Colapso do Estado Islâmico pode abrir guerra ampla no Oriente Médio

Um conflito maior entre as forças que se uniram para destruir o EI pode ser o resultado da derrota militar do grupo.

Por Antonio Luis M. C. Cos da Carta Capital

 

EI

 Parece ter sido um ato de desespero dos jihadistas a explosão que na quarta-feira 21 aniquilou a mesquita de Al-Nuri em Mossul, a mesma na qual o “califa” Al-Baghdadi proclamou a fundação do Estado Islâmico em julho de 2014. As tropas iraquianas apoiadas pelos Estados Unidos chegaram a menos de um quarteirão de suas portas. Os militantes quiseram impedir que caísse nas mãos dos inimigos e, ao mesmo tempo, culpá-los pela destruição.

É um símbolo do colapso do EI enquanto entidade no controle de territórios e populações significativas nessa região. Entretanto, longe de pressagiar a paz, pode se tornar a senha para que a precária cooperação entre rivais articulada em 2015 e 2016 para destruí-lo – Otan e Rússia, sauditas e catarenses, curdos e governo Assad, Irã e Turquia – se desfaça de vez e abra caminho para uma guerra maior e mais mortal.

Barack Obama aderia à máxima de Georges Clemenceau, segundo a qual a guerra é assunto sério demais para ser confiado aos militares. Donald Trump parece, porém, ter dado carta branca ao Pentágono, possivelmente por falta de vontade de analisar relatórios da Inteligência ou do Departamento de Estado, ocupar-se do assunto e tentar entender os problemas em jogo.

Até onde se sabe, a estratégia está principalmente nas mãos do general James “Cachorro Louco” Mattis, secretário da Defesa, cuja frase mais conhecida é “seja educado, seja profissional, mas tenha um plano para matar todos com quem você se encontra”.

Al-Baghdadi teria sido morto em bombardeio russo de maio, diz Moscou (Foto: Al-Furqan Media/AFP)

Os generais forneceram mais armas para as Forças Democráticas Sírias (FDS), força curda com uma participação simbólica de árabes e outras etnias do norte da Síria e ampliaram sem restrições os bombardeios às posições do “Califado”, tanto do lado sírio quanto do iraquiano. Ao mesmo tempo, reduziram a transparência sobre seus próprios alvos e ações.

Não mais informam sobre as ações de responsabilidade específica de militares dos EUA, mas apenas sobre os ataques da “coalizão”. O EI está sendo de fato batido em Mossul e Rakka, mas os bombardeios indiscriminados de áreas urbanas pelos Estados Unidos e aliados provocaram cerca de 4 mil mortes civis nos últimos meses, segundo ONGs independentes. Isso, provavelmente, garante ressentimento contra os EUA e insurreições futuras e as consequências diplomáticas também podem ser contraproducentes.

O FDS é essencialmente o exército do Estado autônomo fundado em março de 2016 pelos curdos nas áreas tomadas ao EI no norte da Síria, oficialmente “Federação Democrática da Síria do Norte”, informalmente Rojava, “Oeste” (do Curdistão) em curdo. Para evitar esse resultado, a Turquia apoiou secretamente o EI até meados de 2015, pelo menos, enquanto pressionava inutilmente o Ocidente para incluir as forças curdas na sua lista de “organizações terroristas”.

Além de ser uma força laica e progressista em meio ao fundamentalismo conservador crescente na região, os curdos sírios são aliados naturais dos separatistas curdos da Turquia. Ao ajudar o Rojava a tomar Rakka, os EUA atingem frontalmente os interesses do governo turco, com o qual as relações estão abaladas desde o golpe fracassado de julho de 2016 contra Recep Tayyip Erdogan. Quem os EUA trairão, os curdos ou os turcos? Em qualquer caso, a reputação de Washington como aliado confiável sairá prejudicada, mas o segundo seria mais custoso, visto ser a Turquia um integrante tradicional e relevante da Otan, organização, por certo, menosprezada por Trump.

Outro exemplo de pouco caso pelos aspectos diplomáticos talvez tenha sido a ação do domingo 18, na qual um avião sírio foi abatido por um F-18 estadunidense. Segundo os Estados Unidos, o Sukhoi-22 lançara bombas “perto” de combatentes das FDS, segundo os sírios, estava em missão contra o EI.

Os planos de Mohammed bin Salman, novo herdeiro saudita, parecem ter sido aprovados por Trump. Mas a Rússia também tem os seus (Foto: Nicholas Kamm/AFP)

 

Os planos de Mohammed bin Salman, novo herdeiro saudita, parecem ter sido aprovados por Trump. Mas a Russia também tem os seus(Foto: Nicholas Kamm/AFP).

O general Joseph Dunford, chefe do Estado-Maior e o diplomata Brett McGurk, articulador da coalizão contra o EI, também seriam contrários, até porque isso significaria uma ruptura também com o governo de Bagdá e as milícias xiitas que até agora combateram ao lado dos EUA contra o EI.Abater um avião de um país com o qual não se está oficialmente em guerra e que não atacou suas próprias tropas ou território não é uma decisão rotineira e costuma ter sérias consequências, como foi o caso. A Rússia suspendeu a cooperação com Washington no espaço aéreo sírio e informou que aviões dos EUA e aliados a oeste do Eufrates seriam rastreados como alvos em potencial, passíveis de ataque se ameaçassem suas forças.

Foi um caso especialmente dramático, mas é parte de uma série. Desde maio, forças do Pentágono abriram fogo três vezes contra milícias xiitas sírio-iraquianas, treinadas e apoiadas pelo Irã no sul da Síria, perto da fronteira tríplice com Iraque e Jordânia. Em junho, dois drones do governo sírio, de fabricação iraniana, foram abatidos pelos EUA no sul da Síria, nessa mesma área, onde há uma base de rebeldes sírios treinados pelo Pentágono.

A dúvida é se essas iniciativas são mero resultado de se deixar a guerra ser conduzida por militares de pavio curto e pouco dispostos a arriscar tropas e reputações por questões diplomáticas e humanitárias ou se fazem parte de um plano mais amplo. O Pentágono pode ter-se decidido a cortar o caminho às tropas de Damasco e impedir Assad de retomar territórios perdidos pelo EI na região do Eufrates e da fronteira iraquiana. Talvez tenha concluído, mais uma vez, que não é do interesse dos EUA e seus aliados a derrota total do EI.

Uma hipótese é que os EUA estão deliberadamente abrindo caminho aos militantes do “Califado” atacados em Rakka para fugirem para o leste, tomarem Deir ez-Zor, cidade ainda controlada pelo governo sírio, mas cercada há quatro anos pelos fundamentalistas, de modo a preservar um resto do “Califado” como uma combativa cunha sunita destinada a impedir a integração do chamado “Crescente Xiita”, uma esfera de influência do Irã abarcando seus governos aliados do Iraque e Síria e o Líbano parcialmente controlado pelo Hezbollah, que é o pesadelo maior de Israel e dos sauditas e seus satélites.

Outra possibilidade, ainda mais preocupante, é a de uma tentativa deliberada de provocar uma guerra de grandes proporções com o governo sírio e o Irã. Segundo jornalistas da Foreign Policy, dois altos funcionários civis do Conselho de Segurança Nacional do governo Trump, o diretor de inteligência Ezra Cohen-Watnick e o assessor para o Oriente Médio Derek Harvey, pretenderiam deflagrá-la contra a vontade do próprio general Mattis, conhecido como uma das vozes mais agressivas contra o Irã na cúpula das forças armadas dos EUA.

O general Herbert McMaster, assessor de Segurança Nacional, teria tentado afastar Cohen-Watnick, que disse a outros funcionários querer usar a CIA para derrubar o governo iraniano, mas foi impedido de fazê-lo por Trump a pedido de Steve Bannon e Jared Kushner. Embora não tenha autoridade direta sobre as forças armadas, pode ter a simpatia de comandantes de médio escalão dispostos a criar incidentes.

Essa situação, perigosa por si só, é ainda mais explosiva em conexão à destituição como herdeiro do rei saudita, de Mohammed bin Nayef, sobrinho de 57 anos do rei saudita Salman, em favor do filho de 31 anos do rei, Mohammed bin Salman. Bin Nayef, ex-ministro do Interior, atuava na área de segurança e contraterrorismo do reino desde 1999 e era tido como um líder cauteloso, amigo da CIA e afinado com os governos de Bush júnior e Obama.

Bin Salman, ministro da Defesa, é muito mais agressivo e o responsável direto pelo apoio saudita a fundamentalistas da Al-Nusra (Al-Qaeda na Síria) e Ahrar al-Sham na guerra civil síria, como pela intervenção direta na guerra civil do Iêmen, duas aventuras caras cujos resultados têm sido duvidosos em termos militares e políticos e trágicos no aspecto humanitário.

O príncipe herdeiro também tem boas relações com Israel e, segundo o Haaretz, realizou um encontro secreto com Benjamin Netanyahu em Eilat, em 2015. Ele e o herdeiro de Abu Dabi, Mohammed bin Zayed Al-Nahyan, provavelmente estão por trás da tentativa de bloqueio ao Catar contida pelos EUA em 2014 e do hacking à agência catarense de notícias que serviu de pretexto para o bloqueio atual.

O plano é, obviamente, submeter o Catar à sua aliança com Israel contra o Irã, se necessário por um golpe de Estado ou por intervenção militar direta e os príncipes provavelmente se sentiram autorizados a tanto durante a visita de Trump a Riad.

Entretanto, o governo dos EUA parece dividido. Trump encorajou abertamente os sauditas pelo Twitter, mas seu secretário de Estado, Rex Tillerson, se esforça por intermediar a crise, e o secretário da Defesa manteve a venda de 36 caças F-15 ao Catar por 12 bilhões de dólares. Enquanto isso, o Catar recebe não só apoio logístico iraniano e turco para resistir ao cerco saudita, como também tropas da Turquia.

Os australianos suspenderam sua participação nos ataques da coalizão anti-EI por causa da ameaça russa e os alemães, devido à deterioração das relações com Ancara, iniciaram a transferência de seus aviões da base turca de Incirlik para a Jordânia. Se a tentativa saudita de mudança de regime no Catar fracassar, pode não só dividir o mundo árabe, como afastar ainda mais a Turquia do Ocidente e aproximá-la da Rússia.

Outro fator de instabilidade é a disposição dos curdos do Iraque de realizar um referendo e proclamar sua independência em setembro, criando um enfrentamento com Bagdá que também colocará os EUA em posição delicada. Qualquer passo em falso pode causar um desastre – e Trump no Oriente Médio é um fogueteiro dentro de um paiol de pólvora.