Publicado 15/03/2017 17:25
A dinâmica do movimento político é mesmo surpreendente. Já dizia o falecido político mineiro Magalhães Pinto que a política é como as nuvens no céu: você olha em um determinado momento, está de um jeito. Passados alguns minutos, você vai conferir a configuração acima da tua cabeça e está tudo mudado. Se já é difícil entender o fenômeno em si, a tarefa torna-se muito mais complexa ainda quando se tenta fazer algum tipo de previsão.
Depois de ter conseguido aprovar a chamada “PEC do Fim do Mundo” no final do ano passado com relativa facilidade na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o governo começa agora a enfrentar a realidade da chamada resistência generalizada. Aquela emenda constitucional estabelecia o congelamento das despesas sociais do orçamento por longos 20 anos e foi aceita pela maioria dos parlamentares ainda muito influenciados pelo discurso uníssono do governo e da imprensa em torno da necessidade imperiosa de um ajuste fiscal rigoroso.
Apesar de todo o debate que os opositores tentamos abrir na sociedade a respeito da irresponsabilidade criminosa subjacente àquela medida, o fato é que a reação popular não foi forte o suficiente para impedir o avanço da proposição e sua aprovação em 13 de dezembro. Até a data parece ter sido escolhida com bastante empenho e atenção pelos dedicados assessores palacianos. Em 1968, no mesmo dia, havia sido editado o famigerado AI-5, quando o Brasil mergulhou de forma profunda na pior fase da ditadura militar.
Não obstante a amplitude do arsenal de maldades envolvidos na mudança constitucional válida por 2 décadas, talvez a pulverização das atrocidades a serem cometidas no futuro tenha dificultado o sentimento de revolta da maioria da população. Por mais que o Brasil esteja afundado em uma crise econômica e social sem precedentes, assistimos a um inexplicável grau de apatia e consentimento das forças sociais. Essa relativa passividade fica ainda mais difícil de ser compreendida em se tratando de redução das verbas públicas dedicadas a temas como previdência, saúde, educação, assistência e tantos outros tão necessários em momentos como o que vivemos atualmente.
Reforma da Previdência: desaprovação generalizada
No entanto, a reforma da previdência oferece um quadro bastante distinto. A proposição é muita mais incisiva em mudanças objetivas e claras. Em se tratando de uma PEC que retira direitos de forma ampla e universal, quase todos os indivíduos são atingidos – de forma direta ou indireta – pela matéria. Seja pelo risco oferecido aos que já estão aposentados, seja pela retirada de direitos dos que ainda estão na vida laboral ativa, seja ainda pelo completo descrédito que oferece às futuras gerações que ainda pretendem ingressar na fase de trabalho de suas vidas.
Assim, a questão política fica mais sensível e as próprias pesquisas encomendadas pelo núcleo duro do governo sistematicamente têm apresentado um cenário de elevada impopularidade dos temas sugeridos para a mudança previdenciária. Tendo já decorrido mais da metade do mandato dos parlamentares eleitos em outubro de 2014, os deputados começam a colocar na balança também a reação dos eleitores frente a tal medida. O Presidente começa, literalmente, a temer sobre a sua capacidade de tratorar o Congresso, como ocorreu em dezembro.
As advertências começam a pipocar aqui e ali. Dissidências no interior da própria base aliada são reveladas e emergem na superfície do cenário da disputa de poder. Líderes políticos conservadores se levantam quando o tema volta à baila, como Paulinho da Força Sindical ou dirigentes do PTB, como Arnaldo Faria de Sá. Ainda que não tenham abandonado seu perfil conservador em termos de projeto de país, tais referências do quadro partidário mais à direita expressam também o sentimento de suas bases sociais. Nesse debate, em particular, a contestação aberta da política oficial em matéria considerada “estratégica” pelo Palácio do Planalto não deve ser menosprezada.
Assim, o governo reconhece a importância de tais sinais emitidos e é possível que passe a levá-los em consideração . Por exemplo, pode incorporar a leitura da temperatura a partir da métrica oferecida pelos termômetros desses políticos de sua base, mas que mantêm algum grau de contato com o sentimento do pulso popular. Não é por outra razão que até mesmo o relator da matéria, escolhido por sua extrema lealdade e dedicação ao projeto de Temer, já sinaliza para a necessidade de alguns recuos organizados na tropa aliada. O deputado Artur Maia (PPS/BA) já avisou que a reforma não será aprovada da “forma como foi enviada” pelo Executivo. Isso significa que já avança a incorporação de críticas ao projeto.
Rachas na base aliada
De outro lado, o núcleo duro começa a enfrentar problemas com os próprios partidos da base aliada. Estão aí alguns dos exemplos mais recentes de questionamento da capacidade de manter o grupo unido na defesa das maldades. Esse foi o caso sintomático das manifestações de caciques do PMDB a favor da liberação do voto dos deputados do partido, bem como o anúncio do PROS e do PSB de que seus integrantes votarão contra o texto enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional.
Nesse contexto ganhou relevância também a atuação pró ativa do amplo leque de entidades, especialistas e pesquisadores envolvidos com o tema. Apesar do evidente boicote patrocinado pelos principais órgãos de comunicação às vozes críticas ao projeto de Temer, conseguimos furar o cerco à informação por meio das redes sociais e até mesmo por meio de peças publicitárias encaminhadas por associações que se manifestaram claramente contra a proposta redutora de direitos.
Nesse momento em especial, a divulgação das informações reveste-se de fundamental importância. À medida que a população vai tomando consciência a respeito do tamanho das maldades incluídas no texto da PEC 287, cada vez mais vai ficando difícil para o governo conduzir a tramitação com a folgada maioria que ele se gaba de manter no interior do Parlamento. Mais debate e mais luz no assunto reforçam o sentimento de indignação popular contra a medida. E esse movimento coloca mais interrogação na cabeça dos deputados preocupados com sua imagem eventualmente arranhada perante o eleitorado.
Ainda que a preocupação não tenha se convertido em desespero, a luz amarela parece ter acendido nos dirigentes do governo. A tentativa destrambelhada de promover censura à divulgação de material contrário à Proposta revela tal dificuldade em lidar com a generalização crescente das críticas. Essa mesma motivação levou o Executivo a se apoiar em um esquema de publicidade típico de quem se vê acuado em sua estratégia. Na direção oposta a todo o discurso a respeito da crise fiscal e da necessidade de cortar despesas secundárias, o governo paga verbas milionárias para difundir a campanha mentirosa a favor das mudanças nas regras previdenciárias.
Os grandes jornais e as redes de televisão martelam cotidianamente as versões patrocinadas pelo Ministério da Fazenda a respeito da urgência da matéria e da catástrofe iminente caso a medida não seja aprovada. Matérias e colunas de “especialistas” buscam desqualificar os argumentos apresentadas pelos estudos que negam o “déficit estrutural” do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Esse é o caso do excelente documento “Previdência: reformar para excluir?” conduzido pela ANFIP e pelo DIEESE. Ali estão apresentados os números baseados nas estatísticas oficiais da administração pública federal e que evidenciam a manipulação de informações para justificar o desmonte previdenciário.
Isolamento de Temer e impopularidade da reforma
As pessoas começam a perceber que o sistema da seguridade social está equilibrado em termos financeiros. Existe até mesmo um orçamento anual aprovado pelo poder legislativo tratando do tema que engloba previdência, saúde e assistência social. O ponto sensível é que o Executivo se apropria das fontes de receita tributária que deveriam ser destinadas para esse fim e as utiliza para promover o famigerado superávit primário.
Na verdade, o problema de imagem começa em casa. É amplamente conhecido o fato de que o próprio Temer se aposentou aos 54 anos e recebe mensalmente salários somados a benefícios previdenciários em valores altíssimos. Ora, nessas condições, como justificar politicamente que o problema se resolveria com elevação da idade mínima para 65 anos, a exigência de 49 anos de contribuição e a proibição de acumulação para os setores da base de nossa pirâmide social?
Quase todos os dirigentes políticos que se lançam a clamar contra os supostos abusos do regime previdenciário estão no conjunto dos que usufruem dos benefícios desse mesmo sistema. Além disso, uma boa parte deles deverá constar da tão aguardada quanto temida “lista de Janot” – quando finalmente deverão ser oficializados os boatos vazados a respeito dos denunciados em esquemas de corrupção em vários níveis de governo e de ampla coloração partidária.
O aprofundamento da crise econômica e seus efeitos sociais operam como condimento para o crescimento da insatisfação popular e para o aprofundamento dos índices de impopularidade de Temer. O governo vai perdendo quadros e os colaboradores que ficam aos poucos vão perdendo as respectivas vestes. As denúncias de corrupção não cessam de vir à tona, mas o governo nada faz com os acusados de sua proximidade. Ao contrário, a cada dia que passa o presidente perde mais o prurido e o pudor. A sua imperdoável fala no dia internacional das mulheres revela sua enorme dificuldade de operar em sintonia com seu tempo e com as aspirações da maioria da população.
Caso insista na aprovação da maldade previdenciária, o rei corre risco de ficar nu.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.