Ha-Joon Chang e a escada do Brasil para o desenvolvimento

Docente da Universidade de Cambridge, o economista sul-coreano fez duas conferências no Instituto de Economia e falou ao Jornal da Unicamp. Segundo Ha-Joon Chang, a política brasileira de combate à inflação favoreceu mais o setor financeiro que o industrial.

Pro Manuel Alves Filho

Ha-Joon Chang - Foto: Antonio Scarpinetti

O sul-coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, é considerado um dos mais proeminentes economistas heterodoxos da atualidade. Conhecido por ser um crítico do liberalismo econômico, Chang conta com muitos admiradores no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Prova disso foi o interesse demonstrado por estudantes e docentes da Unicamp nas duas conferências apresentadas por ele no Instituto de Economia (IE), nos últimos dias 8 e 9 de maio. Na primeira delas, o auditório superlotou e parte do público teve que se acomodar no chão. A presença de Chang na Universidade faz parte de uma série de eventos em comemoração aos 50 anos de criação do IE.

Entre uma atividade e outra, o docente de Cambridge fez uma pausa para falar ao Jornal da Unicamp. Na entrevista que segue, ele aborda diversas questões, várias delas relacionadas ao desenvolvimento econômico. Segundo ele, ao contrário do que muitos pensam, as economias dos países ricos avançaram por causa da adoção de políticas protecionistas, e não porque se basearam no livre comércio. “Somente depois de que suas economias se fortaleceram foi que essas nações passaram a defender o livre comércio”, afirma.

Jornal da Unicamp – Esta é a sua segunda visita à Unicamp. Como avalia o contato com a comunidade universitária nesta oportunidade?

Ha-Joon Chang – Agradeço ao convite do Instituto de Economia da Unicamp para falar aos seus estudantes e professores. Não poderia ter ficado mais satisfeito com a presença e a participação do público nas minhas duas conferências. Os participantes fizeram perguntas de muita qualidade. Também fiquei feliz porque alguns dos meus livros são adotados para reflexão em disciplinas do Instituto de Economia. É um prazer estar aqui para participar deste momento no qual o Instituto comemora 50 anos de atividades.

Em seu trabalho, o senhor afirma que os países ricos, embora defendam o livre comércio, desenvolveram suas economias a partir de políticas protecionistas. Como isso ocorreu?

Os países ricos tiveram maior autonomia para implementar essas políticas protecionistas ao longo do Século XIX. Fizeram isso por meio de tratados de comércio desiguais em relação a economias mais frágeis. Já no Século XX, após a Segunda Guerra Mundial, abriu-se um novo espaço, diante do contexto geopolítico da Guerra Fria. Foi quando os países em desenvolvimento também adotaram políticas protecionistas para fomentar indústrias nascentes. Esse cenário vai se reverter a partir dos anos 1980 com a crise da dívida externa enfrentada por muitas economias em desenvolvimento. Em 1995, com a constituição da OMC [Organização Mundial do Comércio], reforça-se a política do livre comércio. Como consequência, nos últimos 20/30 anos, temos observado a deterioração da indústria em muitas economias.

Por falar em deterioração da indústria, o senhor também tem alertado para o risco da desindustrialização das economias emergentes. No caso do Brasil, quais os perigos de o país sustentar a sua economia na produção de commodities?

Esse fenômeno teve início nos anos 1980. É um fenômeno que um colega de Cambridge, Gabriel Palma, denomina de “desindustrialização prematura”. O termo classifica a queda da participação da indústria na economia antes mesmo de o processo de industrialização ter se consolidado totalmente. O Brasil teve uma das principais economias manufatureiras do mundo. Até o início dos anos 1980 a indústria respondia por quase 30% do PIB brasileiro. Depois disso, ocorreu um processo importante de deterioração. Atualmente, essa participação está em torno de 10%. A indústria tem uma importância grande no processo de desenvolvimento econômico. Uma vez desestruturado esse setor, fica muito difícil reconstruí-lo e torná-lo competitivo novamente.

Num passado recente, sempre que se discutia a necessidade de investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, a Coreia do Sul era apontada como exemplo a ser seguido. Esse modelo continua sendo válido?

A Coreia do Sul continua sendo um importante investidor em P&D. Está entre os cinco principais investidores do mundo na área, junto com países como Suécia, Finlândia e Israel, quando consideramos os gastos com P&D em relação ao PIB. Uma questão importante é que, uma vez perdida a capacidade industrial, o país também reduz a demanda por investimentos em pesquisa e desenvolvimento. A indústria está muito atrelada ao desenvolvimento de novas tecnologias. Tanto é assim que nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, a indústria responde por 60% a 70% dos investimentos em P&D.

O senhor se autointitula um economista pragmático. Como é defender uma economia pragmática num mundo totalmente polarizado?

Ser pragmático nos tempos de hoje, num mundo polarizado como você diz, é muito difícil porque as críticas surgem de todos os lados. É preciso entender que não existe um modelo único de desenvolvimento. Precisamos ser mais pragmáticos. A Suécia, que é um país igualitário, tem uma família que detém metade das corporações do país. Em Singapura, onde a economia é altamente desenvolvida, o Estado é que detém mais de 90% das terras. São modelos diferentes que responderam aos objetivos de cada sociedade.

Falando em sociedade, o senhor considera que o bem-estar social deva ser premissa ou consequência do desenvolvimento?

Penso que o desenvolvimento tem que contemplar as duas dimensões. É muito importante que as bases sociais sejam colocadas. Questões como saúde, educação e estabilidade social dos trabalhadores são fundamentais para que a sociedade possa se desenvolver. Ao mesmo tempo em que a economia avança, os indivíduos percebem que têm novos direitos e novas demandas. Nesse ponto, concordo com a vertente marxista que considera que as necessidades da população mudam conforme a sociedade se desenvolve. O desenvolvimento econômico pode trazer consequências positivas em termos sociais.

No Brasil, seguidos governos demonstraram obsessão em relação ao controle da inflação. Foi criada até a figura de um dragão que precisava ser derrotado. O senhor, porém, critica essa sanha anti-inflacionária, dizendo que tão importante quanto controlar a inflação é promover a estabilidade da produção e do desenvolvimento. Pode explicar melhor essa sua posição?

Obviamente, uma taxa de inflação muito elevada, na faixa dos 40% ou 50% ao ano, desencoraja os investimentos e compromete o horizonte de decisão. Muitos economistas, porém, dizem que uma inflação abaixo dos 20% não traria grande impacto para a economia, principalmente se o índice girar em torno dos 10%. Essa obsessão pelo combate à inflação prejudica outros setores. Por trás do interesse de manter a inflação baixa está o setor financeiro, que tem ganhos por meio de contratos e aplicações em valores nominais. Ou seja, inflação baixa é sinônimo de vantagem para o setor financeiro. As políticas que garantem a inflação baixa afetam negativamente a indústria. No Brasil, durante os governos do Partido dos Trabalhadores, governos de perfil progressista, houve continuidade dessa política que favoreceu mais o setor financeiro que o industrial.

Retomando a questão do protecionismo, em um dos seus livros, intitulado “Chutando a Escada – A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica”, o senhor diz que os países ricos utilizaram políticas protecionistas para desenvolver suas economias, mas depois chutaram a escada para que os países emergentes não galgassem o mesmo patamar. No caso do Brasil, o senhor considera possível que essa escada seja reposicionada?

Todos os países, uma vez que conseguem alcançar um nível de desenvolvimento maior, acabam chutando a escada. Estados Unidos e Inglaterra fizeram isso. Hoje, a China também vem adotando essa prática. O que talvez caiba ao Brasil e a outras economias em desenvolvimento é pensar em como construir suas próprias escadas. Buscar outros campos, sobretudo no contexto do surgimento de novas tecnologias. As economias avançadas levam vantagem sobre as economias mais atrasadas, principalmente em relação às indústrias tradicionais existentes. Entretanto, as economias em desenvolvimento, inclusive a brasileira, podem buscar oportunidades em indústrias novas, principalmente nas áreas de bioenergia, novos materiais etc.

Para finalizar, uma questão que não está diretamente relacionada com a economia, mas que tem implicações sobre ela. Como cidadão sul-coreano, como o senhor vê o movimento de reaproximação entre Coreia do Sul e Coreia do Norte?

Vejo esse movimento como positivo. Fico satisfeito em poder presenciar isso. A divisão, que persiste há 70 anos, ainda é resultado da Guerra Fria. Apesar dessa reaproximação ser positiva, há um caminho repleto de desafios pela frente. Mesmo que um tratado de paz seja assinado, vários fatores ainda precisarão ser trabalhados. Uma possível reunificação terá que enfrentar questões complexas como as distintas condições econômicas, os diferentes padrões de vida e as especificidades de cada regime político. Esse processo certamente vai requerer muito tempo e diálogo.