Crise no Rio de Janeiro: uma tragédia para a população

A situação impõe sofrimento aos cidadãos e o estado decide enveredar pelo perigoso caminho da austeridade fiscal. 

Por Rodrigo Martins*

Rio de Janeiro - .

Com doutorado na Universidade de Oxford (Reino Unido), o físico Luiz Antônio da Mota, de 53 anos, nunca pensou que voltaria a depender da ajuda financeira de familiares para sobreviver. Pai de dois filhos adultos, ele está com a conta bancária no vermelho e seis empréstimos consignados abertos.

Mota não está desempregado, é diretor do Centro de Tecnologia e Ciências da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), mas não recebe há três meses, além de não ter visto a cor do 13º salário referente ao ano anterior.

“Jamais imaginei que passaria por uma situação como esta após 21 anos de docência”, lamenta o professor. “Esse é apenas o meu drama pessoal. O maior prejuízo é da sociedade, que está perdendo uma de suas melhores universidades por esse progressivo processo de sucateamento.”

Quinta maior universidade do Brasil e 11ª da América Latina, de acordo com o ranking do Best Global Universities, a Uerj suspendeu o ano letivo de 2017 por tempo indeterminado. Em comunicado divulgado na segunda-feira 31, o reitor Ruy Garcia Marques diz não ser possível retomar as aulas em virtude do atraso nos salários de funcionários e nas bolsas concedidas a alunos cotistas.

“As condições de manutenção da universidade degradam-se cada vez mais com o não pagamento das empresas terceirizadas, contratadas por meio de licitação pública: limpeza, vigilância e coleta de lixo estão restritas, além de o Restaurante Universitário permanecer fechado”, diz a nota. Na verdade, a instituição consultou mais de 50 empresas para reativar o “Bandejão”, mas nenhuma delas quis participar da seleção para assumir o serviço.

 

A Uerj é a mais recente vítima da grave crise fiscal que assola o Rio. Em situação de calamidade financeira desde maio de 2016, o estado fechou o ano com déficit superior a 17 bilhões de reais. Para 2017, a Assembleia Legislativa reduziu as despesas estaduais de 79 bilhões para 77 bilhões. Ainda assim, o orçamento prevê um déficit de 19 bilhões.

O aperto compromete a prestação de serviços essenciais à população. Sucateados, os hospitais estaduais não têm conseguido renovar contratos com prestadores de serviços e se veem forçados a suspender certas atividades. A crise estende-se às unidades de saúde federais e municipais.

Fundado há 80 anos e referência em tratamento psiquiátrico, o Instituto Philippe Pinel, em Botafogo, na Zona Sul da capital fluminense, teve o seu setor de emergência fechado na quarta-feira 2, por falta de médicos e pela impossibilidade de contratar novos profissionais.

A criminalidade cresce em níveis assustadores. No primeiro semestre, o estado registrou 3.457 mortes violentas, maior número desde 2009. No fim de julho, pela décima vez em dez anos, o estado recorreu à intervenção das Forças Armadas. Cerca de 8,5 mil militares reforçarão o patrulhamento até 31 de dezembro, podendo ficar até o fim de 2018.

Avesso ao uso de soldados no combate à violência urbana, que costuma recrudescer tão logo as tropas batem em retirada, o comandante do Exército, general Eduardo da Costa Villas Bôas, ausentou-se da recepção a Michel Temer no Rio de Janeiro na segunda-feira 31, quando o peemedebista decidiu acompanhar a movimentação dos militares.

O desemprego atingiu, no primeiro trimestre de 2017, 14,5% da população em idade ativa (14 anos ou mais), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE. A retração no consumo das famílias brasileiras, que despencou 10% entre o último trimestre de 2014 e o primeiro de 2017, agrava a crise no comércio. Apenas no mês de junho, 914 lojas de rua fecharam na capital fluminense em decorrência da crise, segundo uma pesquisa do Clube de Diretores Lojistas do Rio.

“Nosso movimento caiu 60% nos últimos dois anos. Ninguém compra. Muitos perderam o emprego, os servidores estão sem receber, as lojas não param de fechar”, desespera-se Zizélia Alexandria, de 46 anos, gerente de uma loja de calçados na Rua Uruguaiana, um dos mais tradicionais centros de comércio popular do Rio, hoje povoado por numerosas placas de “Aluga-se”.

O turismo também patina. Em julho, temporada de férias, a taxa de ocupação dos hotéis ficou em apenas 40%, segundo a ABIH, associação das empresas do setor.

Nem parece que, há apenas um ano, a capital fluminense abrigou os Jogos Olímpicos, cujas despesas somaram mais de 40 bilhões de reais. Reformado para a Copa do Mundo e refeito para as Olimpíadas, o Estádio do Maracanã simboliza o fracasso das gestões peemedebistas no estado.

Hoje, a arena está praticamente às moscas: nenhum dos grandes clubes do Rio tem disputado partidas por lá. Somente o valor gasto pelo estado nas obras (1,3 bilhão de reais) daria para custear por um ano a Uerj, distante uma quadra do equipamento esportivo.

O orçamento da universidade prevê um gasto de 1,136 bilhão de reais em 2017. Desse montante, já foram repassados 515,8 milhões, segundo a Secretaria Estadual da Fazenda. A atual previsão orçamentária é idêntica à do ano anterior, mas, em 2016, só foram efetivamente repassados 767,4 milhões.

Pioneira na criação de cotas, a Uerj vê o seu exitoso projeto de inclusão ameaçado, alerta Adair Rocha, professor da Faculdade de Comunicação. “Hoje, 49% das vagas são destinadas a alunos egressos de escolas públicas, com um porcentual específico para pretos, pardos e indígenas”, explica. “Boa parte desses estudantes só consegue se dedicar aos estudos graças à bolsa de 450 reais, mas eles também estão sem receber.”

É o caso de Jonathan Guedes, de 20 anos, aluno do curso de Enfermagem. Como a família mora no distante município de Japeri, na Baixada Fluminense, o jovem de 20 anos usa o recurso para o aluguel de um quarto na Tijuca e pagar despesas com livros. A alimentação é garantida por um vale-refeição cedido pelo pai, que trabalha como roçador. “Sem a bolsa, fica muito difícil continuar, pois meu curso é integral e bastante exigente. Alguns colegas tentam trabalhar em meio expediente, mas as notas despencam."

Professora da Uerj desde 1972, Maria Therezinha Nóbrega lamenta a situação de abandono. “Nunca vi uma crise tão grave. Hoje seria o primeiro dia de aula, esses corredores deveriam estar fervilhando”, lamenta, o olhar perdido no andar esvaziado.
Com 6 mil alunos, a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro também corre o risco de paralisia por insuficiência de recursos. “Além dos salários atrasados, todos os fornecedores estão sem receber há meses. Já sofremos corte de energia elétrica e estamos sem serviço de vigilância há um ano. As compras estão comprometidas. As empresas nem sequer participam das tomadas de preços”, relata o reitor Luis Passoni.

“Esse processo de sucateamento faz parte de um projeto maior, de desmonte do Estado, influenciado pela agenda neoliberal e pelo ideário do Estado mínimo. Por isso, decidimos manter as aulas. Ocupar o campus é uma forma de resistir. Não está, porém, descartada uma greve. Os funcionários e docentes estão sem dinheiro até para se deslocar até aqui".

De acordo com o Movimento Unificado dos Servidores Públicos Estaduais (Muspe), mais de 200 mil funcionários, aposentados e pensionistas do estado estão com vencimentos atrasados. A promessa é de que os valores referentes aos meses de maio e junho sejam quitados na segunda quinzena de agosto, com a receita de 1,4 bilhão de reais resultante do leilão da folha de pagamento do funcionalismo estadual. O pagamento do 13º salário de 2016 depende, porém, da homologação do acordo de recuperação fiscal do estado com o governo federal, a prever a suspensão do pagamento das dívidas com a União por três anos e a contratação de um empréstimo de 3,5 bilhões de reais.

Em contrapartida, o estado assumiu o compromisso de seguir um rígido programa de austeridade fiscal, além de privatizar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). No início de julho, o governador Luiz Fernando Pezão sancionou uma lei que estabelece um teto de gastos públicos no estado.

Agora, a Assembleia Legislativa, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o próprio Executivo devem ajustar suas despesas de caráter obrigatório ao patamar de 2015, reajustado em 15,27%. A soma dos gastos de todos os poderes em 2018 não poderá ultrapassar 65 bilhões de reais.

“O governo federal parte do pressuposto errado de que o problema está nas despesas, mas na verdade está nas receitas”, observa o economista Mauro Osório, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além dos impactos da recessão nacional, que fez o PIB encolher 7,2% em 2015 e 2016, o estado sofre com a desvalorização do preço do petróleo no mercado internacional.

O barril valia mais de 100 dólares até agosto de 2014. No último mês de junho, o valor era inferior a 48 dólares. Em decorrência disso, a receita dos royalties do recurso mineral, uma das principais fontes de arrecadação do estado, despencou de 12 bilhões de reais, em 2013, para 4 bilhões, em 2016.

“A Constituição de 1988 vetou a cobrança de ICMS sobre óleo e gás nos estados produtores. O imposto passou a ser coletado no destino, isto é, na bomba de gasolina dos estados consumidores, sobretudo São Paulo”, diz Osório. “O problema é que os royalties não têm compensado a perda. Repare a discrepância: São Paulo tem população 2,7 vezes maior que a do Rio, um PIB três vezes superior e a receita tributária é cinco vezes maior.”

Osório observa, ainda, que a União arrecadou 130 bilhões de reais em tributos no Rio de Janeiro, mas só devolveu ao estado e aos seus municípios cerca de 20 bilhões. “Há uma profunda injustiça tributária contra o estado do Rio. Sem repactuar essa repartição, as crises vão se suceder.”

As desonerações fiscais concedidas pelas gestões de Sérgio Cabral, preso pela Operação Lava Jato desde novembro do ano passado, e de Pezão, com o mandato ameaçado por uma ação de abuso do poder econômico, também estão sob suspeita. De acordo com o Ministério Público Federal, Cabral recebeu cerca de 122 milhões de reais em propinas de empresas de ônibus, em troca de benefícios fiscais e reajustes inflacionados das tarifas.

Diante do cenário, o teto de gastos públicos tende a ser inócuo. “Não adianta conter as despesas se a arrecadação continuar em queda”, alerta o economista João Sicsú, ex-diretor de Políticas e Estudos Macroeconômicos do Ipea e professor do Instituto de Economia da UFRJ. “Na prática, esse congelamento reduz a capacidade de investimento do estado, para tentar reativar a economia local. O socorro federal, condicionado a esse receituário de austeridade, dará um fôlego muito curto.”

Não é tudo. O congelamento pode representar a supressão de serviços essenciais à população. “A demanda pelos serviços de saúde só tem aumentado com o envelhecimento da população e um quadro epidemiológico mais complexo. Manter o mesmo patamar de investimento representa uma diminuição do gasto público per capita”, alerta o médico José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde de Lula.

Presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio, Nelson Nahon afirma que o estado já vive uma grave crise sanitária. “O estado deveria investir ao menos 12% de suas receitas em saúde, mas não aplica nem metade disso. Na verdade, o sucateamento atinge unidades de saúde geridas pelas três esferas de governo. Uma fiscalização nos 19 hospitais federais e estaduais do Rio com serviços de oncologia revela que, entre o diagnóstico e o início do tratamento, os pacientes com câncer aguardam de 10 a 12 meses, contrariando a Lei nº 12.732/2012, que obriga a iniciar os cuidados em, no máximo, 60 dias. Por falta de recursos humanos e financeiros, vários serviços estão sendo fechados."

O Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Uerj, para citar um exemplo, possui 500 leitos de internação, mas só tem conseguido preencher 180 vagas. Chefe de uma equipe de 350 enfermeiros e 1.040 técnicos de enfermagem, Rejane Araújo de Souza diz que o problema não é falta de demanda, e sim de profissionais.
“Com a atual equipe, temos condições de receber na internação até 350 pacientes. No entanto, como o pessoal está sem receber salários há três meses, boa parte dos funcionários não consegue vir a todos os plantões”, afirma Souza.

“Não é falta de empenho. Muitos enfermeiros pedem para fazer plantão dobrado, de 24 horas, só para economizar com passagem de ônibus. Alguns profissionais pedem para dormir no hospital, com medo de não arrumar carona para voltar no dia seguinte. Um funcionário do administrativo chegou a ser despejado de casa por falta de pagamento de aluguel. Teve de ser encaminhado para um abrigo mantido pela prefeitura.”

Diante da situação de penúria, o Movimento Unificado dos Servidores Públicos organizou uma campanha para arrecadar alimentos para aos mais afetados pelos atrasos salariais. Entre o Natal e Réveillon, foram doadas mais de 5 mil cestas básicas. Reativada no início de julho, a campanha distribuiu outras 3 mil cestas nos últimos 20 dias.

“O governo estadual promete resolver a situação assim que for homologado o acordo com a União, mas muitos funcionários públicos, ativos e inativos, estão em situação desesperadora. São frequentes os relatos de despejos, bem como o de cortes de energia elétrica, de água e de luz”, afirma Márcio Garcia, presidente do Sindicato dos Policiais Civis e um dos articuladores do Muspe. “Esse é o nosso legado olímpico. Depois de o estado torrar bilhões com os Jogos, vemos um ex-governador preso, outro ameaçado de cassação e os servidores dependerem de cesta básica para sobreviver.”

Na fila para garantir a sua sacola de mantimentos, o aposentado Paulo de Souza, de 78 anos, lembrava dos momentos gloriosos em que serviu no Palácio Guanabara, como garçom, os ex-governadores Faria Lima e Leonel Brizola.

Morador de Jardim Primavera, em Duque de Caxias, ele levou mais de uma hora em viagem de trem para assegurar a sua cesta, na quarta-feira 2. “Só não estou passando fome porque continuo trabalhando em uma empresa terceirizada, que presta serviços de limpeza. Não recebo minha aposentadoria há três meses.”