Nos 180 anos do nascimento de Machado de Assis, o Prosa, Poesia e Arte recupera uma crônica atualíssima do escritor pernambucano Urariano Mota. Escrita há quatro anos, “O que Machado de Assis falou do juiz Sergio Moro” faz ainda mais sentido à luz das revelações do The Intercept Brasil. Confira.
Publicado 21/06/2019 11:07 | Editado 13/12/2019 03:29
O maior escritor brasileiro, de visão absoluta, não deixaria de falar sobre as aparências de justiça da direita brasileira. Mas o mais impressionante é que ele, Machado de Assis, tenha já falado do juiz Sérgio Moro. Sim, daquele mesmo que se tornou instrumento do golpe contra a democracia no Brasil. Acompanhem, porque toda arbitrariedade da hipócrita limpeza da sociedade já foi escrita desde 1882, para tipos e gênero como Sérgio Moro, que são mais antigos do que se imagina. Com a pena da galhofa e a tinta da melancolia do mestre da literatura nacional me acompanhem.
As linhas e a fala de Machado de Assis sobre Sérgio Moro estão em O Alienista, sobre o qual comento agora, livre da delação premiada.
Já no começo, ele escreve: “A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo”.
Ora, por motivos ficcionais, o Sua Majestade aí quer dizer complexo mídia e direita brasileira. Itaguaí é o novo nome da justiça comprometida com o golpe. E a ciência vem a ser os meios de espionagem e montagem sobre os inimigos que se quer denunciar. Mas não nos percamos, porque Machado de Assis observa:
É claro que em “patologia cerebral” está uma metáfora para a “corrupção que interessa”. E por médico se deseja falar “juiz federal especializado pelo Departamento de Estado do governo dos Estados Unidos”, que não forma ninguém sem a doutrinação da ideologia imperialista. E por “saúde da alma” entenda-se a limpeza Lava Jato. Mas vamos adiante, porque agora começa a verdadeira antecipação do gênio de Machado.
Observem que assim disposto a pesquisar a corrupção onde interessa, não faltariam mesmo corruptos, de toda a família dos deserdados da ética. A Casa Verde, o outro nome antecipatório da cadeia da Polícia Federal em Curitiba, virou uma povoação. Nos cubículos, nas celas já não cabem tantos corruptos, falsos corruptos ou quem o alienista Moro desejar como corrupto. E Machado de Assis esclarece:
E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário”.
Mas não é extraordinário? Está aí o método de investigação de Sérgio Moro. Extraordinária é a previsão em mais de 130 anos do bruxo do Brasil. Olhem só se não é verdade: a divisão entre os loucos, os corrutos furiosos e mansos. Para os primeiros, o peso da lei que alcança todo e qualquer delinquente popular. Para os segundos, os mansos, o que vale dizer, para os que colaboram com a delação premiada, a suavidade e o melhor tratamento. Isso feito, passa-se à análise dos dossiês, dos hábitos, simpatias, palavras, gestos e tendências dos escolhidos furiosos, que loucos apoiaram os governos Lula e Dilma. Daí se vai aos antecedentes familiares, à vida pessoal, “a uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor”. E a cada dia, a cada semana, uma descoberta interessante. O escritor disse tudo ou não? Mas o velho Machado foi mais longe:
O que me dizem? Notam a previsão absoluta do princípio acanalhado da delação premiada? Na delação, ou nos chamados com pompa de “processos investigatórios”, há curso e experiência até mesmo para a mais simples mentira. Mas não nos percamos, porque o melhor virá adiante. Atentem porque assim falou Sérgio Bacamarte, ou melhor, Simão Moro, quero dizer, Simão Sérgio Bacamarte Moro:
Isso quer dizer: a corrupção, que no começo deveria ser uma ocorrência isolada, como se fosse uma ilha de pecado em um mar de virtude, vê-se agora que é maior. Ou seja: em um sistema corrupto por essência, gênese, nascimento e destino, Simão Moro Bacamarte ainda vai descobrir o capitalismo, esse verdadeiro continente. Ou como escreveu e antecipou Machado de Assis:
– Suponho o espírito humano uma vasta concha. O meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”
Mas onde está a razão, ou a decência, ou a pura honestidade? Devemos dizer, onde se encontra a perolazinha da concha no oceano da corrupção que existe desde que o mundo é mundo e o Brasil é Brasil? Por isso, no seu desdobramento, na Itaguaí de O Alienista houve uma revolta. Assim antecipou Machado de Assis:
Mas este é o caso, hoje: Sérgio Moro Bacamarte perdeu a credibilidade de encarcerar corruptos. Há muitos e infinitos para os quais ele faz vista de mercador. E mercador, no mercado, é profissão bem própria. Por isso previu Machado:
Ou seja, pelo alcance selecionado de corruptos, dirigido, quem garantiria que o corrupto maior não é o caçador de corruptos? Se nos permitem parodiar o gênio de Machado, perguntamos: vocês sabem a razão por que o juiz Sérgio Moro não vê as suas elevadas qualidades de juiz arbitrário, de servidor de golpistas, de mentiroso cínico e primeiro no pódio da perseguição que deseja destruir a economia do Brasil? A resposta: é porque ele tem ainda uma qualidade que realça todas as outras: a modéstia.
E por fim, assim concluía Machado de Assis o perfil que traçou para Simão Bacamarte, alter ego de Sérgio Moro:
Ao que concluímos nós, mais uma vez no rasto do nosso Machado de Assis: a vaidade, em si, é um princípio de corrupção.
* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude