Stefanie Lipf: Rádios comunitárias e o direito à comunicação

Uma olhada acerca à realidade das rádios comunitárias em três comunidades de Rio de Janeiro e São Paulo.  “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.” Art. 19, Liberdade de expressão e informação

Por Stefanie Lipf, para a Amarc Brasil*

amarc brasil - Reprodução

No âmbito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, este direito foi estabelecido pelas Nações Unidas em 1948. Assim, a cada pessoa é concedido, além da possibilidade de livre escolha da fonte de informação, o direito à produção e divulgação de informações.

No entanto, o Direito à Comunicação é um campo contestado até hoje. O Brasil está entre os países com o mais forte monopólio da mídia, 80% dos meios de comunicação corporativa estão nas mãos de poucas famílias. Devido ao predomínio das grandes empresas de mídia, grande parte da população é excluída de forma sistemática da participação e tomada de decisões em relação à comunicação pública. Este é o caso de muitas comunidades periféricas e favelas, que não têm oportunidade de articular os seus problemas e necessidades publicamente e, dessa forma, influir sobre a opinião pública.

No entanto, um olhar mais atento possibilita enxerar diferentes iniciativas independentes, que, apesar destas dificuldades, tentam se opor a este monopólio de poder. Mídia Comunitária é como se chama esta forma auto-organizada de fazer mídia, que pode ser encontrada principalmente em populações marginalizadas. A Amarc entende como mídia comunitária os atores privados que operam com um propósito social e sem fins lucrativos. Muitos destes meios de comunicação são articulados por organizações sociais de vários tipos, sejam associações de moradores ou Ongs que trabalham nas comunidades.

Uma característica da midia comunitária é a participação da Comunidade, que atua tanto como proprietária e administradora, bem como na produção de conteúdo e na tomada de decisões sobre o funcionamento deste meio de comunicação. Os meios de comunicação comunitária são completamente independentes do governo, partidos políticos, empresas comerciais e de grupos religiosos. E uma forma de fazer este tipo de mídia são as rádios comunitárias.

Existe uma lei para rádios comunitárias desde 1998. No entanto, pode ser observada a emergência de rádios livres e independentes do poder a partir do início da década de oitenta. É nesse momento que começa a tomar forma o movimento das rádios comunitárias.

O debate acerca destes meios de comunicação organizados coletivamente chegou no discurso científico já há muito tempo e virou uma área importante na pesquisa de comunicação. Cicilia Peruzzo, professora de comunicação comunitária da Universidade Metodista de São Paulo, em seus estudos chega à conclusão que as rádios comunitárias contribuem significativamente para o desenvolvimento de uma consciência sobre os próprios direitos. Isso acontece tanto através da mediação de determinados conteúdos nos programas de rádio, como na participação numa emissora. A coesão da comunidade é fortalecida através do trabalho conjunto na rádio. Mas não é só a comunidade que beneficia-se desta mídia comunitária. As rádios possuem um papel positivo também ao nível individual – por meio da sua colaboração as pessoas podem adquirir conhecimentos técnicos, jornalísticos e legais.

O professor de comunicação social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Adilson Cabral Filho, define como a força mais relevante das rádios comunitárias o seu potencial de mobilizar os moradores e moradoras para trabalharem em conjunto para a sua comunidade e de acordo com suas próprias necessidades. Segundo Cabral Filho, essa apropriarão de um meio de comunicação permite aos moradores e às moradoras recuperarem a sua autonomia: mais uma vez é a comunidade que decide sobre o seu próprio desenvolvimento.

Porém, muitas vezes, as rádios são prejudicadas em suas atividades. A repressão começa já com a dificuldade de obter uma outorga (um processo que pode durar até dez anos). Rádios que se atrevem a entrar no ar antes muitas vezes sofrem ameaças, visitas não anunciadas e até o encerramento e confisco dos equipamentos por parte da agência reguladora Anatel e da Polícia Federal. Com estes fechamentos a população é privada de um meio essencial de comunicação e organização, feito dentro da comunidade local. Isso se exemplifica nas favelas de Heliópolis em São Paulo e no Complexo do Alemão e Santa Marta, no Rio de Janeiro.

Rádio Heliópolis:

A rádio Heliópolis foi criada em 1992 como parte da Unas (União de Núcleos, Associações e Sociedade dos Moradores de São João Clímaco Heliópolis) e inicialmente transmitia o seu conteúdo por um sistema de sonorização (alto-falantes), colocado nas ruas da favela. Desde 1997, a rádio transmite em FM Heliópolis, o que foi possível graças a doações. Após a introdução da Lei da Radiodifusão Comunitária no ano 1998 a rádio teve que mudar a sua frequência repetidas vezes por causa de interferências de estações de rádios comerciais. Depois de várias visitas da Polícia Federal, a Anatel ordenou em 2004, pela primeira vez, o fechamento da rádio. No entanto, pouco tempo depois, a Rádio Heliópolis voltou ao ar. No início de 2006, a rádio foi fechada novamente pela Anatel. Através de extensa mobilização desenvolveu-se uma forte rede de apoiadores, não apenas formado por movimentos sociais e Ongs, mas também por universidades e até atores políticos de São Paulo. Desta forma, ao final de outubro de 2006, a rádio ganhou uma licença temporária. Em 2008, no marco de um aviso de habilitação, o qual envolveu cerca de 300 estações, venceu a primeira outorga permanente de uma rádio comunitária em São Paulo, finalmente.

Atualmente, a equipe de rádio é formada por quase 30 colaboradores voluntários e outros apoiadores de Heliópolis, alguns deles participando já por 15 anos. Coordenadoras e coordenadores são responsáveis pelas diferentes áreas de trabalho (tais como finanças, gestão ou tecnologia) e cada locutor/a é responsável por um tema específico. Juntos, eles formam uma comissão e se reúnem uma vez por mês para tomar decisões conjuntamente.

Em uma entrevista com Reginaldo, o direitor-geral, ele explica através de muitos exemplos a importância da rádio para a favela: “Nossa rádio é feita da Comunidade para a Comunidade”, diz ele. “O rádio é um espaço e um lugar de encontro para muitas pessoas […] Mesmo quando a rádio foi fechada, o trabalho aqui seguia”. O foco dos programas é a cultura local, artistas podem apresentar na rádio a sua própria música. O início de tantas carreiras de grupos e músicos hoje conhecidos como o Racionais MC, Sabotagem e Rapin Hood tinham sido colocadas em estações de rádios locais, bem como a Rádio Heliópolis, diz Reginaldo. Até mesmo pessoas de fora da Comunidade são convidadas a falar, por exemplo, sobre temas como saúde ou educação.

Mas também em outras áreas a rádio presta serviços valiosos e demonstrou já várias vezes a sua utilidade. Recentemente, durante um incêndio em uma parte de Heliópolis, no ano passado, quando a rádio foi a primeira fonte a informarsobre o acontecimento, os seus locutores comprometidos também conseguiram mobilizar apoio em forma de roupas, alimentos e abrigo temporário para as famílias afetadas. “Ainda no mesmo dia, a rádio ficou lotada de pessoas que trouxeram coisas”, diz Reginaldo. Em outra ocasião, uma chamada na rádio ajudou a localizar os pais de um menino que havia se perdido. “Tudo isso demonstra o papel fundamental da rádio na comunidade”.

Outros moradores e moradoras reafirmam o grande valor da rádio: “As pessoas que organizam essa rádio o fazem por devoção, e não para fins comerciais, e são, portanto, sempre solícitos quando a comunidade precisa de algo”, diz Sheila. “É necessário que as pessoas de lá saibam o que está acontecendo ao seu redor, e eles se envolvem através da rádio”. Carlos concorda: “A rádio é feita por nosso próprio povo e por isso podemos identificar-nos com ela, os locutores sabem do que estão falando.” Além disso, Jaqueline, que já se beneficiou várias vezes, explica: “Essa rádio é a nossa voz aqui. Se não existisse já por vários ano aqui, nós ainda seríamos tratados aqui na comunidade como se fôssemos estúpidos e ignorantes igual como o povo da periferia é tratado normalmente. Mas não somos assim. Através da rádio promovem-se cursos para jovens e adultos, programas de capacitação para pessoas sem trabalho. As pessoas ligam na rádio, quando procuram informações”.

Saúde, Educação, Conscientização – Rádio Mulher, um ambiente comunitário

A Rádio Mulher, no Complexo do Alemão, existe desde 2011 e faz parte da ONG Associação de Mulheres do Complexo do Alemão (AMCA). Na sua criação, a rádio recebeu apoio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que ajudou na compra do equipamento e na capacitação de aproximadamente 30 mulheres. Atualmente, a rádio espera a entrega de uma outorga permanente e funciona com uma outorga temporária. A rádio surgiu da ideia de expandir o campo de atuação da organização AMCA e dessa forma alcançar diretamente mais mulheres na sua vida cotidiana para ajudá-las na sua luta diária. Assim, não surpreende que o foco principal da rádio sejam os direitos das mulheres. A proteção ambiental recebe igualmente muita atenção – a favela enfrenta muitos outras problemas, tais como a água poluída e um inadequado sistema de eliminação de resíduos. Por isso, os avisos de campanhas que abordam esses problemas são parte integral dos programas: campanhas de saúde e educação sexual, contra a violência de gênero ou também iniciativas que sensibilizam para um uso mais responsável da natureza e do meio ambiente. A rádio informa também sobre outros temas atuais que atingem a comunidade, especialmente no contexto dos problemas locais, como a infraestrutura precária. São anunciados eventos, projetos e cursos de capacitação e a rádio apresenta organizações sociais, as quais as moradoras e moradores em diferentes situações podem consultar. Além da cobertura do dia a dia, nos programas se usa também um material temático especialmente produzido pela rádio que trata por exemplo questões como a alimentação saudável, a prevenção de doenças, ou a troca de receitas, que podem ser preparadas conforme a renda das pessoas no Complexo do Alemão. Se tiverem os meios financeiros as mulheres também organizam juntamente com outros projetos oficinas e treinamentos.

Para participar na rádio, as interessadas primeiro passam por um treinamento de alguns dias, no qual aprendem o básico de como fazer rádio e, dessa forma, em seguida são capazes de realizar os seus próprios programas. Para Anatalia, que também participa na rádio, a emissora não é apenas um meio para informar os moradores e moradoras sobre os acontecimentos na favela, mas também um meio de formação de opinião, com o potencial de influir sobre a maneira de pensar da população local e dessa forma afetar a realidade imediata da vida humana. A rádio fala a língua da comunidade e informa, ao contrário dos canais comerciais, sobre as coisas que são importantes para a comunidade. “A rádio devolve à comunidade a sua voz.”

As e os entrevistados relatam também que muitas vezes nas favelas faltam os meios básicos de comunicação: muitos não têm acesso à internet, alguns não sabem ler. Mas, através da rádio essas pessoas têm a oportunidade de participar nos eventos e se mantêm informados. Muito importante é também a correção da constante desinformação, que se distribuem nos principais meios de comunicação social e que aportam ao aumento de preconceitos e a marginalização das comunidades: muitas vezes nem os moradores e moradoras sabem como lidar com esse tipo de informação. A exposição à difusão desses preconceitos resulta na vergonha que algumas pessoas da comunidade têm da sua própria origem. É essencial, portanto, uma fonte de informação ao nível local, que é aberta a todos e com a qual as pessoas se identificam.

Rádio Santa Marta

A ideia de criar uma rádio surgiu, entre outras coisas, pela necessidade de falar e debater em público todas as questões que são importantes para o Morro Santa Marta. A meta era proteger e fortalecer a cultura local frente a mudanças drásticas no bairro, sobretudo a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) . A rádio começou a recolher informações e entrar em contato com pessoas que tiveram experiência em fazer mídia. Os equipamentos necessários para começar foram conseguidos por meio de doações. Em setembro de 2010, a Rádio Santa Marta entrou no ar pela primeira vez. Durante oito meses transmitia das seis horas da manhã até a meia-noite. Aproximadamente 20 locutores e locutoras estavam envolvidos em mais de 20 programas diferentes. Qualquer pessoa podia participar, sob a única condição de participar nas reuniões da rádio regularmente. A emissora trabalhava em estreita colaboração com os movimentos sociais e organizações dentro e fora da favela para organizar projetos conjuntamente. No dia 3 de maio de 2011, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a Anatel, com a ajuda da Polícia Federal, apreendeu o transmissor da rádio. O confisco foi justificado pelo fato de que a rádio não contava com uma outorga oficial. Durante algum tempo, a Rádio Santa Marta ainda transmitiu através da internet, no entanto, as/os participantes numa reunião decidiram não continuar a programação, porque a ideia original sempre tinha sido transmitir por FM.

Hoje, as pessoas que moram no Santa Marta sentem falta do seu meio de comunicação: “O rádio foi, em contraste com os meios de comunicação comerciais, atento às necessidades dos moradores e sobre o que acontecia na favela”. A programação incluiu não só uma grande variedade de diferentes estilos de música e programas sobre a história do Rio de Janeiro e as suas favelas como também discussões sobre questões sociais e problemas atuais no Santa Marta, como a crescente urbanização e o deslocamento de moradores da favela. Na rádio falava-se muito do direito à moradia e as dificuldades associadas à chegada da UPP. A participação foi grande, a rádio foi considerada um bem coletivo que permitiu realizar o próprio direito à liberdade de expressão. A emissora permitia que o povo pudesse decidir sobre o conteúdo e a forma dos relatos radiofônicos: “Foi uma forma de falar e discutir publicamente o que realmente acontece aqui. A rádio não era como os meios de comunicação comerciais, constantemente expostos à influência do governo e empresas privadas que sempre controlam o que dizemos em público. Na rádio a gente foi capaz de falar sobre a realidade do Santa Marta. Foi um projeto colaborativo que reuniu muitas pessoas e instituições sociais”. Transmitir somente na internet, como foi a tentativa depois do fechamento não é considerado suficiente: “Nem todas as pessoas conseguem ouvir rádio na internet, porque não têm acesso ou não encontram o que procuram. Mas a rádio que transmitia em FM, poderia ser ouvido tanto em casa como em lojas, bares e outros locais públicos.”

*Amarc Brasil é o capítulo brasileiro da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (http://amarc.org). Assim como a Amarc Internacional, a Amarc Brasil tem como missão promover a democracia na comunicação, especialmente no rádio, para favorecer a liberdade de expressão e contribuir para o desenvolvimento igualitário e sustentável das sociedades. Hoje está composta por mais de 50 associadas entre rádios comunitárias e educativas, centros de produção, associações e ativistas, reunidas pela defesa e exercício do direito à comunicação, com foco na radiodifusão comunitária. São eles e elas que fazem a gestão da rede com o objetivo de incidir em processos de democratização.