Crônica do Villas: 1984

O primeiro sinal de que 1984 estava virando realidade foi quando anunciaram a grade no meu prédio.

Por Alberto Villas*, na Carta Capital

A década de 1980 estava apenas começando quando coloquei novamente os pés no meu país, depois de seis anos vivendo a dez mil quilômetros daqui. Pisei terra firme, tomei um guaraná, comi uma coxinha com Catupiry e peguei o primeiro avião com destino a Belo Horizonte. Alguns dias depois cai na estrada num Cometa rumo a São Paulo. O primeiro lugar onde morei no que chamavam de túmulo do samba foi em Higienópolis, mais precisamente Rua Sabará com Maranhão.

Era um prédio pomposo, alto, rodeado de plantas tropicais. Logo na primeira semana fui convocado para uma reunião de condôminos através de um aviso colado com durex no elevador. Oito da noite em ponto lá estava eu sozinho numa sala imensa cheia de cadeiras de plástico esperando o síndico e os outros moradores do prédio. Foi uma reunião rápida para aprovar a grade, assunto discutido no encontro passado enquanto eu ainda encaixotava minhas coisas em Paris. Sim, aquele imponente prédio no coração de Higienópolis ganharia uma grade se a maioria dos condôminos aprovasse. E todos aprovaram. Fiquei assustado e nem me lembro mais se votei, mas mesmo se tivesse votado perderia de lavada porque todos queriam a tal grade.

No dia seguinte, logo cedo sai para caminhar pelo bairro e vi que nenhum prédio por ali tinha cerca, nem muro, nem nada. Eles tinham apenas uma portaria onde ficava sentado um porteiro com uma camisa caqui e o nome do prédio bordado no bolso direito. Intrigado, continuei andando e quando cheguei perto da praça Villaboim, vi um caminhão despejando areia na calçada de um prédio tão bonito quanto o meu. Senti então que ali também se ergueria uma cerca.

Não passaram dez dias para o caminhão parar na porta do meu prédio e despejar a areia na calçada. Depois vieram as pedras, um pouco de cal, os sacos de cimento e a grade. O mestre de obras e os dois pedreiros chegaram em seguida. A obra começou eliminando um pouco da grama e dois coqueirinhos. Em poucos dias já estávamos cercados. Seguros, segundo os moradores. Agora para ir e vir tínhamos que passar por um portão de ferro que rangia muito porque ainda não ganhara umas gotas de óleo nas dobradiças.

Não demorou um ano e quando abri os olhos Higienópolis tinha virado um verdadeiro canteiro de obras com pedreiros instalando cercas em todos os prédios. Mas não custou para aquelas grades ganharem um adendo.

Os moradores, achando que elas não eram assim tão altas e suficientes para evitar ladrões, resolveram instalar cercas elétricas em cima das grades para afastar de vez os bandidos. E assim foi feito. Um por um os prédios de Higienópolis foram ganhando cercas elétricas medonhas mas segundo os moradores, seguras. Chocantes!

Depois vieram as guaritas. Os porteiros agora ficavam dia e noite dentro daquelas casinhas minúsculas vigiando quem entrava e quem saia dos prédios, abrindo e fechando portões para os moradores e barrando quem não havia sido convidado.

Mas, pensando bem, uma simples guarita não dava tanta segurança assim para os porteiros. Foi quando alguém, numa outra reunião, teve a ideia de blindar os vidros. Agora sim, atrás daqueles vidros blindados os porteiros estavam livres de um trinta e oito na cabeça.

Passou-se um tempo, não muito, a lateral das portarias ganharam uma discreta câmera de segurança e passaram a gravar dia e noite quem entrava e quem saia do prédio. Ficou mais fácil identificar não somente os ladrões mas vigiar os moradores que colocavam o lixo fora do lugar, que jogavam chicletes no chão, que deixavam o cachorrinho fazer xixi nos corredores.

Mas e os elevadores? Sim, poucos meses depois foram os elevadores que ganharam câmeras no teto. Todos ficaram mais atentos para não dar bandeira – era assim que se falava – dentro do elevador. Nada de beijo, dedinho limpando o nariz, o ouvido, mão consertando o sutiã ou a cueca. Só assim os moradores dormiram tranquilos, sabendo que o prédio da Sabará com Maranhão estava seguro, vigiado por todos os lados.

Com o andar da carruagem, assustado, desconfiava que rapidinho algum morador ia ter mais uma ideia. Estacionar um tanque de guerra em frente ao bunker, aliás, em frente ao prédio onde morávamos. Não falei nada pra não dar a ideia.

Sei que aos poucos fomos nos acostumando com essa nova era. Hoje temos câmeras em farmácias, em padarias, escolas, bares, shoppings, consultórios médicos, bancos 24 horas, temos câmeras nos faróis de trânsito vigiando quem para em cima da faixa, passa com o farol vermelho ou está furando o rodízio. Não nos importamos mais se o porteiro solicita a carteira de identidade para entrarmos num prédio ou se pede para chegarmos um pouquinho mais pra lá para que ele possa fazer uma foto antes de nos entregar o crachá que nos permitirá passar pela catraca. Não importamos nem mesmo se saímos bem na foto.

*Alberto Villas é jornalista, autor dos livros “O mundo acabou!” e “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Morta”