Memórias do samba, da Cantina da Lua ao Bom Motivo Bar

São Paulo e Bahia guardam redutos de samba que devem ser tratados como relíquias. São os bares Cantina da Lua, em Salvador, e Bom Motivo Bar, na capital paulista. Naquelas mesas se encontraram sambistas veteranos e iniciantes, surgiram novos sambas e instrumentistas. A música pulsava através dos anfitriões: o baiano Clarindo Silva e o paulista Roberto Lapiccirella.

Por Railídia Carvalho

Clarindo Silva na Cantina da Lua - Fernando Amorim Agência A Tarde

Roberto se foi em 2015 aos 59 anos e há pelo menos uma década não comandava mais o Bom Motivo. O local fechou as portas há alguns anos. Aos 75 anos, Clarindo resiste, dirige e milita na setentona Cantina, abençoada no Pelourinho pelo Terreiro de Jesus. Dois redutos brasileiros com semelhança de vocação e desfechos diferentes. 

Em comum entre os bares havia – e ainda há no caso da Cantina da Lua – o culto ao samba. Se há alguns anos o interesse pela memória do samba cresceu e se propagou em São Paulo (até virou moda), à época da criação do Bom Motivo, em 1984, em Pinheiros, o samba não era um chamariz, exceção aos boêmios, compositores e amantes do gênero.
Roberto, que além de dono era músico e excelente cantor, agregava no seu bar compositores e cantores anônimos, instrumentistas do samba e choro, amantes da boemia e interessados em conhecer o samba. 
Alguns nomes que passaram por lá: Zé Ketti, Jorge Costa, Monica Salmaso, Ney Mesquita, Carmem Queiroz, Chico Médico, Fernando Szegeri, Mario Mammana, Roberta Valente, Waltinho, Ibys Maceió, Paulinho Amaral e Lineu.

Músico e pesquisador, Roberto recebia com pompa autores esquecidos da velha-guarda como Maugeri Sobrinho e Victor Simon. O primeiro um dos autores do hino da copa de 58: A Taça do mundo é nossa. Simon é autor do sucesso do final dos anos 50, Bom Dia Café. 

Muitas gerações se formaram nas noitadas do Bom Motivo e com os cadernos que Roberto preparava com repertório de Assis Valente, Geraldo Pereira, Silvio Caldas, Orlando Silva e Noel Rosa, por exemplo.
A memória de Noel também é presente na Cantina da Lua há 40 anos. Os cadernos de Roberto se tornam no Pelourinho uma palestra sobre a vida de Noel que Clarindo faz anualmente no dia em que o músico faleceu, 4 de maio. Mesmo que poucas pessoas compareçam, é feita a palestra, uma roda de samba apenas com o repertório do poeta da vila e há ainda uma exposição de fotografias.
Ponto de encontro nos anos 80 de sambistas notórios da música brasileira, como Clara Nunes, Martinho da Vila e João Nogueira, só para citar alguns, a Cantina era o quartel-general dos sambistas da Bahia como Batatinha, Ederaldo Gentil, Riachão, Edil Pacheco, Walmir Lima e Tião Motorista. 
Edil comprovou em “Terreiro de Jesus”(c/ João Bosco e Francisco Bosco) a vocação da Cantina. “Tô na Bahia, festa de rua. Na Cantina da Lua tem samba”. E teve mesmo. No domingo (27) Edil Pacheco improvisou na Cantina um samba com o grupo paulista Samba da Valdinéia. Os convidados foram os veteranos sambistas baianos Russo do Pandeiro e Roque Betequê. O Portal Vermelho assistiu de camarote.
A atmosfera receptiva e de resistência é obra de Clarindo Silva. Figura carismática que dedicou sua vida à luta pela preservação do centro histórico de Salvador. A música, especialmente o samba, faz parte do movimento de resistência que emana do projeto Cultural Cantina da Lua que em dez anos realizou cerca de 800 shows no Terreiro de Jesus.
A luta do Quixote Clarindo é pela preservação e contra o esquecimento. Os livros Memórias da Cantina da Lua e a biografia de Clarindo Silva, esta pelo jornalista Vander Prata, são aliados desta luta. 
A defesa do patrimônio musical brasileiro também foi a luta de Roberto Lapiccirella. O Quixote paulista, ao lado de fiéis escudeiros, como a pandeirista Roberta Valente, e do grupo musical Bando da Rua, legaram para o Brasil a Antologia Musical Popular Brasileira – As Marchinhas de Carnaval. Um caderno de fabricação artesanal, feito sem patrocínio e pelo arrojo de Roberto.
Ele deixou mais uma obra pronta para ser editada: Os Sambas de Carnaval, o volume 2 da Antologia Musical Popular Brasileira. Faltou recursos e faltou tempo na luta contra a cultura que asfixia a cultura popular. 
A cantora Carmem Queiroz, integrante do Bando da Rua, descreveu em um comentário na histórica Agenda de Samba & Choro que a Antologia de Marchinhas era um caderno com espiral porque “a intenção dele (roberto) foi fazer um guia de marchinhas que o usuário pudesse manusear com facilidade em lugares como bares, roda de músicas, blocos e assim por diante. É como ele queria, de fácil manejo.”
Muitas histórias do samba precisam ser contadas. O Portal Vermelho quer recuperar essa memória. Clarindo Silva e Roberto Lapiccirella merecem essa reverência pela luta diária, que não dá dinheiro, que não dá fama, onde sobra trabalho e tenacidade. Pelo menos a história precisa fazer jus a isso.