Urariano Mota: Poesia maldita, poesia marginal do Recife

Diferente dos grandes – e aqui vai a sua marca, o seu ferrete, o seu estigma –, esses poetas estavam todos com raiva e ódio deste mundo.

Ainda existem condições para uma arte rebelde e feroz no Brasil. Ela já está acontecendo, apesar de não aparecer na mídia. Em que lugar então ela ocorre? No Sul ou no Sudeste, vá à periferia. Ou venha para o Nordeste, e acompanhe os poetas independentes do Recife, por exemplo, da chamada “poesia marginal”. A humanidade resiste em formas que ainda não estão divulgadas.

Em 2007, publiquei no La Insignia que a poesia marginal de Pernambuco era um oceano que a imprensa não via. Eram mais de 50 poetas, das mais ricas tendências, que se apresentavam nos palcos, em shows, em recitais. Os seus poemas circulavam, como eles próprios, em edições pequenas, de tiragens pequenas, de circulação pequena, a preço de duas cervejas. Daí o vulgo e a vulgar concluíam que eram poetas pequenos. E, justiça seja feita, era um ranking bem desigual.

Diferente dos grandes, eles não eram apresentados pela mais douta e circunspecta crítica, aquela que descobria em cada obra uma reedição de Baudelaire, de Elliot. Diferente dos grandes – e aqui vai a sua marca, o seu ferrete, o seu estigma –, esses poetas estavam todos com raiva e ódio deste mundo. Ora, como falar bem de indivíduos que desejavam o fim dos nossos empregos, a morte dos nossos patrões, poetas que que vêm para a destruição em hordas kamikazes? E no entanto, quem não ouviu Miró, quem não ouviu a palavra de França, a repetir como uma lâmina que fere em recital, “pensar dói, pensar dói”, não conhecia ainda a fruição da poesia que é música. Suas apresentações suspendiam a estupidez do cotidiano. Não sei se me expresso bem, mas eu sentia nas suas apresentações um gozo musical da inteligência.

Chico Espinhara, um dos seus líderes, cantava:

Recife, musa, maldição
Cadela suja, traiçoeira
Seta certeira
Encantada cidade do cão

Erickson Luna, de vida anárquica até dormir nas ruas, avisava:

porque sou suor
a cachaça e a lama
das chuvas que caem
em Santo Amaro das Salinas

Sobre poesia tão viva e rebelde, melhor divulgar breve, em resumo, três perfis sobre os poetas marginais do Recife:

Valdemilton Alfredo de França, o poeta França, nasceu no ano de 1955, no Engenho Pirapama, Cabo de Santo Agostinho. Foi, é um dos poetas mais rebeldes e subversivos da poesia em Pernambuco. Ele enganava a quem o via sem os seus poemas. Mas a fala mansa, o rosto pacífico e o sorriso tranquilo mudavam quando escrevia, falava e cantava uma poesia feroz e fina com a ira dos justos. Sua obra completa, ou melhor, a obra que ele não pôde completar como a desejava, está reunida em Poeminflamado.

CONSTATAÇÃO
(França)

Onde foi que eu perdi
A minha naturalidade?
Que gesto ou palavra aprisionou
A minha espontaneidade?
Ou foi a mão do meu pai, fazendo nãos,
Antecipando-se ao meu ato,
Precipitando-se ao meu gesto…
Ou será porque sou negro, quero dizer,
Todos os negros são assim?
Por quê este olhar desconfiado
Meu, do meu pai, do meu avô
De quem não sabe se tem permissão
Para rir, chorar, gritar, gemer, gozar?
Permissão pra reclamar, se irritar, se exceder;
Permissão para mijar, permissão para ser,
Para ter, para estar?
Ainda chamam de arrogante
O negro que não tem o olhar subserviente: Negro Besta.
Eu passei a minha vida inteira pedindo desculpas:
“Desculpe-me por estar aqui… por ter que me ver.”
Sr. Analista: Em que momento da minha vida
Me tornaram assim? A que tipo de lavagem me submeteram?
Quanto tenho que pagar para ter de volta minha cidadania?
Estudar pra ser Doutor?
Pergunte ao Dr. Negro o que ele teve de fazer pra ser Doutor
Ser jogador de Futebol?
Até Romário tem os olhos baixos, ou melhor,
Pergunte a ele se ele é negro.
Não, não adianta dizer que a escravidão acabou.
Eles ainda são senhores de todos os nossos passos
Antes, da nossa vida, nosso corpo;
Hoje das nossas mentes e dos nossos destinos.
Elegem um negro e dizem: Você é o nosso rei.
Desde que nos diga que é rico
E a eles que é branco!
Cabe-nos fazer alarido para despertar Zumbi
O Zumba que hoje dorme em cada um de nós.
Fazer uma guerra, sem tréguas, sem bombas, sem par
Uma guerra na rua, no trabalho, na escola, na casa:
OLHAR COM ALTIVEZ! E NUNCA NA VIDA A CABEÇA BAIXAR

Sobre o poeta Miró, destaco o que há sete anos publiquei sobre ele no Dicionário Amoroso do Recife:

A quem não o conhece, a sua pessoa, física, guarda uma grata e grada graça: Miró tem a pele escura, e, ladies and gentlemen, não finjam por favor naturalidade. Mesmo em um povo mestiço, Miró é uma exceção: as pessoas sensíveis, até mesmo no Brasil, têm uma estranha gradação na cor da pele da sua sensibilidade. Quanto mais claros, mais poetas. Quanto mais escuros, mais trabalhadores braçais, ou, se forem artistas, mais jogadores de futebol. Mas a melhor surpresa de Miró vem da sua poesia.

O amor passou na tarde
Com a mão direita sobre o ombro de um
 filho com síndrome de Down…
Aldeota, um jumento espera inquieto a
volta do seu dono que foi tomar uma
sopinha com pão, com o dinheiro das
migalhas que catou.
E eu fiquei tão emocionado,
Que não consegui escrever mais nada

Ou

Deus, Tu que agora carregas um homem,
Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns
 sacos de cimento
 De cada lado um sol insuportável…
 Deus,
 Choves agora no meu coração
 Para que eu não pense em comprar um
 guarda-chuvas de balas
 E fazer justiça com as próprias mãos

E sobre Valmir Jordão, estas linhas do Dicionário Amoroso do Recife:

O poeta Valmir Jordão sempre surpreende. De repente, ele pode aparecer com a cabeça rapada, de chapéu e óculos escuros e não será bem uma nova performance. Será um novo personagem, um heterônimo vivo, porque não quer ser um poeta morto. E mostrará, como explicação, seis marcas de bala no corpo, nada fictícias, lembranças de um antigo atentado, de sua luta pela cidadania. Em outra oportunidade, chegará zen, calmo, como um ser surgido na fumaça do Recife. Em uma terceira oportunidade estará deprimido, amargo. E a causa da tristeza não será bem filosófica, mas a nada poética razão de não ter onde morar. Que não assobia como um samba de Caymmi.

Valmir Jordão é autor de um poema que hoje corre mundo, tão antológico que virou quase domínio público. Como este:

Coca para os ricos
Cola para os pobres
Coca-Cola é isso aí

O poeta Valmir Jordão

Ele é autor, também, de poemas que falam não só dos marginalizados, mas como um próprio marginalizado, de consciência poética. Como este aqui, por exemplo:

AH, RECIFE

Dizem os bardos que uma cidade
é feita
de homens,
com várias mãos
e
o sentimento do mundo.
Assim Recife nasceu no cais
de um azul marinho e celestial,
onde suas artérias evocam:
Aurora, Saudade, Concórdia,
Soledade,
União, Prazeres, Alegria e Glória.
Mas nos deixa no chão,
atolados na lama
de sua indiferença aluviônica:
a ver navios com suas hordas
invasoras
e o Atlântico
como possibilidade
de saída…

E para ser menos injusto, porque deveria divulgar pelo menos 50 grandes poetas marginais do Recife, copio estes poemas:

DESUMANO
(Francisco Espinhara)

Dá-me Deus um deus melhor
Não este deus azul
Este deus que as mãos cálidas clamam
Este deus senecto, rendez-vous.
Dá-me Deus um deus diferente, menor
Um deus com a cara suja de poeira
E que deite e durma e sonhe
E que se sente à mesa e coma
Os frutos que da terra hão de vir
Cantarole, lírico, uma velha canção
Depois desate a sorrir.
Dá-me Deus um deus humano
Como deus outro nenhum
Sem quaisquer obrigações divinas
E que ante a realidade das ruínas
Não se preste a milagres
Nem se preste a jejum
Dá-me Deus um deus comum

DESENCONTRO
(Lara)

era tão conotativo
mas tão conotativo
era tão hermético
mas tão hermético
era tão indireto
mas tão indireto
que ele disse
luz
e eu pensei
que ele havia dito
nada

CARROCEIRO TRANSCENDENTAL
(Malungo)

Lá em Peixinhos, a arte mora na favela.
As bandas, o lixo do Beberibe:
É o groove suburbano!
Goiamuns plugados se esbarram nas vielas.
Todas as orelhas do mundo viradas para
Recife.
Só aqui, não se ouve o novo som
Pernambucano.
A luz do sol se reflete nas águas sujas do rio
(nos zincos dos barracões).
Urubus dão rasantes nas montanhas de lixo.
Nas carroças ferro velho, tralhas e
papelões,
Carne de rato; pés sujos nos telhados da
consciência.
Mocambos, almas encardidas
e balas perdidas sem clemência.
Geladeiras incandescentes iluminam a tua
cozinha.
Paredes transparentes revelam as terceiras
intenções.
Coloque o plugue e peça linha.
Viaje chutado, num burro sem rabo
rumo a outras dimensões.

ECCE HOMO
(Erickson Luna)

Saiam da minha frente
matem-se
morram-se
deixem livre
o meu campo de visão
Me entristece conceber
a semelhança que nos une na semente
quem é que pode
ser feliz se vendo gente
Portanto
saiam da minha frente

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2 comentários para "Urariano Mota: Poesia maldita, poesia marginal do Recife"

  1. Risomar.Fasanaro disse:

    Que maravilha ver este sangue vivo dos poetas de minha terra. Que beleza ver neles a dor de viver num país preconceituoso, violento em que negros e mulheres são mortos em estações de caça. Como fazer para adquirir os livros desses poetas?
    Parabéns Urariano por esta bela de forte apresentaçao.

  2. Urariano Mota disse:

    Cara amiga Risomar, vi somente agora o seu comentário. Grato, escritora pernambucana a morrer de saudade em São Paulo. Abraço.

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