais lindos da língua portuguesa escritos por ele. Quero me referir ao fundamental
quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitectar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.
Ou ao
Por seres bela e azul é que te oferto
a serena lembrança desta tarde:
tudo em torno de mim vestiu um ar de
quem não te tem mas te deseja perto.
O verão que fugiu para o deserto
onde, indolente e sem motivos, arde,
deixou-nos este leve e vago e incerto
silêncio que se espalha pela tarde.
Por seres bela e azul e improcedente
é que sabes que a flor, o céu e os dias
são estados de espírito, somente,
como o leste e o oeste, o norte e o sul.
Como a razão por que não renuncias
ao privilégio de ser bela e azul.
Ou este que se tornou uma segunda natureza para quem o conheceu um dia:
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
Mas a nota mais que linda, belíssima, foi ver o Recife nas vésperas do aniversário do poeta. A cidade voltou a seu destino, na mais recente quarta-feira, quando rebelada em todas as cores, do negro ao azul do céu, se levantou contra os cortes na educação e todos os cortes da cidadania da gente. Aquele Recife na Rua da Aurora cantava como nos versos do fim do Guia Prático da Cidade do Recife:
* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude