O Estatuto das Estatais frente ao Congresso Nacional

Empresas estatais desempenham, em diversos países e no Brasil, importante papel na economia. Sua relevância para assegurar o alcance de objetivos de interesse público, inclusive como instrumento central para o desenvolvimento econômico e superação de crises, no entanto, não é suficiente para amenizar o embate ideológico que as envolve.

Por Luiz Alberto dos Santos* e Jean Keiji Uema**  

Manifestantes apoiam empresas estatais

No mundo, passada a onda neoliberal da década de 1990, o papel das empresas estatais vem sendo reconhecido, notadamente nas economias avançadas. Recente Estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) aponta que o papel das empresas estatais nas estratégias de desenvolvimento em países como Brasil, Índia, China e África do Sul, membros dos Brics, varia dramaticamente. O estudo demonstra que países em níveis mais baixos de desenvolvimento têm, nas estatais, um importante fator para o alcance de políticas de industrialização, enquanto economias mais maduras costumam equilibrar de forma mais cuidadosa o papel dos setores público e privado. Por outro lado, o papel das estatais na economia é dependente da trajetória econômica e histórica do país. No caso brasileiro, as estatais tiveram importante papel no processo de industrialização do país e ainda têm um importante função a cumprir, tanto como instrumentos para a concretização de políticas públicas em áreas como habitação, crédito e financiamento do desenvolvimento, como no desenvolvimento tecnológico, na provisão de serviços públicos e infraestrutura.

No Brasil, na onda privatizante, nada menos que 122 empresas estatais foram vendidas desde 1990, entre elas gigantes como a Companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores produtoras e exportadoras de minérios do mundo e maior empresa do setor mineral do país, que foi vendida por apenas USD $ 5,4 bilhões. No total, foram arrecadados cerca de USD $105,8 bilhõescom as privatizações no Brasil até 2002 apesar de o processo ter sido amplamente questionado, dadas as condições privilegiadas e incentivos proporcionados pelo Governo para a sua aquisição por empresários nacionais e mesmo estrangeiros.

Contudo, e por força de sua relevância, ainda existem cerca de 150 empresas estatais federais, atuando em setores essenciais como petróleo, energia, comunicações, gestão de portos e aeroportos, financeiro, saúde, tecnologia agrícola, abastecimento e armazenamento, transporte ferroviário, indústria, defesa, entre outros, com mais de 461 mil empregados permanentes e outros 310.000 empregados temporários ou terceirizados.E ainda há outras empresas resultantes de associações de estatais com o setor privado, sob a forma de sociedades de propósito específico ou outras formas empresariais, em que as estatais detêm participações acionárias relevantes, o que impõe em situações limítrofes entre o público e o privado.

Essa atuação do Poder Público, por meio de suas empresas, está sujeita a regramentos próprios, com fundamento na Constituição, que traz, ela própria, um conjunto de regras e princípios que conformam a ação estatal. Há, por exemplo, limitações de caráter constitucional, tanto no que se refere à contratação de pessoal, quanto ao seu regime de compras e contratações. Submetem-se, do mesmo modo, mais do que as empresas privadas, aos mandamentos relativos à publicidade e à legalidade, entre outros princípios da administração pública.

No entanto, a Constituição ao mesmo tempo prevê que as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias estão sujeitas ao regime das empresas privadas, inclusive quanto a suas obrigações civis, comerciais, trabalhistas, comerciais e tributárias. As instituições financeiras estão, ainda, sujeitas às normas do sistema financeiro, fixadas pela Lei nº 4.595, de 31.12.1964. Também estão sujeitas, em vista de sua natureza pública, ao controle externo do Congresso Nacional, à fiscalização do Tribunal de Contas da União e à atuação do Ministério Púbico.

Diante da proliferação de empresas estatais no período anterior à Carta de 1988, houve definição constitucional de limites à exploração, pelo Estado, de atividades econômicas. Para tanto, a CF/88 estabeleceu que somente por lei específica pode ser constituída empresa pública ou sociedade de economia mista, ou autorizada a criação de subsidiárias. Segundo o art. 173 da Constituição, a exploração direta de atividades econômicas pelo Estado somente será permitida quando for necessária, por imperativos de segurança nacional ou de interesse econômico relevante, definidos por lei. E o art. 175 da Constituição Federal, ainda, outorga ao poder público, na forma da Lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre mediante licitação, a prestação de serviços púbicos, ampliando o espaço de atuação das empresas privadas em áreas em que imperava o monopólio estatal antes de 1995.

Ademais, a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, passou a exigir que seja estabelecido, por lei, um estatuto jurídico próprio para as empresas estatais que exploram atividades econômicas de produção ou comercialização de bens ou serviços. Esta nova lei, contudo, até hoje não foi editada.

Segundo a Constituição, esta lei deverá dispor sobre a sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas; licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; e os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

Como ressaltado, a relevância do papel desempenhado pelas estatais exige que essa completa conformação jurídica de sua atuação seja editada. A ausência de aspectos dessa legislação, tendo já decorridos, no dia 5 de junho de 2015, 17 anos da vigência do comando constitucional, tem propiciado debates acirrados que demonstram não somente a sua necessidade, mas, também, uma maior compreensão dos seus limites.

Com efeito, ainda que o Constituinte tenha pretendido aproximar as empresas estatais das empresas privadas, vedando privilégios fiscais e práticas anticompetitivas, assim como a própria expansão despropositada do “Estado empreendedor”, os ditames constitucionais sobre o conteúdo dessa legislação revelam a preocupação com a sua adequada governança e, sobretudo, sua orientação para o alcance de objetivos de interesse público, ou seja, sua função social, e com a transparência.

O discurso contrário à “caixa preta” em que se converte, em determinados momentos, a gestão das estatais, é, assim, alinhado à Constituição, e decorre, precisamente, do fato de que, em diferentes etapas de sua evolução, essas empresas, por vezes, se distanciaram de seus fins precípuos, sendo apropriadas por corporações, interesses escusos ou mesmo para a consecução de objetivos políticos de curto prazo, com prejuízo de sua saúde econômica e financeira.

Reafirmando essa constatação, o Ministro Marco Aurélio de Mello, em seu voto na ADPF nº 46, onde o STF reafirmou a validade da exclusividade assegurada aos Correios para prestar serviços públicos postais, destacava que “muitas vezes, a intervenção direta praticada pelo Estado está mais perto dos interesses secundarios do que dos primaries, verdadeiramente públicos, para aludir à classica distinção feita por Renato Alessi. Preservam-se os interesses do ente estatal incumbido da prestação da atividade em vez de proteger os usuários, destinatários finais, obedecidos os principios da celeridade, da economicidade e da eficiência.”

A melhoria da governança das estatais é, assim, um importante desafio que vem merecendo a atenção de organismos internacionais como a OCDE. Por essa razão foi criado, em 2007, a Comissão Interministerial de Governança Corporativa e Administração de Participações Societárias da União (CGPAR), para harmonizar as orientações e fazer frente a questões relacionadas com a governança corporativa das estatais e gestão de participações societárias federais. Esse Comitê é presidido pelo Ministro do Planejamento e integrado pelos Ministros da Fazenda e da Casa Civil, sendo responsável pela aprovação de diretrizes e estratégicas relacionadas à participação acionária da União nas empresas, a fim de defender seus interesses, promover a eficiência da gestão e definir critérios para a avaliação das empresas. Por meio da introdução de boas práticas de governança corporativa internacionalmente reconhecidas, como o trato justo aos acionistas, a transparência e o respeito aos direitos das partes interessadas, a independência dos conselhos de administração em relação à direção das empresas, a sujeição às normas que regulam os mercados, e a profissionalização e eficiência da gestão, é possível melhorar o exercício do direito de controle, evitar distorções derivadas do duplo papel do Estado como regulador e proprietário e criar empresas mais saudáveis, transparentes e competitivas.

As empresas estatais são hoje essenciais para o projeto de desenvolvimento inclusivo em marcha no Brasil. Não é possível considerar a execução de planos de desenvolvimento em diversas áreas sem a participação das estatais que, no contexto atual, competem com os atores privados em alguns casos, mas suprem a sua ausência quando o mercado não pode ou não quer cumprir exigências de interesse nacional, e se associam ao capital privado quando assim reclama o interesse público.

Na atualidade, as estatais cumprem funções tanto na provisão de bens e serviços, como são alavancadoras do desenvolvimento, além de apoiar a melhoria da gestão pública e o alcance de objetivos estratégicos, de longo prazo, em setores específicos da economia.

Com efeito, a opção privatista não é resposta viável à chamada “crise do Estado”. Pelo contrário. Essa opção, em passado recente, foi imposta mais pelos mercados do que pela realidade, ou pela incapacidade de empresas estatais serem geridas eficientemente. A contribuição das estatais tanto para a formação bruta de capital quanto para o equilíbrio macroeconômico, o alcance de metas fiscais e aumento da taxa de investimentos é inegável. Programas de investimento desafiadores, com a participação ativa das estatais na sua formulação e execução, dependem, fundamentalmente, de sua eficiência e capacidade de gestão.

O Estatuto das Estatais seria um importante instrumento para o alcance desses objetivos, sob a perspectiva renovada de uma governança transparente e profissionalizada, orientada para os fins sociais e a competitividade. Além disso, permitiria afastar questionamentos sobre a validade da adoção de regulamentos diferenciados de compras e contratações pelas estatais, hoje estabelecidos em decretos, como no caso da Petrobrás, pois fixaria, em sede de lei, as normas próprias para as empresas que atuam em competição com o setor privado, como prevê o art. 22, XXVII da Constituição.

Todavia, o debate que hoje se coloca, no Congresso Nacional, parece conduzir a uma abordagem distinta, que privilegia a noção de controle ou subordinação das estatais ao Poder Legislativo, e não ao Executivo.

Em dois de junho de 2015, os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal firmaram ato de criação de comissão mista para elaborar projeto da Lei de Responsabilidade das Estatais[10], o qual deverá “fixar normas e procedimentos de transparência, eficiência, governança e boa gestão das empresas públicas e sociedades de economia mista”.

Entre os pontos que seriam abordados nesse projeto estão os que tratam do controle, da capacidade de comando e da submissão ao Senado da aprovação dos nomes indicados para dirigir essas empresas. O Presidente do Senado enfatizou, na oportunidade, que “a opacidade das estatais não pode continuar. Elas devem se submeter à lei de transparência”. O Presidente da Câmara defendeu a qualificação dos gestores e a transparência, e a fixação de critério de qualificação das indicações para cargos de direção nas empresas. A intenção é que até 10 de julho de 2015 a proposta esteja apta a ser apreciada em Plenário.

Essa louvável iniciativa, contudo, não poderá deixar de considerar alguns limites, entre eles o risco de que a matéria seja objeto de questionamento quanto a vício de iniciativa. Com efeito, no art. 84, VI da Constituição, consigna-se ser privativo do Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração federal. E, quanto à iniciativa legislativa, embora não esteja expressamente consignada a iniciativa privativa quanto à regulamentação do art. 173 da Constituição, é certo que a lei resultante desse comando teria que conformar-se ao que dispõe o próprio art. 84, VI. De resto, sendo a iniciativa da criação de órgãos e entidades da Administração Pública, nos termos do art. 60, § 1º, II, “e”, reservada privativamente ao Chefe do Poder Executivo, não poderia a lei que regulamente o art. 173 restringir essa capacidade a ponto de torná-la virtualmente inexistente.

Tramitam, ademais, no Congresso Nacional, diversas proposições, de iniciativa parlamentar, cujo conteúdo merecerá o exame dessa comissão, como é o caso do Projeto de Lei do Senado nº 420, de 2014 – Complementar, do Senador José Sarney, que “institui o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, nos termos dos §§ 1º e 3º do art. 173 da Constituição Federal”. Tramita também, no Senado, o Projeto de Lei nº 167, de 2015, do Senador Roberto Requião, com o mesmo objetivo. E, além desses, foram recentemente apresentados o Projeto de Lei do Senado nº 281/2015, do Senador Ricardo Ferraço, que “estabelece regras para contratação de dirigentes e membros de conselhos de administração de empresas públicas e sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas e demais empresas em que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios detenha a maioria do capital social com direito a voto”, e o Projeto de Lei do Senado nº 343/2015 – Complementar, do Senador Aécio Neves, que “dispõe sobre as regras gerais de governança corporativa aplicáveis às sociedades controladas pela União”.

Esse processo, que tardiamente assume o lugar que merece na agenda do Legislativo, deverá, também, considerar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.284, ocasião em que o STF, ao apreciar a constitucionalidade de dispositivos da Constituição do Estado de Roraima, considerou inválida a submissão dos presidentes das sociedades de economia mista a sabatina diante do Poder Legislativo, visto serem essas entidades da Administração Pública indireta sujeitas ao regime das empresas privadas. Portanto, não poderiam sofrer nenhum crivo e nenhuma ingerência pelo Poder Legislativo. Igualmente a sujeição de dirigentes da Administração Pública – inclusive estatais – à obrigatoriedade de comparecimento diante do Poder Legislativo para prestarem contas de suas atividades estaria vedada em face da observância da iniciativa privativa do Chefe do Executivo, em ofensa ao art. 61, § 1º, II, “c” da Constituição.

Assim, no curto prazo previsto para o seu funcionamento, a referida comissão enfrentará múltiplos desafios. Caberá à sua presidência orientar os seus trabalhos de modo a que o resultado seja adequado não somente à importância das estatais para o desenvolvimento do país, mas, igualmente, à sua inserção no ordenamento constitucional e administrativo.

*É consultor legislativo do Senado Federal

**É analista Judiciário do Supremo Tribunal Federal