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Toxicodependente vira traficante para agilizar limpeza

Por Wálter Maierovitch
A Polícia Civil de São Paulo tem uma folha de bons serviços e por ela passaram delegados de polícia competentes, honestos e com acendrado espírito público. 

Nos meus mais de 30 anos de serviço público testemunhei, em especial como juiz singular (varas criminal, de execução criminal e corregedorias da polícia judiciária e dos presídios estaduais) e de tribunais de Alçada Criminal e Justiça (seção criminal), trabalhos preciosos e atuações heroicas de integrantes da denominada polícia judiciária. Refiro-me aos delegados, peritos, investigadores, escrivães.

Apesar do nome polícia judiciária e função auxilar ao Judiciário, a mencionada corporação estadual não integra, com o de outras unidades federativas, o Judiciário. Por distorção constitucional e legislativa, a polícia civil, por abarcar outras atribuições, restou colocada junto ao Poder Executivo. Durante a ditadura, frise-se, houve, na Polícia Civil de São Paulo, um movimento de resistência aos policiais que, em panos de polícia política, ficaram a serviço da tortura e do arbítrio. Em síntese, de um regime de exceção.

Nos últimos tempos, a Polícia Civil foi perdendo o brilho e o crédito conquistado com méritos junto à sociedade civil. Nota-se que os seus membros ativos estão sem motivação. Pior, carreiristas sabujos cederam às exigências de populistas e de interesses eleitoreiros: poucos dias antes de o PCC declarar guerra ao estado de São Paulo e sua população, um dos chamados “cardeais” da polícia afirmou que essa organização criminosa de matriz pré-mafiosa não existia mais, fora desarticulada. A propósito, o secretário de Segurança, chefe da polícia, não o desmentiu e o governador fez cara de crente.

O jogo político, com secretários de Segurança portando aspirações políticas ou com engajamentos corporativos anteriores, quebrou o equilíbrio entre as corporações civil e militar. Privilegiaram-se as ações militares, algumas rocambolescas e de pirotecnia eleitoral. Assistiu-se, assim, ao fim da salutar emulação entre as duas corporações. Corporações, ressalte-se, com atribuições diversas, mas complementares, e que só funcionam quando há sinergia. Em resumo, a investigação perdeu espaço e qualidade e as novas lideranças na Polícia Civil ainda não conseguiram resgatar a boa imagem para acabar com as suspeitas de corrupção em seus quadros.

Diante deste triste panorama, explica-se ter a Policia Civil, pelo seu departamento de narcóticos, resolvido dar sinais de vida na Cracolândia. Ou seja, prendeu-se em flagrante uma mulher com 16 mil pedras de crack. Por evidente e usando uma expressão popular, ela “não era nova no pedaço”.

Como se sabe, e já alertou em dezembro de 2000 a Convenção da ONU sobre crime organizado, existe uma atuação reticular dessas organizações. Em outras palavras, redes de abastecimento usam, nos seus nós, subdistribuidores e varejistas. Os operadores das redes ficam distantes da Cracolândia.

A Polícia Militar, na torturante operação autorizada pela dupla Alckmin-Kassab, está atrás dos varejistas. Por outro lado, a Polícia Civil, com a apreensão de 16 mil pedras na posse de uma única mulher, mostrou um nó dessa rede de abastecimento que operava na Cracolândia. Em outras palavras, mostrou ao secretário de Segurança, desafeto da Polícia Civil, que a Polícia Militar está, mais uma vez e na terminologia polular, enxugando gelo.

Para rematar, muda-se, oportunisticamente, o conceito de traficante e de usuário, na Cracolândia.

Uma nova tática é empregada para tornar mais rápida a “limpeza” de um território, Cracolândia, que, por décadas, é usado como confinamento de toxicodependentes e, também, como lugar sem restrições ao tráfico de drogas proibidas. Aliás, algo explicável até para se manter o confinamento.

Ao abandonar a nossa legislação, a dupla Alckmin-Kassab passa a adotar uma legislação de exceção na Cracolândia. Deixa de existir o critério conhecido na Europa como presunção de tráfico baseado na quantidade. Agora, a Polícia Militar prende na Cracolândia, como traficantes, dependentes químicos com 1 grama de crack. E a polícia judiciária formaliza o entendimento, em auto de prisão em flagrante por crime inafiançável.

Pano rápido. Com esse tipo de prisão completa-se um quadro de barbárie. Para “limpar” o território da Cracolândia, dependente é enquadrado como traficante.

Wálter Fanganiello Maierovitch é é jurista e professor, foi desembargador no TJ-SP

Artigo publicado na Carta Capital