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Um grande desastre começa com uma desatenção mínima

O portal Vermelho entrevistou o diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Haroldo Lima, sobre o vazamento causado pela Chevron no Campo de Frade. Lima expôs os bastidores dos esforços conjuntos para solucionar o problema, rebatendo especulações da mídia e as reiteradas mentiras da petrolífera com "fatos e objetividade".

Por Christiane Marcondes

Diferentemente, o presidente da Chevron para África e América Latina, Ali Moshiri, foi estrategicamente subjetivo ao dizer que a empresa ficou “magoada” com a decisão da ANP de suspender as atividades de perfuração da companhia no país. Alegou que a empresa já atua há 100 anos no Brasil, como se esse período representasse uma longa amizade e não a lucratividade de bilhões de dólares que a Chevron contabilizou.

A verdade é que, em todo o desenrolar do acidente e sua investigação, a petrolífera norte-americana apelou para o sentimentalismo, por exemplo, ao “culpar” a natureza pelo incidente. Ou ao pedir “perdão” ao povo brasileiro enquanto continuava a sustentar mentiras e omissões, inclusive em auditoria pública. A imprensa, por seu lado, relegou o acidente ao noticiário periférico até que ele se tornasse grave o bastante para virar escândalo no conhecido e leviano espetáculo midiático.

O governo brasileiro, no entanto, foi firme e agiu com rigor e eficiência, segundo Lima, que esclarece todas as dúvidas e acusações que ainda rondam esta tragédia, tornando ainda mais complicado o enfrentamento e resolução do acidente. Entenda aqui o que houve, o que foi feito e quais as responsabilidades e tarefas cabíveis a cada um dos atores desse episódio.

Vermelho – André Ordacgy, defensor público federal, declarou à Carta Maior que o “acidente deixou claro como as autoridades competentes estão despreparadas, de ponto de vista de sua estrutura, para lidar com esse tipo de situação”. Acrescentou ainda que “se a ANP não tem verba suficiente para se estruturar, que no mínimo tivesse o poder legal de requisitar o equipamento alheio em casos emergenciais”. Faltam verba ou qualificação técnica para a ANP enfrentar um desastre como esse?

Haroldo Lima – A ANP pode não estar totalmente preparada, mas está muito bem preparada para executar sua tarefa, que é a de garantir a segurança operacional. Nós trabalhamos para evitar o acidente, mas quando ele ocorre e há contaminação, por exemplo, então já entra na competência do Ministério do Meio Ambiente, que precisa se articular com a Marinha, o Ibama, a própria ANP e talvez outros parceiros para resolver o problema e apurar responsabilidades.

Com relação à nossa função específica, somos uma das agências melhor aparelhadas do mundo, tanto sob o ponto de vista conceitual como prático. Nós atuamos segundo a Resolução 43, que foi publicada em 2007, mas começou a ser construída em 2001. Nessa data, de fato, o país não saberia lidar com um incidente desses, não tinha condições técnicas. Mas, em 2004, nós constituímos a Coordenação de Segurança Nacional e a Coordenação do Meio Ambiente, que representaram um enorme avanço para o setor.

Por meio delas, passamos a desenvolver diversas articulações nacionais e internacionais com o objetivo de conseguir informações minuciosas, conversamos e visitamos cerca de oito a dez petrolíferas, recolhendo valiosas contribuições para a redação da Resolução 43. Ouvimos a Petrobras, no Brasil, e algumas das maiores petrolíferas do mundo antes de elaborarmos nossas normas de procedimento. Depois de passar por consulta e audiência pública, a nossa proposta foi publicada em 2007. São 40 páginas que especificam a segurança das operações marítimas, definem os mecanismos pelos quais a ANP se pauta para garantir a segurança de suas operações.

Vermelho
– Como vocês definiram os critérios de avaliação?
HL – Existem dois caminhos para estabelecer a política procedimental, nós tivemos que escolher um deles. Temos uma rotina de procedimentos para autorizar e fiscalizar as operações. Analisamos riscos e avaliamos as medidas que a empresa diz estar apta a adotar para enfrentar esses riscos. Isto é diferente de outra corrente, que prefere determinar de antemão qual equipamento vai ser usado e onde no caso de acidente. Esta proposta não contempla os avanços da tecnologia, o equipamento que hoje resolve determinado problema pode estar superado amanhã. Não nos prendemos a isso, mas à inovação em procedimentos, estamos sempre acompanhando a evolução nesse campo. Os equipamentos serão definidos de acordo com o que a tecnologia puder nos oferecer de melhor, quando a situação se apresentar.

Vermelho – Isto tudo consta da Resolução 43. Foi por meio dela também que a Chevron foi avaliada como operadora da categoria A?
HL – Não. Nós fazemos esta qualificação, mas é outro processo. A Resolução 43 está ligada à autorização e fiscalização, ou seja, à segurança operacional. Seja uma empresa categorizada como A, B ou C, ela tem que atender às normas exigidas pela Resolução 43 ou não poderá operar. Para uma empresa começar a perfurar poços, ela precisa primeiro de uma licença ambiental, que é dada pelo Ibama. A licença vale para atuação na área específica para a qual a empresa apresentou seu plano emergencial, portanto é restrita. E ela tem que ter o aval também da Marinha, que inspeciona plataformas, embarcações, enfim toda a estrutura e a sua estabilidade.

Vermelho – Qual foi a real extensão do vazamento da Chevron? Há números diferentes.
HL – Pelo nosso cálculo, houve o escapamento de cerca de 3200 barris, no pico, dia 11, pode ter escapado algo em torno de 500 ou 600 barris, em seguida caiu. Na média, vazaram cerca de 330 barris/dia. Não é um acidente de grandes proporções, mas é grave.

Vermelho – Vocês começaram a intervenção 48 horas depois do acidente, e com informações incorretas. Como isso repercutiu no trabalho?
HL – As informações (por parte da Chevron) foram evitadas e mascaradas. Havia dezenas de horas de gravação das escavações, mas eles só nos encaminharam alguns minutos, alegando que aquelas eram as partes mais importantes. Só que quem define as partes mais importantes somos nós… Nós é que dizemos o que é importante para nós, para a defesa do meio ambiente.

Vermelho – Para a ANP, eles justificaram dessa forma, na mídia, declararam que não tinham uma banda larga que desse suporte ao envio do material na íntegra…
HL – Pois é, disseram isso também. Há várias coisas que ficamos sabendo pela imprensa, mas não foram relatadas desse modo para nós.

Vermelho
– O fato de a Chevron atribuir a culpa do acidente à natureza, por exemplo…
HL – Acidente da natureza nem pensar. Não tem cabimento. Diante da ANP, eles assumiram a responsabilidade desde o início. Foi um erro técnico, conforme apuramos depois. Há a questão da falha geológica, alardeada na empresa, mas sempre há falhas geológicas ou um conjunto delas em qualquer avaliação sísmica. Se havia essa falha geológica, e isso já havia sido reportado no relatório sísmico, eles tinham que ter se prevenido. Deveriam ter estudado o impacto de uma perfuração próxima à falha, este é o procedimento normal. Mas, com ou sem falha, o vazamento ocorreu de fato foi no poço, em decorrência de desequilíbrio de pressões. O óleo vazou e depois caiu na falha geológica — que estava distante 150 quilômetros do local do acidente — desembocando no solo marítimo. Portanto a falha foi veículo para o óleo se espalhar, mas não causa do vazamento. Para nós, eles nunca usaram esta alegação, lemos sobre isso na imprensa. A Chevron nunca usou esse argumento conosco.

Vermelho – Por falar em argumentos da Chevron, o defensor público federal criticou também o fato de que a Chevron é, ao mesmo tempo, protagonista e testemunha dos fatos. Literalmente, em entrevista à Carta Maior, Ordacgy declarou: “Espera-se, em último caso, que a Chevron produza prova contra ela mesma. Isso é complicado. O ideal seria não ter que depender da empresa”. A investigação depende do que a Chevron apresentar?

HL – Isso não é verdade, independente de Chevron, nós sobrevoamos inúmeras vezes o local, fizemos nossas próprias gravações da mancha de óleo, fomos à plataforma, temos nossos registros consolidados, ainda que eles tenham evitado nosso acesso à integra das imagens da perfuração.

Vermelho
– O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou em caráter de urgência, a pedido do ministro Raimundo Carreiro, segundo a Agência Brasil, que os técnicos do tribunal realizem auditoria para apurar eventuais responsabilidades da ANP e da Petrobras no acidente. Como o senhor vê essa auditoria?
HL – Eu não estou sabendo disso, é você que está me contando, pelo menos até agora não fomos notificados. Mas eu, pessoalmente, acho que o TCU não tem que examinar nossos procedimentos. Os fatos técnicos que envolvem o vazamento não estão sobre a égide do TCU, mas, sim, as contas relacionadas ao incidente. Não acho essa ação oportuna num momento em que estamos numa luta tenaz contra a segunda maior empresa petrolífera do planeta. Isso pode influenciar a opinião pública e dar à sociedade a impressão de que a ANP e Petrobras podem ter alguma culpa. E não têm! A Chevron assumiu essa culpa integralmente, diante da ANP, desde o início.

Vermelho – E a Transocean, parceira da Chevron no local do acidente?
HL –A Chevron declarou que a Transocean não tem nenhuma responsabilidade. Mas essa empresa estava presente no Golfo do México, quando houve o vazamento, e agora ela está aqui. Opera largamente no mercado, inclusive como parceira da Petrobras.

Vermelho – Uma operadora autorizada pode contratar uma terceira que não passe pelo crivo da ANP?
HL – Não, não pode. Essa terceira, no caso, foi contratada só para um serviço, para operar uma sonda, operação que está prevista dentro de um projeto já aprovado pela Chevron na totalidade.

Vermelho – A Petrobras, que é sócia em 30% da Chevron no campo petrolífero onde ocorreu o acidente, declarou que não dividirá multas milionárias. A Petrobras terá que arcar com multas?
HL – Isso depende do contrato de sociedade. O comum nesses contratos é que as empresas associadas se responsabilizem pelo investimento na parte que lhes cabe. A participação nos prejuízos só ocorre se o contrato prever, é uma questão interempresarial.

Vermelho – Como é o plano de contingência, que entra em cena após o acidente?
HL – Na hipótese de um acidente, o plano de contingência estabelece as tarefas de todo mundo que vai participar da ação. Consideramos que há três grandes agentes envolvidos na operação, o Ibama, a ANP, que representa o Ministério das Minas e Energia, e a Marinha, além da própria empresa e de outras que possam colaborar. O plano define como será formado o grupo e qual estratégia será usada na contenção do vazamento.

Vermelho – E quem coordena?
HL – O plano de contingência não existe formalmente. Esse é o problema. Esse vazamento traz a necessidade de retomar o plano, o que já havia sido considerado pelo governo brasileiro na ocasião do derramamento de óleo no Golfo do México, em 2010. Agora o Ministério do Meio Ambiente já decidiu retomar, criar uma sistemática, definir as partes, os equipamentos e as responsabilidades. No momento, a ANP participa do plano, mas não coordena.

Vermelho – Essa revisão do plano se torna mais urgente diante do pré-sal…
HL – Um acidente no pré-sal certamente trará danos maiores, temos que nos preparar.

Vermelho – Voltando à Chevron, ela solicitou permissão para explorar no pré-sal em outubro…
HL – Eles pediram autorização, mas agora negamos tudo. No pré-sal, a Chevron enfrentaria problemas semelhantes e o acidente mostrou que a empresa não está preparada. Não temos garantia de segurança operacional. O que quero acentuar é que, em áreas profundas e superprofundas, a ANP está decidida a agir com o máximo rigor no sentido de evitar qualquer acidente, por isso impedimos que a Chevron perfure em qualquer parte do litoral. Não podemos aceitar que ocorram falhas ou negligência. A medida que tomamos — de proibir a operação da Chevron no Brasil — deve-se às falhas que identificamos na empresa e serve como sinalização para outras empresas de que o nosso rigor vai se acentuar ainda mais.

Vermelho – A ANP está implementando novas medidas, novas exigências?
HL – Esse é um processo sempre em curso e vai continuar. Utilizando os critérios da resolução, entre 2010 e 2011, interditamos o funcionamento de 10 plataformas. Esta iniciativa é insólita não só no Brasil, mas em todo o mundo. Suspendemos a produção de 85 mil barris por dia até que as plataformas se adequassem à resolução e pudessem voltar a operar. Sabemos que no Golfo do México, a agência norte-americana encontrou uma não conformidade na operadora e considerou que essa não conformidade era secundária. Deu no deu, na tragédia que todos acompanhamos pelos jornais. Não podemos tolerar uma tragédia como essa!