EUA: convulsão financeira e o mito da hegemonia “sem fim”

Decadente, o império norte-americano encontra-se às portas de uma gravíssima crise social. Não bastassem as extraordinárias assimetrias (econômicas, políticas e sociais) que se amplificaram ao longo dos últimos 30 anos, aproximadamente, desabou o terre

Na verdade, a situação já começa a ficar tenebrosa. Dias atrás, na Califórnia, um administrador de fundos de investimento, diante de uma perda milionária, matou a família e se suicidou; em Ohio, uma viúva de 90 anos suicidou-se com um tiro, após receber ordem de despejo; em Massachusetts, a dona de casa Carlene Balderrama escreveu à empresa de financiamento de sua hipoteca: “No momento em que vocês oficiarem a ordem de execução de minha casa já estarei morta” [1]; dito e feito.


 


“Catástrofe humanitária”. Se a Grande Depressão dos anos 30 foi a maior catástrofe do século 20 – que levou à ascensão de Hitler e à Segunda Guerra Mundial – assusta-se o liberal-monarquista Martim Wolf – “é possível apenas imaginar o que horrores de uma depressão poderia trazer agora”[2].


 


Mas por que diabos “é possível apenas imaginar” horrores? É que o capitalismo da “revolução financeira” que o porta-voz da grande burguesia britânica Wolf (Financial Times), histriônico, adorava as lágrimas, era igualzinho aquele que o destacado pesquisador francês Jean Gradey denunciara: a responsabilidade direta das “políticas neoliberais” dos EUA, postas “a serviço de milionários e acionistas”, passaram a assegurar a apropriação, pelo 1% mais rico, de 2/3 de toda a renda nacional, entre 2002-2006 [3].


 


Conforme ainda a United for a Fair Economy, mensurado o período 1982-2004, as diferenças de renda entre brancos e negros poderia sofrer equiparação somente nos próximos 594 anos, sendo que agora está ocorrendo “a maior onda” de empobrecimento dos trabalhadores negros “da história moderna dos EUA”[4]. Espraiamento da crise social que virá incontornavelmente: em 2006 pesquisas assinalavam existir uma criança pobre em cada seis, nos EUA; ano este em que havia 2.258.983 de presidiários federais, estaduais e municipais cerca de 2,9% acima de 2005 [5].


 


Como recordei alhures [6], em O nascimento da tragédia (1872), Friedrich Nietzsche desenha uma moldura crítica de suposição notável: a expansão da civilização grega (o helenismo) – a mais bem-sucedida, bela e “mais invejada espécie de gente, precisamente eles”, diz embevecido –, gesta e vivencia a necessidade da tragédia. Para além, em seu ódio implacável e reacionário a tudo que considerava decadente na ideologia da época moderna, sentenciara que o único existente é o mundo aparente: o “mundo verdadeiro” não é mais do que “um acréscimo mentiroso” (Crepúsculo dos ídolos, 1888). As instituições liberais – fulminara Nietzsche – deixam de ser liberais assim que são alcançadas, e nada causa “prejuízos mais destruidores e radicais para a liberdade que as instituições liberais” (idem).


 


Metáforas aqui quase seriam desnecessárias. Crepúsculo e tragédia: chegou a grande crise capitalista da era do nouveaux liberálisme. Começou a desabar toda a engrenagem da globalização neoliberal, exatamente naquilo que se vendera aos simples mortais como o mundo verdadeiro, não aparente.


 


O neoliberalismo puro, sociopático, está morto – numa obscura era de incertezas, de quase certa “desordem hegemônica”. E o que passa a ser “irracional” agora é achar que é “mito” o crepúsculo da hegemonia norte-americana. Ou que ele vai renascer dessa crise revigorado.


 


A essência desse tipo de análise é nitidamente conservadora e termina por se colocar à direita, na interpretação dos fenômenos novos do sistema de relações iternacionais. O que nada tem a ver com os que acham que chegou a hora de organizar o funeral da hegemonia do império do Norte – qual nada!


 


O que se pode depreender facilmente do excelente artigo de Javier Santiso, que o


Vermelho republica abaixo, por sua importância.


 


Notas:


[1] Ademais, por toda parte, começam a superlotar os serviços de apoio psicológico, as linhas telefônicas de auxílio social estão congestionadas e os abrigos para mulheres vítimas da violência lotados! Informações de “Granma”, on Line, La Habana, 15/10/2008.
[2] In: “Congresso: risco de recessão vale a pena?”, de Wolf, Valor Econômico, 1/10/2008.
[3] Ver: “Todo un récord: hace 80 años que no había tanta desigualdad económica en EEUU”, de J. Gradey, in: www. rebelion.org (6/2008).
[4] Ver: “Estados Unidos en cifras. O vergonzoso estado de la Unión”, de Robert Weissman, in: CounterPunch, 25/1/2008.
[5] Weissman, op. Cit., com base em: “US DOJ, Office of Justice Statistics, Bureau of Justice Statistics”.
[6] Ver: “Convulsão financeira e bancarrota neoliberal”, de Barroso, O Jornal (AL), 24/9/2008.


 


O reequilíbrio do mundo


 


O capitalismo internacional presencia um giro de grande magnitude. À medida que a crise financeira das subprimes dos Estados Unidos contamina progressivamente a esfera da economia real, acelera-se o enfraquecimento da primeira potência econômica do Século 20, arrastando com ela parte dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Paralelamente, os países emergentes, encabeçados pela China, despontam com vigor: sem dúvida, este século será o dos emergentes.


 


Por Javier Santiso*, para o Valor Econômico


 


Nem tudo, porém, é novo debaixo do sol: há 150 anos, a China concentrava mais de 30% do PIB mundial, de acordo com as estimativas do economista Angus Maddison, publicadas pelo Centro de Desenvolvimento da OCDE. Poderia se dizer que o Século 20 foi apenas um parêntese na história econômica internacional e a China recobra agora a posição que não deixou de ter até o fim do Século 19. A grande diferença entre ontem e hoje é obviamente que o ressurgimento da China agora é diferente: ao contrário do ocorrido anteriormente, sua economia hoje aposta na inserção e abertura internacional.


 


O reequilíbrio que vivemos culminará mais cedo ou mais tarde na derrocada dos EUA como primeira potência mundial. O Goldman Sachs prognostica que assim será em 2025. Nas estimativas realizadas pelo Centro de Desenvolvimento da OCDE, a data é ainda mais próxima: 2015. Em outras palavras, amanhã. Não importa quando exatamente será a capotagem, o certo é que caberá a nossa geração vivenciá-la. Este reequilíbrio do mundo é maciço e generalizado: empresarial, comercial, financeiro e geoeconômico.


 


Do ponto de vista empresarial, assistimos ao auge das multinacionais de países emergentes. O acesso ao capital internacional, a um custo comparável ao de seus pares na OCDE, foi um fator decisivo na década de 90 que lhes permitiu focar em aquisições de ponta, inclusive em países da OCDE, que há apenas 10 anos estavam fora de alcance.


 


Dessa forma, a indiana Mittal arrebatou a européia Arcelor, a chinesa Lenovo levou os ativos da imensa IBM, dos EUA. A mexicana Cemex tornou-se, graças a aquisições na Espanha, Inglaterra e Austrália, a terceira maior produtora de cimento do mundo e a maior dos EUA.


 


No Brasil, emergiram empresas como a Petrobras, cujo valor de mercado supera qualquer empresa integrante do índice acionário referencial espanhol Ibex 35, e é superior às gigantescas Shell ou Wal-Mart. Sua compatriota Vale é, hoje, uma das maiores mineradoras do mundo, ao lado das anglo-australianas Rio Tinto e BHP Billiton. Na Índia, a Tata ganhou algumas jóias do antigo império britânico, comprando, uma após a outra, empresas simbólicas, como Tetley, Corus e, agora, Jaguar e Land Rover. Em 2007, os investimentos externos diretos de países emergentes no estrangeiro chegaram a 20% do total mundial. Há 20 anos, inexistiam. Os países da OCDE eram responsáveis por 100% de todo o investimento externo direto no mundo.


 


O número de transações de fusões e aquisições originadas por empresas procedentes dos países emergentes, tendo como alvo operações na OCDE, também cresceu de forma espetacular, a um ritmo anual de 26% nos últimos cinco anos. Estas transações ainda representam apenas uma pequena parte do total mundial (6% do total em 2007).


 


Contudo, o dinamismo é cada vez maior, com a Índia liderando o processo à frente da Malásia e China. Da mesma forma, China e Índia tornaram-se em 2007 os países mais atraentes do mundo para investimentos das multinacionais, à frente dos EUA.


 


Do ponto de vista comercial, os fluxos deixaram de estar polarizados pelos países da OCDE. Embora continuem concentrando o grosso dos fluxos internacionais, em 2007, pela primeira vez os intercâmbios comerciais dos países se diversificaram: as exportações destes para outros países emergentes superaram as exportações aos países da OCDE. Presenciamos uma explosão dos intercâmbios comerciais entre China e África; e China e América Latina.


 


Ambos continentes, África e América Latina, deixaram, assim, de ser os quintais das potências ocidentais. Na África, as petrolíferas e mineradoras dos novos mundos, não apenas chinesas, mas também indianas, russas e brasileiras, agora concorrem com igualdade contra suas rivais ocidentais.


 


No âmbito financeiro, os centros nervosos que continuam dominantes, a City londrina e Wall Street, em Nova York, estão vendo brotar novos concorrentes em lugares exóticos, como Dubai, Hong Kong e Cingapura. No ano passado, os países emergentes realizaram quase 40% do total aberturas de capital, de acordo com a Merrill Lynch e CapGemini. Os ativos administrados por fundos soberanos de países emergentes já superam os geridos por todo o setor de fundos hedge dos países da OCDE. Hoje, mais de 70% das reservas internacionais estão em mãos dos países emergentes.


 


A crise das “subprime” é, de fato, emblemática da reversão que vem ocorrendo: pela primeira vez na história, as instituições financeiras (do suposto) primeiro fundo foram resgatadas pelas do Terceiro Mundo. As instituições de concessão de crédito de última instância dos bancos de Wall Street e da City estavam, de forma paradoxal, em Abu Dabi, Pequim e Cingapura, com Washington e Londres vendo tudo pasmados e ao mesmo tempo aliviados pelo resgate por parte de salvadores que há apenas 10 anos seriam inimagináveis. No total, estes fundos destinaram mais de US$ 40 bilhões a ícones do capitalismo financeiro ocidental.


 


Como todos os reequilíbrios, o que estamos vivendo trará consigo períodos de tensão. O epicentro do mundo está se deslocando ao Oriente. Isso não significa que as potências da OCDE desvanecem-se, mas, antes disso, que o reequilíbrio se dá por meio da emergência de um mundo economicamente muito mais multipolar. A grande notícia – ainda por celebrar – está aqui: pela primeira vez na história econômica recente, os ganhadores da globalização deixaram de estar concentrados nos países da OCDE.


 


*Javier Santiso é diretor e economista-chefe do OCDE e presidente da Rede de Mercados Emergentes da OCDE (EmNet).