Sem categoria

John Pilger: 'Como o Reino Unido faz a guerra'

Os militares britânicos criaram uma muralha de silêncio em torno do recurso frequente que fazem a práticas bárbaras, incluindo a tortura, e não poupam esforços para evitar exporem-se à lei.


 


Por John Pilger, reproduzido do Resisti

Cinco fotografias juntas rompem o silêncio. A primeira é de um antigo primeiro sargento de regimento, Tul Bahadur Pun, de 87 anos. Ele sentou-se numa cadeira de rodas em frente à Downing Street nº 10. Tem uma placa cheia de medalhas, incluindo a Victoria Cross, o mais alto prêmio por bravura, ganho a serviço do exército britânico.



Foi-lhe recusada entrada no Reino Unido e o Serviço Nacional de Saúde recusou-lhe o tratamento de uma grave doença do coração: escândalos só anulados após uma campanha pública. Em 25 de junho ele veio à Downing Street para devolver a sua Victoria Cross ao primeiro-ministro, mas Gordon Brown recusou-se a vê-lo.



A segunda fotografia é de um rapaz de 12 anos, um de três irmãos. Eles são kuchis, nômades do Afeganistão. Foram atingidos por bombas da Otan, americanas ou britânicas, e enfermeiras estão a tentar remover sua pele queimada com pinças. Na noite de 10 de junho, aviões da Otan atacaram outra vez, matando pelo menos 30 civis numa única aldeia: crianças, mulheres, professores, estudantes. Em 4 de julho, outros 22 civis morreram tais como estes. Todos, incluindo a criança queimada, são descritos como “militantes” ou “talibãs suspeitos”. O secretário da Defesa, Des Brown, diz que a invasão do Afeganistão é “a nobre causa do século 21”.



A terceira fotografia é um desenho feito em computador, de um porta-aviões ainda não construído, um dos dois maiores navios alguma vez já encomendados pela Royal Navy. O contrato de 4 bilhões de libras (ou 1,25 bilhões de euros) é participado pela BAE Systems, cuja venda de 72 caças de combate à corrupta tirania na Arábia Saudita tornou o Reino Unido o maior mercador de armas sobre a Terra, vendendo principalmente para regimes opressivos em países pobres. Num momento de crise econômica, Browne descreve os porta-aviões como “uma despesa comportável”.



A quarta fotografia é de um jovem soldado britânico, Gavin Williams, que foi brutalizado até à morte por três oficiais não comissionados (non-commissioned officers). Esta “punição sumária informal”, a qual elevou a temperatura do seu corpo a mais de 41 graus, foi destinada a “humilhar, levar ao limite e ferir”. A tortura foi descrita em tribunal como um fato da vida militar.



A fotografia final é de um iraquiano, Baha Mousa, o qual foi torturado até à morte por soldados britânicos. Tomada durante a sua autópsia, ela mostra alguns dos 93 ferimentos que ele sofreu às mãos dos homens do Queen's Lancashire Regiment que bateram e abusaram dele durante 36 horas, o que incluiu colocar dois capuzes feitos de sacos de estopa para sufocá-lo com calor. Era recepcionista de um hotel. Embora o seu assassinato se tenha verificado há cinco anos atrás, só em maio deste ano é que o ministro da Defesa respondeu aos tribunais e concordou num inquérito independente. Um juiz descreveu isto como uma “muralha de silêncio”.



Uma corte marcial condenou apenas um soldado pelo “tratamento desumano” de Musa, e ele foi tranquilamente libertado. Phil Shiner, do Public Interest Lawyers, representando as famílias de iraquianos que morreram sob a custódia britânica, afirma que a evidência é clara — o abuso e a tortura por parte do exército britânico é sistemático.



Shine e seus colegas têm declarações de testemunhas e confirmações de crimes prima facie de uma espécie especialmente atroz habitualmente associada aos americanos. “Quanto mais casos eu trato, pior isto fica”, diz ele. Isto inclui um “incidente” perto da cidade de Majar al-Kabir em 2004, quando soldados britânicos executaram até 20 prisioneiros iraquianos depois de mutilá-los. A última é de um garoto de 14 anos que foi forçado a simular sexo anal e oral durante um período prolongado.



“No cerne do projeto americano e britânico”, afirma Shiner, “está um desejo de evitar a responsabilidade pelo que querem fazer. A Baía de Guantânamo e as transferências (renditions) extraordinárias fazem parte da mesma luta para evitar a responsabilidade jurisdicional”. Os soldados britânicos, afirma ele, utilizam as mesmas técnicas de torturas dos americanos e negam que a Convenção Européia dos Direitos Humanos, Human Rights Act e a Convenção da ONU sobre tortura se lhes aplique. E a tortura britânica é “corriqueira”: em tal extensão que “a natureza de rotina deste mau tratamento ajuda a explicar porque, apesar de o abuso dos soldados e os gritos dos detidos serem claramente audíveis, ninguém, particularmente entre as autoridades, preste qualquer atenção”.



Inacreditavelmente, afirma Shiner, o ministro da Defesa sob Tony Blair decidiu que a proibição de 1972 do governo Heath a certas técnicas de torturas seriam aplicadas apenas no Reino Unido e na Irlanda do Norte. Consequentemente, “muitos iraquianos foram mortos e torturados em instalações de detenção do Reino Unido”. Shiner está a trabalhar em 36 casos horrendos.



Uma muralha de silêncio sempre cercou os militares britânicos, seus rituais herméticos, ritos e prática e, acima de tudo, seu desprezo pela lei e pela justiça natural nas suas várias ocupações imperiais. Durante 80 anos o Ministério da Defesa e ministros aquiescentes recusaram-se a permitir perdões póstumos para rapazes aterrorizados fuzilados de madrugada durante a carnificina da Primeira Guerra Mundial. Soldados britânicos utilizados como cobaias durante os testes de armas nucleares no Oceano Índico foram abandonados, tal como foram muitos outros que sofreram os efeitos tóxicos da Guerra do Golfo de 1991. O tratamento do gurkha Tul Bahadur Pun é típico. Tendo sido enviados de volta ao Nepal, muitos destes “soldados da Rainha” não têm pensão, estão profundamente empobrecidos e é-lhes recusada residência ou ajuda médica no país pelo qual combateram e pelo qual 43 mil deles morreram ou foram feridos. Os gurkhas ganharam não menos de 26 Victoria Crosses, mas a “despesa comportável” de Browne exclui-os.



Uma ainda mais imponente muralha de silêncio assegura que o público britânico permaneça amplamente inconsciente da matança industrial de civis nas modernas guerras coloniais britânicas. Na sua obra fundamental Unpeople: Britain's Secret Human Rights Abuses, o historiador Mark Curtis utiliza três categorias principais: responsabilidade direta, responsabilidade indireta e inação ativa.



“O número total [desde 1945] está entre 8,6 e 13,5 milhões”, escreve Curtis. “Destes, o Reino Unido arca com a responsabilidade direta por quatro a seis milhões de mortes. Este número é, na verdade, provavelmente uma subestimação. Nem todas as intervenções britânicas foram incluídas, devido à falta de dados”. Desde que o seu estudo foi publicado, o número de mortos no Iraque atingiu, por medição confiável, um milhão de homens, mulheres e crianças.



A ascensão em espiral do militarismo dentro do Reino Unido raramente é reconhecida, mesmo por aqueles que alertam o público para legislação que ataca liberdades civis básicas, tais como o recentemente rascunhado Data Communications Bill, o qual dará poderes ao governo para manter registos de toda comunicação eletrônica. Tal como os planos para cartões de identidade, isto é para manter o que os americanos chamam “o estado de segurança nacional”, o qual procura o controle de dissidentes internos enquanto prossegue a agressão militar no estrangeiro. O porta-aviões de 4 bilhões de libras destina-se a um “papel global”. Por global leia-se colonial. O Ministério da Defesa e o Foreign Office seguem a linha de Washington quase ao pé da letra, como na afrontosa descrição de Brown do Afeganistão como sendo uma nobre causa. Na realidade, a invasão da Otan inspirada pelos EUA tem tido dois efeitos: a morte e expulsão de grande número de afegãos; e o outro o retorno do comércio do ópio, o qual fora banido pelo Talibã. Segundo Hamid Karzai, o líder fantoche do ocidente, o papel britânico na província Helmand levou diretamente ao retorno dos Talibã.



A militarização com que o Estado britânico percebe e trata outras sociedades é vivamente demonstrada na África, onde dez dos 14 países mais empobrecidos e assolados por conflitos são seduzidos a comprar armas e equipamento militar britânico com “empréstimos suaves”. Tal como a família real britânica, o primeiro-ministro britânico simplesmente segue o dinheiro. Tendo ritualmente condenado um déspota no Zimbábue por “abusos de direitos humanos” — na verdade, por não servir mais como agente de negócios do ocidente — e tendo obedecido ao mais recente ditado americano sobre o Irã e o Iraque, Brown recentemente foi à Arábia Saudita, exportadora do fundamentalismo wahhabita e local de fabulosos comércios de armas.



Para complementar isto, o governo Brown está a gastar 11 bilhões de libras do dinheiro dos contribuintes numa enorme academia militar privatizada em Gales, a qual treinará soldados estrangeiros e mercenários recrutados para a falsa “guerra ao terror”. Com companhias de armas tais como a Raytheon a lucrar, isto tornar-se-á a “School of the Americas” britânica, um centro para treinamento (terrorista) de contra-insurgência e para a concepção de futuras aventuras coloniais.



Isto quase não teve publicidade.



Naturalmente, a imagem do Reino Unido militarista choca-se com um aspecto nacional benigno formado, escreveu Tolstoi, “desde a infância, por todos os meios possíveis — livros escolares, serviços de igreja, sermões, discursos, livros, jornais, canções, poesia, monumentos [levando o] povo estupefato numa só direção”. Muita coisa mudou desde que ele escreveu isso. Ou não? A deteriorada e destrutiva guerra colonial no Afeganistão é agora relatada quase inteiramente através do exército britânico, com soldados (squaddies) sempre a fazerem o melhor do seu Kipling, e com a resistência afegã rotineiramente tratada como “gente de fora” e “invasores”. Fotografias de garotos com a pele queimada pela Otan quase nunca aparecem na imprensa ou na televisão, nem tão pouco os efeitos posteriores das armas termobáricas britânicas, ou “bombas de vácuo”, concebidas para sugar o ar para fora dos pulmões humanos. Ao invés disso, páginas inteiras choram uma agente da inteligência militar britânica com bronzeado afegão, porque acontece ter sido uma mulher de 26 anos, a primeira a morrer em serviço ativo desde a invasão de 2001.



Baha Mousa, torturado até à morte pelos soldados britânicos, também tinha 26 anos. Mas ele era diferente. Seu pai, Daoud, diz que o modo como o Ministério da Defesa comportou-se em relação ao seu filho convence-o de que o governo britânico considera as vidas dos outros como “baratas”. E ele está certo.



O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=496