Carla Liane: Intolerância religiosa e os paradoxos do Direito

A problematização de práticas discriminatórias e o apelo à dignidade humana têm sido a chave para desconstruirmos a falsa ideia de cordialidade e convivência pacífica do povo brasileiro e sua diversidade. Nunca o racismo brasileiro, em especial, esteve tão exposto e desnudado.

Por Carla Liane*, para o Vermelho

Intelerância religiosa - Reprodução

Os últimos fatos, envolvendo a Justiça Federal no Rio de Janeiro, que emitiu uma sentença na qual considera que os cultos afro-brasileiros não constituem religião e que “manifestações religiosas não contêm traços necessários de uma religião”, apesar de estarrecedores, inimagináveis na contemporaneidade, trazem à luz a necessidade de enxergarmos o quanto ainda precisamos avançar para atingirmos a democracia real e a efetividade da pluralidade de direitos assegurados, resultantes de lutas históricas dos movimentos sociais engajados nas causas pelo reconhecimento social de grupos subalternizados e invisibilizados.

A referida sentença fere os princípios constitucionais mais elementares, além de usar o “direito” para tentar problematizar de forma preconceituosa, tendenciosa e equivocada o que seria religião, se é que podemos encontrar uma definição universal para religião. Isto é fazer justiça?

Certamente o profissional que emitiu a sentença não utilizou reflexões da antropologia, sociologia da religião, não conhece sobre história oral, nem a filosofia africana, muito menos acompanha as discussões internacionais acerca da cultura da paz, negando o que reza a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Talvez a psicologia explique! E o que é pior, paradoxalmente não recorreu à Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso XLI que determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.

A religião como um sistema cultural complexo, reconheço, envolve trajetórias de vida, coletividades humanas que merecem respeito, justiça e reconhecimento.

Depois de tanta perseguição aos terreiros e centros religiosos de matrizes africanas, é inaceitável ainda nos dias de hoje, depois de tantas politicas reparatórias e compensatórias, aceitar o retrocesso de práticas de intolerância, que ferem a dignidade humana, escamoteadas pela defesa imparcial do “bem comum”, praticadas por um operador do direito.

A história nos revela que por conta desse tipo de violência simbólica e material, tais espaços religiosos em atos de resistências, negociações e conflitos, passaram a ocupar as periferias dos centros urbanos e apesar disso hoje e sempre ainda estão no centro das discussões e lutas por equidade social. Praticamos a alteridade?

Liberdade religiosa? Como pensar tal prática em um contexto que dissemina práticas odiosas de preconceito, intolerância e discriminação a religiões de matrizes africanas?

Exigimos a aplicabilidade da lei com a devida punição a qualquer discriminação atentatória dos “direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, inciso XLI da Constituição ). Ainda sobre este artigo legal não nos esqueçamos de que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da Lei”.

Em nome das religiões de matrizes africanas, Cumpra-se!

*É professora e vice-reitora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Socióloga, Doutora em Ciências Sociais, tendo se especializado em Direito Constitucional Afro-descendente.