O desastre social como programa de governo

Cada pronunciamento da direita (em especial os tucanos) sobre o seu programa de governo ressalta aspectos da história política e econômica brasileira que resultaram em estrondosos desastres sociais. Essa prática tem sido sistemática nesse momento em que os oportunistas de plantão, de todas as matizes, se apresentam como alternativa de governo caso eles consigam, pela via golpista, interromper o ciclo iniciado no Brasil com a eleição presidencial de Lula em 2002.

Por Osvaldo Bertolino*

Até a década de 1980, era comum no Brasil o portador de algum capital aplicá-lo de modo geral em um negócio. Um bar, restaurante ou armazém de esquina, uma oficina, um salão de beleza ou algo do mesmo porte. Durante a “era neoliberal”, que se estendeu até 2002, o desmonte nacional podou o ânimo empreendedor dos brasileiros. Valia mais a pena aplicar o capital acumulado, por pouco que fosse, na ciranda financeira.

Os ganhos eram no mínimo compatíveis, e os riscos muito menores. Há, no entanto, os que, mesmo desempregados, insistiram em empreender em vez de especular: abriram videolocadoras, lojas de roupa em shopping centers, confecções, academias de ginástica. Mas poucos sobreviveram e muitos voltaram para a fila de desemprego produzida pela “era FHC”. E o Brasil entrou numa espécie de depressão coletiva.

É evidente que isso tem tudo a ver com o modelo econômico adotado nos anos 1990, que levou o país à exaustão e à depreciação de seus valores. Para entender o fenômeno, é necessário começar por uma assunção: não somos intrinsecamente perdedores nem os países ricos estão determinados ao sucesso. A evolução de uma nação é um fenômeno referente à forma como ela administra sua economia e nesse âmbito deve ser entendida.

Princípio liberal

A relação dos governos brasileiros com outros países, portanto, é determinante para entendermos o que somos hoje. É preciso perceber, por exemplo, que a arena macroeconômica dos Estados Unidos esteve desde os primórdios montada para pilhar outras nações. O sonho americano, um dos seus fios condutores da sua história como país imperialista, traduz-se na imagem do sujeito que ascende socialmente por meio da aposta que faz em si mesmo de ser melhor do que os outros. As forças produtivas norte-americanas organizam-se ao redor desse princípio liberal.

Os Estados Unidos levaram mais à frente o sentido inglês de utilização do capital como combustível para a produção e acumulação. No princípio era assim: o empreendedor tinha uma ideia de negócio, procurava investidores profissionais que, uma vez convencidos da viabilidade do projeto, o insuflavam com o capital necessário. Com um par de anos, de modo a expandir ainda mais o negócio, os empreendedores abriram as companhias ao mercado financeiro. As empresas eram novamente capitalizadas para que aumentassem a produção e os lucros. Era o despertar da obsessão norte-americana pela grandeza e o expansionismo.

Nação agropastoril

Com o aumento da produção e a acumulação de capitais, os Estados Unidos partiram para as conquistas territoriais. E o Brasil estava em sua alça de mira. Sempre tivemos, sabemos, injustiças brutais por aqui. Quase na virada para o século 20 – apenas há pouco mais de cem anos, portanto –, o país era monarquista e escravocrata. Uma miscelânea de mazelas. Mesmo trocando a monarquia pela República, a estrutura social fendida em dois extremos se manteve. E, em 1964, com o golpe militar, o país foi mais intensamente lançado, irresponsavelmente, nos braços dos imperialistas. Com a chegada da “era neoliberal”, nossa dependência se agravou.

Essa trajetória explica por que ainda uns detêm muito e muitos não têm coisa alguma. Se não estamos pior é porque o Estado brasileiro em determinados períodos se preocupou com a industrialização do país. É possível dizer que se tivéssemos dependido unicamente do capital privado no Brasil, ou se, por outra, não tivéssemos contado com o Estado desenvolvimentista de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, provavelmente ainda seríamos uma nação agropastoril.

Quem nasce escravo, morre escravo

O que prevaleceu até aqui foi o egoísmo, a inépcia ou a má vontade dos detentores do grande capital. A bolsa de valores, por exemplo, só foi aparecer na década de 1960. E, é provável, mais por conta de um decreto ou da exigência das multinacionais que chegavam com poderes absolutos pelas mãos dos golpistas de 1964 do que por um real desejo dos atores brasileiros que podiam se organizar – os trabalhadores e os democratas estavam arrochados pela tirania – para instaurar no mercado doméstico a lógica do capitalismo, mesmo que elementar.

Tanto isso é verdade que ainda hoje o capital que transita pelas bolsas brasileiras não cumpre a função de financiar projetos, investir em novos negócios, apostar em pesquisas de ponta. O dinheiro está lá, mas não de fato, como deveria. Está lá para ser usado na ciranda financeira especulativa. Coisa da servil oligarquia brasileira.

Nossa sociedade foi estruturada de modo a preservar o acúmulo, a impedir a migração social. Enquanto não se muda este estado de coisas, quem nasce escravo morre escravo, não importa o talento que se tem nem o esforço que se faz. A noção de coletivo passa ao largo – sempre passou — da ideologia das classes dominantes. Como resultado, ao ultrapassarmos cinco séculos de existência nos olhamos no espelho e ainda não enxergamos um país soberano. É essa situação que gera a falta de autoconfiança como povo e como nação – fenômeno que se agravou muito na “era neoliberal”. “O governo do presidente Fernando Henrique buscou a integração de fora para dentro, a partir de capitais e das tecnologias de fora”, disse o ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo, em entrevista à revista Princípios.

Faltava ao Brasil ousadia

Na divisão do trabalho em escala mundial, trazida pela “globalização” neoliberal, os Estados Unidos ficaram com a radiante missão de guiar a economia do planeta e países como o Brasil receberam a vil função de consumir as quinquilharias alheias, adotá-las e produzi-las com tecnologias de segunda mão.

Do ponto de vista geopolítico, o governo brasileiro apostou num sólido alinhamento com os Estados Unidos e seu projeto de “globalização” neoliberal, aceitando a internacionalização dos centros de decisão brasileiros e a fragilização do Estado, em troca de um projeto de “governança global” rigorosamente utópico. Do ponto de vista econômico, a disponibilidade de capitais internacionais financiou o abandono da estratégia desenvolvimentista, a volta às políticas econômicas ortodoxas e ao livre-cambismo do século 19.

Faltava ao Brasil ousadia – o país estacionou no cassino global e lá ficou. A criatividade brasileira, que tanto desponta em campos como a música e o futebol – e que a rigor nunca pôde ser aproveitada em um projeto de nação –, era inútil naquele mar de mediocridades liberais. Muitos brasileiros que não pertenciam ao jogo fácil de ganhar dinheiro às escuras passaram a integrar o pelotão dos perdedores – segundo os preceitos do neoliberalismo.

Os liberais querem um Estado policialesco

Para o liberalismo, o que move o mundo é o indivíduo. E o que move o indivíduo é a necessidade. Ele que trate de criar as oportunidades. Não é outra coisa a filosofia do “nade ou afunde”, que recheia o discurso da ala mais conservadora do liberalismo – predominante no Brasil da “era FHC” – mundo afora. Trata-se de uma exacerbação da lógica que identifica no indivíduo a grande mola propulsora da economia.

Chega-se, assim, a um quadro extremado do pensamento sustentado pela certeza liberal de que a grande maioria das pessoas só produzirá se, de fato, precisar fazê-lo; só agregará valor se houver a premência de agir assim. O liberalismo acredita que a maioria das pessoas não atinge seu próprio ápice, não desenvolve como deveria suas potencialidades, se não for devidamente obrigada a fazê-lo. Quanto mais necessidade o capital impor ao trabalho, mais este é instado à produção.

Quem não se encaixa nessa regra por não possuir as condições de, mesmo pressionado, produzir mais, é frequentemente ignorado nesse mundo liberal duro. Daí o ódio dos liberais de hoje quando se trata de qualquer iniciativa estatal de construir a horizontalidade social. Eles querem um Estado policialesco – principalmente para reprimir a resistência às mazelas sociais que advêm de seu projeto de sociedade.

Não é difícil entender por que esse discurso quimérico, que entre outras coisas ignora a real função da necessidade e do indivíduo no processo econômico, descambou para Estados altamente elitizados, com vocações autoritárias, e cidadãos arrochados. Havia muitas premissas equivocadas. Os neoliberais ignoram com frequência a questão social em seus discursos aritméticos. Ignoram que a coletividade tem direitos que precisam ser atendidos.

A consecução do engenho humano, portanto, é inviável pela ideologia liberal. Em termos de gestão estatal, a dose ideal de participação do governo, especialmente em um país como o Brasil, aponta para uma maior regulação econômica. Essa função do governo pode significar a diferença entre um país eletrizado pelo ambiente de oportunidades e um país que se arrasta com uma massa de desistentes e excluídos.

O combalido moral do brasileiro

Oportunidade é a soma das necessidades com as condições de satisfazê-las. Aqui vale chamar a atenção para uma contradição. O atendimento das necessidades, administrado pela visão coletiva, gera desenvolvimento. Só que o desenvolvimento não gera, por si só, horizontalidade de oportunidades. O grande desafio é manter acesa a chama da distribuição de renda. Caso contrário, tudo escurece e fica impossível caminhar na direção certa. O mínimo que precisa ser garantido, mesmo quando as necessidades não chegam a ser satisfatoriamente atendidas, é o constante trabalho despendido na criação das condições para atendê-las.

Não é necessário, enfim, nenhum diploma de sociologia para detectar as causas das vergonhosas diferenças sociais com as quais somos obrigados a conviver. Pouco tempo após o fim da “era neoliberal”, a Associação Brasileira dos Anunciantes (ABA) lançou uma campanha nacional com o nome “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”. Desenvolvida pela agência Lew Lara, a ideia era levantar o combalido moral do brasileiro. Pesquisas lá apresentadas mostraram que na América Latina ostentávamos o último lugar no quesito autoestima – o Uruguai era o primeiro e a Argentina a segunda (na era neoliberal, até as moedas da América Latina sofreram pressões desnacionalizantes).

Mandato da presidenta Dilma é estratégico

Na cerimônia estava o presidente Lula, um batalhador pela recuperação da confiança nacional. Ele disse que o problema teria de ser trabalhado a partir do núcleo da família, no que estava certíssimo. Pais que vivem com trabalho e renda – portanto com dignidade, altivez, confiança, ética e solidariedade – criarão filhos dignos, altivos, confiantes, éticos e solidários, com noções claras de cidadania. Em seu discurso, o então presidente da República declarou que em visitas a outros países mais de uma vez ouviu de empresários estrangeiros elogios ao potencial do trabalhador brasileiro.

Nessa equação, o ponto central é a Presidência da República. Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, em seu livro Desenvolvimento como Liberdade, afirma que essa é uma lição antiga. Quando o chefe de Estado – ou o chefe do Executivo – procede com correção, as pessoas que estão em torno dele costumam agir também com correção. E os que agem de forma diversa se afastam.

Se aquele que está no alto da pirâmide de alguma forma for condescendente com procedimentos inadequados, então os que agem com correção tendem a dele se afastar. (Quem já participou de direção de alguma entidade sabe o quanto isso é verdade.) Como a esquerda, ao assumir o poder em aliança com outras forças, elegeu a meta de construir um projeto nacional, a defesa do mandato da presidenta Dilma Rousseff é tarefa de sentido estratégico para o país.

Jornalista, editor do Portal Grabois