Como é a rotina de uma ocupação em Barcelona

Por Bruno Fiúza, de Barcelona (Espanha), para o jornal Brasil de Fato


Ao lado da praça Karl Marx em Barcelona há uma pequena passagem para um outro mundo possível. No ponto em que o asfalto da cidade cede espaço às montanhas da serra de Collser

Em frente a um dos blocos de concreto onde está presa a corrente, há uma placa que informa sobre o destino daquele caminho: ele leva ao vale de Can Masdeu, onde este outro mundo já funciona há quatro anos e meio.


 


Atravessando a corrente e deixando para trás todo o cimento e as buzinas, entra-se em um bosque de rica vegetação temperada onde o que impera é o canto dos pássaros e das cigarras. Ao cabo de alguns minutos de caminhada sob o ainda suave sol das primeiras horas da manhã se avista o prédio de Can Masdeu – um antigo leprosário abandonado nos arredores de Barcelona que finalmente foi okupado em dezembro de 2001 quando se iniciou um experimento que os próprios okupantes definem como okupação “rururbana,” uma ponte entre a cidade e o campo.


 


Vista desde longe, Can Masdeu é uma imagem um pouco paradoxal, já que a antiguidade e o desgaste da construção da casa e dos muros contrasta com a vitalidade das hortas plantadas nos terraços naturais que a rodeam como se fosse uma espécie de escada feita pela natureza.


 


Conforme chega-se mais perto da casa, o misto de encanto e estranheza, ao invés de diminuir, aumenta. A começar pelos coletores de energia solar térmica construídos pelos próprios moradores para esquentar a água da cozinha e do banho que estão montados nos pátios externos.


 


Levantando um pouco o olhar em direção a uma das varandas do segundo andar da casa, lá está uma das bicicletas também fabricadas pelos moradores pendurada na janela. Por fim, quando o olhar encontra o céu, lá está a sempre presente bola cortada por um raio, que é o símbolo do movimento okupa, feita em ferro e cravada no teto da casa.


 


Mas por enquanto ainda não é o momento de entrar. É terça-feira, e portanto, durante as primeiras horas da manhã, quando o sol ainda não está tão forte, é o momento de trabalhar na horta comum que abastece a casa com todos os vegetais consumidos por seus moradores.


 


Como é julho e estamos em pleno verão – no qual pelo segundo ano consecutivo Barcelona não vê uma chuva decente há cerca de três meses -, a tarefa de hoje consiste em arrancar as ervas daninhas e cobrir as áreas plantadas com palha para preservar o solo do contato direto com o sol.


 


Quando os raios de sol ficam mais fortes e o trabalho naquele pedaço da horta termina é o momento de tomar um banho em um grande tanque abastecido pela água que chega de duas minas no interior da montanha, através de um sistema hidráulico construído pelos moradores e que abastece todas as necessidades da casa, desde encher o tal tanque até irrigar as plantações das hortas particulares e comunitárias que se estendem pelo vale onde está Can Masdeu, passando por todas as necessidades de consumo cotidiano de seus habitantes, como água para banho, cozinha e para beber.


 


Saindo do banho, é a hora de entrar de fato na casa, passando logo na entrada pela oficina onde são construídas as bicicletas a partir da reciclagem de peças antigas para a construção de modelos próprios que são vendidos a quem possa interessar.


 


Passando pelo estacionamento de bicicletas – o meio de transporte geral dos que vivem aí -, e subindo a escada, chega-se finalmente à sala de atividades manuais e computadores, alimentados de energia através de um ponto pirateado da rede oficial de distribuição e com acesso à internet através de uma conexão sem fios (Wi-Fi), captando o sinal emitido de outro ponto da serra pelo servidor de uma cooperativa de acesso à internet Wi-Fi, montada pelos movimentos sociais de Barcelona.


 


Recentemente a casa também passou a contar com um telefone que faz ligações através da rede virtual global. Ao lado da sala de computadores, está a sala de assembléias, onde os atuais 28 moradores se reúnem semanalmente para gerir o funcionamento do espaço de maneira autogestionária.


 


Mas a assembléia não é o único momento de reunião das pessoas que vivem em Can Masdeu. Todo dia o ponto de encontro é também em volta da mesa, quando, ao ouvir o badalar da campainha da cozinha, todos se juntam ao redor de uma grande mesa no pátio para comer os pratos preparados com os vegetais produzidos pelas próprias hortas comunitárias da casa e os demais alimentos secos (arroz, massa, grãos, etc) comprados diretamente dos produtores através de uma cooperativa de consumo agroecológico.


 


Terminado o almoço, é hora de limpar tudo e jogar as sobras em um container onde o material orgânico é processado para depois ser usado como adubo para fazer crescer as sementes estocadas no próprio banco de sementes da casa, fazendo do plantio uma atividade totalmente autosuficiente.


 


Para fazer a digestão, nada melhor que um passeio pelos diversos espaços da okupação para conhecer um pouco a mini-fábrica de cerveja artesanal também comercializada por um grupo de moradores (que não deixa de ser uma tentativa de substituir as marcas comerciais nas festas realizadas nas diferentes okupações de Barcelona) ou a lavadora de roupas que centrifuga à base de pedaladas de uma bicicleta acoplada.


 


Finalmente, o passeio termina no último andar da casa, onde funciona um Centro Social que a cada domingo abre suas portas para que as pessoas de fora da casa tenham acesso à biblioteca dedicada a temas como política, ecologia e okupação e a distribuidora de materiais informativos produzidos por pessoas da casa, um bar onde é vendida a cerveja artesanal (entre outras coisas) e uma “loja grátis”, local onde os freqüentadores podem trocar suas roupas antigas por peças deixadas por outras pessoas.


 


Pronto, agora, que já terminou a agradável conversa pós-almoço e o sol novamente já não está tão alto, é o momento de tomar de novo o caminho de terra, desta vez, em sentido contrário, de volta àquele outro mundo, o do turismo selvagem, dos negócios sem escrúpulos e da especulação imobiliária feroz.


 


No meio do caminho que conduz à saída de Can Masdeu, há um andaime de fabricação própria que certamente está sendo utilizado para construir o novo forno para a produção do pão que também é comercializado externamente ou reformar alguma parte antiga da casa, da mesma forma como seus moradores vêm fazendo ao longo dos últimos quatro anos – quando entraram neste leprosário abandonado e o transformaram em uma agradável casa, construindo desde a nova cozinha até as fiações e o sistema de abastecimento de água, sempre com os materiais reciclados que recolhem e guardam nos depósitos de madeira, metal, vidro e panos, entre outros.


 


Conforme o caminho de terra vai se aproximando do asfalto, Can Masdeu vai ficando mais para trás, mas sempre há a praça Karl Marx para lembrar que as coisas podem ser diferentes… e Can Masdeu para mostrar na prática que outro mundo é possível, aqui e agora.


 


Seis andares de frente para o mar


 


“Miles é um barco pirata… ou uma máquina de guerra.” É assim que o poeta Vicente Escolar define a okupação na qual mora há cerca de um ano e meio. Miles de Viviendas é é um prédio de seis andares com dois apartamentos por planta, totalmente okupado por um coletivo que se juntou em 2003 na época das mobilizações contra a Guerra do Iraque em Barcelona para responder à pergunta “Qual é a sua guerra?”.


 


A resposta à qual chegaram é de que sua guerra era contra a precarização da vida em todos os seus âmbitos: trabalho, moradia, cultura e tantos outros.


 


Começaram a varrer a metrópole com suas milhares de práticas piratas decidindo buscar um espaço de vida através de uma okupação, que foi rapidamente desalojada em setembro de 2003.


 


Não se fizeram de rogados e partiram para uma nova incursão, desta vez em um edifício que pertencia à maior imobiliária espanhola. Aí ficaram quase um ano, mas finalmente foram novamente jogados ao mar até que finalmente ancoraram no porto velho de Barcelona, mais especificamente em um prédio que estava abandonado há 8 anos e cujo título de propriedade é disputado pela Guardia Civil e uma entidade semi-pública que administra o porto velho da cidade.


 


Miles é uma okupação atípica em muitos aspectos, a começar por onde está. Foi a primeira okupação realizada no bairro da Barceloneta, de frente para o mar, região da cidade que até então era um pouco terreno desconhecido para a okupação.


 


O resultado é que agora o turista americano que se levanta do sofisticado restaurante para dar uma volta pela beira do porto pode dar de cara com cartazes pedindo a liberação dos presos anarquistas barceloneses em uma tarde de domingo.


 


Vicente diz que okupar e mangar de grandes lojas são algumas das diversas práticas piratas através das quais uma pessoa pode transformar sua própria vida em um campo de batalha, o que, segundo ele, significa “colocar mais incertezas sobre a própria incerteza. A precariedade é colocar um marco de incerteza que te faz ter mais medo, que tudo se torne mais incerto. Estas práticas piratas de alguma maneira o que fazem é te situar de outra maneira na vida. As práticas piratas são um pouco isso: caminhar de outra maneira pela rua.”


 


Parte das pessoas que participam hoje do coletivo de Miles de Viviendas saíram de um outro coletivo mais antigo chamado Oficina 2004. A Oficina, por sua vez, nasceu de uma tentativa frustrada, em 1997, e entre os diversos projetos que realizou está a campanha do “Dinero Gratis,” que incentivava as pessoas a darem dinheiro umas às outras.


 


Marina Garces é outra integrante da Oficina 2004. Segundo ela, a campanha do “Dinero Gratis” “saía um pouco da nossa reflexão interna sobre a crítica ao trabalho hoje baseada no desejo de trabalhar menos, de viver de outra maneira. O dinheiro é hoje o código para estar ou não na realidade. Hoje, a identidade de trabalhador não te vincula à sociedade, o que te vincula hoje à sociedade é poder ou não pagar a hipoteca, e ninguém vai te perguntar de onde tira o dinheiro. 'Dinero Gratis' era um pouco incidir sobre esta nova relação com o dinheiro que a política clássica não quer assumir porque ainda vive desta tradição de dizer que dinheiro é feio.”


 


Marina admite, no entanto, que a crítica ao trabalho assalariado enfrenta uma barreira bastante concreta, e que o mais longe que conseguiram chegar as tentativas de se desvincular do trabalho assalariado estiveram sempre ligados à possibilidade de viver na okupação. No entanto, mesmo okupando, os moradores de Miles continuam tendo que trabalhar, de uma maneira ou de outra, enquanto vão tirando coelhos, vinhos e casas da cartola.



 
Uma okupação que une jovens e idosos


 


O esteriótipo do okupa é a imagem de um punk sujo e largado que vive perambulando pelas ruas com um cachorro e uma flauta, revirando lixos em busca dos produtos que os supermercados deixam de vender por apresentar algum pequeno defeito.


 


Qual não será a surpresa, portanto, de quem visite Cal Suiss, uma antiga masia (pequena propriedade rural típica da Catalunha) abandonada há dois anos e meio que foi okupada não por jovens anarquistas ou independentistas, mas sim por uma associação de vizinhos de Esplugues, uma cidade da região metropolitana de Barcelona, que reivindicava que a casa abandonada fosse aberta ao público para que a comunidade pudesse utilizá-la para realizar suas atividades.


 


A prefeitura de Esplugues havia prometido abri-la ao público, uma vez que adquirisse o imóvel. Uma vez adquirida a propriedade da masia, no entanto, a prefeitura anunciou que queria doá-la a uma fundação beneficente privada que administra o hospital Sant Joan de Deu, que fica próximo à casa.


 


Diante do anúncio da prefeitura, os moradores então okuparam a antiga masia e a transformaram em um espaço autogestionado pela comunidade de Esplugues, lugar onde jovens de seus 20 e poucos anos debatem na assembléia com anciões que beiram seus 80 anos para decidir os rumos dados ao espaço, que conta inclusive com uma escola para crianças.