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Enio Squeff: a mídia brasileira e as boas lições de Murdoch

Há uma confluência de interesses “murdochianos” no oligopólio midiático brasileiro. A mesma notícia que é acolhida – ou não – por Rupert Murdoch e seu império, guardadas as proporções do alinhamento dos jornais, revistas e estações de TV, é integralmente acoitada por aqui.

Por Enio Squeff*

Não se sabe exatamente em que condições, ou por que, uma determinada expressão ou um nome entra no dicionário como adjetivo ou verbo – mas é possível imaginar que o Houaiss venha um dia a incorporar a palavra “murdochização” – e não necessariamente com “h”, mas com “q” mesmo. Keith Rupert Murdoch, conhecido como o “magnata da mídia”, não inventou nada de novo na história contemporânea da imprensa mundial, mas é dono de uma rede infinda de jornais, comprovadamente não dá guarida a qualquer opinião que não seja estritamente a sua e é uma das forças mais reacionárias com que a direita e os conservadores podem contar no mundo.

Orson Welles inventou o seu “Cidadão Kane” a partir de uma sociedade multifária: o dono de jornais é um manipulador notório, um sacripanta – mas não manda sozinho. Tem rivais. Rupert Murdoch ainda conta com alguns resistentes residuais – mas ninguém duvida de que se pretenda hegemônico. E que siga, afinal, a lei do capitalismo rumo ao monopólio.

É natural. Marx, que teve de se mudar de vários países por suas ideias, só conseguiu sobreviver numa Inglaterra minimamente democrática, onde vigeu durante mais tempo a ideia de “imprensa livre”. Talvez não seja apenas irônico que Rupert Murdoch tenha instalado parte do seu império justamente na Inglaterra. Foi a partir dela, em todo o caso, que o compositor francês Hector Berlioz passou a venerar Shakespeare, assim como foi no Império Britânico que, anos antes, exilado, Voltaire, também francês, pode apreciar as primeiras experiências democráticas no sentido literal da palavra. Parece, em suma, haver uma convergência entre ideias livres, inteligência e democracia.

O criador do primeiro jornal brasileiro (Correio Braziliense), o gaúcho Hipólito da Costa (1777-1823), poderia ter tentado editar seu periódico em outros lugares do mundo. Preferiu a Inglaterra, por motivos óbvios. Ninguém o premiria por opinar sobre seu país a quase dez mil quilômetros de distância. Mas é aqui que talvez entre a palavra “mudorchização” da imprensa.

A rigor, em alguns aspectos ela já existe. Não parece fortuita a proibição expressa que a imprensa hegemônica brasileira vem mantendo, de afastar das suas páginas nomes de artistas, de escritores e intelectuais de todos os tipos, que professam opiniões diferentes das orientações de seus editoriais. E não se afigura, igualmente, uma exceção que os jornais omitam notícias e inventem outras, tudo em nome da sua independência e da sua prerrogativa de vetar o que não lhe agrada. Não existe brasileiro minimamente informado, que não sabe haverem omissões ou notícias deturpadas na imprensa brasileira. Talvez seja aí que mudochização da mídia comece a ter algum sentido.

Não é novidade, certamente, que a imprensa sempre foi restritiva. Pietro Maria Bardi, criador do Museu de Arte de São Paulo (MASP), não podia ter seu nome estampado no Estadão. A proibição não era explícita, mas corria entre o seu corpo redacional que Bardi não deveria ser mencionado nas páginas do jornal, fosse para o que fosse. Tinha sido coadjuvante de Assis Chauteaubriand, dono dos Diários Associados, na obtenção de recursos junto ao empresariado paulista – não raro sob ameaças de chantagem – para a compra das obras garimpadas pelo próprio Bardi numa Europa economicamente combalida, depois da 2ª Guerra. A história é conhecida.

O que se ignora são justamente os interditos da grande imprensa. Na época, não havia “impérios midiáticos” como hoje; tampouco os jornais cerravam qualquer acordo para não mencionarem denúncias de corrupção de políticos ligados, sabe-se bem por que, a quase todos os órgãos de imprensa. O Estado de S. Paulo, por exemplo, criticava a Veja que, por sua vez, não poupava os Mesquitas; ou os Frias, ou mesmo Roberto Marinho de O Globo. Era uma guerra.

Democraticamente suja; ou limpa ( dependendo das denúncias mútuas). E até onde a formação dos oligopólios permitia, as coisas não eram unânimes. Se uma publicação tinha um furo – valia o furo a despeito de todo o resto. Hoje a coisa mudou.

Jacob Burkhardt, que foi o grande historiador da Renascença no século 19, ao falar sobre Aretino, que, com razão, ele considerava acima de tudo um jornalista – anotava, imparcialmente, que a maledicência entre os potentados italianos era uma prática comum. Aretino mesmo, mediante bons emolumentos, tanto podia falar bem do papa, quanto ridicularizá-lo. Não era uma questão ideológica. Hoje é exatamente essa a questão. E Murdoch (mas também muitos mais), só é citado como passível de alguma censura, quando ultrapassa as leis do comércio (ninguém imagina que fechar jornais seja, em princípio, um bom negócio) – no mais, porém, é um exemplo a ser seguido. Ou será que os donos dos principais jornais e meios midiáticos brasileiros não o invejam?

A resposta talvez não inaugure uma nova expressão na língua portuguesa – a “murdochização”. Mas há uma confluência de interesses “murdochianos” no oligopólio midiático brasileiro. A mesma notícia que é acolhida – ou não – por Rupert Murdoch e seu império, guardadas as proporções do alinhamento dos jornais, revistas e estações de TV, aos programas e procedimentos dos partidos brasileiros que ela apoia – é integralmente acoitada por aqui.

Claro, a” murdochização” – a palavra é complicada, deve-se admitir – não é senão uma virtualidade. Por enquanto, a mídia nativa aspira chegar a um poder incontestável, o que está cada vez mais difícil devido à rede social. Uma vez que isso se realize, porém, “depois a gente conversa”. De qualquer maneira, a tendência à “murdochização”, essa parece inegável. Alguém do oligopólio, vencerá. O resto, o império “murdochiano”, no momento oportuno explicará.

Em tempo: a palavra sacripanta também entrou no dicionário a partir de um personagem. Era “Sacripante”, figura descrita como espertalhão e velhaco, na canção de gesta de Matteo Maria Boiardo (1441-1494). Mais tarde entraria no “Orlando Furioso”, de Ariosto, mas já então tinha sido devidamente dicionarizada para sacripanta com o sentido que guarda ainda hoje.

* Enio Squeff é artista plástico e jornalista

Fonte: Carta Maior