Os históricos vícios de uma justiça partidarizada

A consolidação da República sempre enfrentou a oposição violenta da ideologia escravista.

Por Osvaldo Bertolino

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A Constituição de 1946 pode ser considerada a primeira experiência brasileira de um Estado regido por um marco de legalidade democrática bem definido. O escritor José Carlos Ruy mostra em sua obra Os comunistas na Constituinte de 1946 que ela surgiu para projetar o Brasil que emergiu das derrotas do nazifascismo em plano mundial e do Estado Novo no plano interno.

Ele relata que a constitucionalização da vida dos brasileiros passou por cinco momentos marcantes, que correspondem às cinco assembleias constituintes realizadas — as de 1823, 1891, 1934, 1946 e 1988 —, sempre convocadas depois de alguma transformação drástica ocorrida no país. A de 1823 após a Independência de 1822; a de 1891 após o fim da escravatura e da proclamação da República; a de 1934 após a Revolução de 1930; a de 1946 após o Estado Novo; e a 1988 após a ditadura militar.

De certa forma, há uma ligação entre as constituições de 1946 e de 1988 por serem ordenamentos democráticos do período em que o Brasil consolidou o sistema republicano com a Revolução de 1930. Elas surgiram de embates frontais com o ideal dos setores dominantes, que nunca abdicaram de suas predileções escravistas, por definição autoritárias. A luta para liquidar a mediação democrática entre os Poderes da República, basicamente por meio da Constituição, como agora no pós-golpe do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, sempre foi o seu método político.

Velhas raposas

Maurício Grabois, proeminente organizador do processo político que enterrou o regime do Estado Novo na virada das décadas de 1930 para 1940 e dirigente do Partido Comunista do Brasil (à época conhecido pela sigla PCB) — ele foi um dos principais líderes da campanha que mobilizou grandes massas pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte de 1946, como relata a sua biografia Uma vida de combates —, dizia que uma Constituição naquele momento tornaria mais fácil o trabalho de democratização do Brasil.

“Nenhum acontecimento em nossa história teve a profundidade e a envergadura, como movimento popular, como está tendo em todo o Brasil a campanha nacional pela Constituinte. Nem na luta pela Abolição, nem a campanha republicana. Nem mesmo a vitoriosa jornada da anistia que arrancou dos cárceres os melhores filhos do povo alcançou tal mobilização de massas”, disse ele em um comício pró-Constituinte.

Segundo Grabois, aquela luta assumira tal importância que polarizava todas as forças verdadeiramente democráticas de um lado — o da Constituinte — e as forças reacionárias e pró-fascistas do outro lado. “O que há de mais reacionário em nosso meio, as velhas raposas políticas, os remanescentes nazi-integralistas e os agentes do capital estrangeiro colonizador, se unem abertamente contra a convocação da Constituinte a fim de impedir a consolidação da democracia”, afirmou.

Entrevista ao
O Globo

Grabois seria eleito deputado federal constituinte em 1945 e depois da promulgação da Constituição assumiu a liderança da bancada comunista na Câmara dos Deputados. Nessa condição, ele liderou a resistência à ofensiva do governo do general Eurico Gaspar Dutra, eleito presidente da República em 1945, que hostilizava abertamente a Constituição então recém-nascida.

O episódio mais renhido dessa batalha se deu no processo de cassação do registro eleitoral e dos mandatos dos comunistas. Nele, o Poder Judiciário participou de forma protagonista. A campanha começou a aparecer explicitamente quando o obscuro deputado Edmundo Barreto Pinto (PTB-DF) defendeu a ideia em entrevista ao jornal O Globo.

Ele fora eleito com apenas quatrocentos votos por conta da grande votação obtida por Getúlio Vargas e, segundo os comunistas, era um integralista que ajudou a apunhalar o parlamento brasileiro em 10 de novembro de 1937, no golpe do Estado Novo, e que seria cassado por violação do decoro parlamentar ao ser fotografado pela revista O Cruzeiro em fraque e cueca. O Globo foi ouvir o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Waldemar Falcão, que declarou: “Os senhores devem ler a lei eleitoral.”

Mas os discípulos de Barreto Pinto, conforme diziam os comunistas, lendo ou não a lei eleitoral, com o apoio da mídia entraram de cabeça na campanha pela cassação do registro do PCB, que logo ganharia o reforço do ex-conselheiro do fascista Tribunal de Segurança Nacional, do Estado Novo, Himalaia Virgulino. Os dois recorreram à Justiça Eleitoral pedindo a cassação do PCB, alegando que se tratava de uma organização estrangeira.

Justiça política

Em 7 de maio de 1947, o PCB teve seu registro cassado pelo TSE, uma flagrante violação da Constituição. O recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF) nunca seria julgado. O parecer do procurador da Justiça Eleitoral, Alceu Barbedo, era uma peça grosseira de anticomunismo para enquadrar o PCB no que rezava o artigo 141, parágrafo 13, da Constituição: “É vedada a organização, o registro e o funcionamento de qualquer partido ou associação cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e nos direitos fundamentais do homem.”

Discursando em nome da bancada do PCB, Carlos Marighella disse que o fechamento do PCB foi uma decisão meramente política do Judiciário, sob a coação do Executivo. E já Ruy Barbosa dizia: “Justiça política equivale a justiça de partido, justiça de interesse, justiça de desforra, justiça de crueldade.” Não demorou muito e a artilharia dos perseguidores dos comunistas mirou os mandatos dos eleitos pelo PCB.

O Conselho Nacional do Partido Social Democrático (PSD), ao qual pertencia Dutra, reuniu-se a portas fechadas e decidiu criar uma comissão de cinco “juristas” para dar um parecer sobre a cassação dos mandatos comunistas. Estava em andamento o segundo passo da trama golpista tantas vezes denunciada pelo PCB, urdida na sombra por uma conjura na qual estavam envolvidos, entre outros, o chefe do Gabinete Militar do governo Dutra, Alcio Souto; o ministro da Justiça, Benedito Costa Neto; o ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, o magnata da indústria paulista Morvan Dias de Figueiredo; e Pereira Lira, o chefe de polícia.

A trama se consumou com a aprovação de um Projeto de Lei do líder do PSD no Senado, Ivo de Aquino, em 7 de janeiro de 1948, depois de ter passado pelo Senado. Três dias depois, a Mesa da Câmara dos Deputados declarou extintos os mandatos dos parlamentares e suplentes eleitos sob a legenda do Partido Comunista do Brasil. Apenas o deputado comunista Pedro Pomar, dos integrantes da Mesa — ele e o também dirigente comunista Diógenes Arruda Câmara foram eleitos pelo Partido Social Progressista (PSP) de São Paulo, nas eleições suplementares de 1947 —, votou contra, com a seguinte declaração de voto, conforme relata a biografia Pedro Pomar — batalhas e ideias:

"A uma democracia é impossível aceitar uma lei inconstitucional, como essa aprovada pela maioria reacionária do Congresso Nacional. Acho assim que a mesa da Câmara dos Deputados, ao tomar conhecimento da comunicação que ora nos faz o Superior Tribunal Eleitoral, deve considerar toda a responsabilidade de sua atitude e não concordar com o esbulho que significa declarar vagas as 14 cadeiras de legítimos representantes do povo, que pela ação se revelaram patriotas e os mais firmes defensores dos interesses do povo.

A lei em caso não é precisamente uma lei, porque é a negação completa dos direitos e prerrogativas constitucionais, mutila o parlamento, ofende o decoro desta casa e coloca a soberania da representação popular numa tal dependência dos outros poderes que nenhum cidadão, sinceramente patriota, será capaz, de agora em diante, de confiar num Congresso que capitule e abdica do seu poder.

A execução desta lei é um golpe de força, própria das ditaduras, fere de morte o sistema representativo, esmaga a autonomia dos estados, além de violentar a vontade de centenas de milhares de eleitores.

Os sacrifícios que fizemos para reconquistar a democracia foram desonrados. Os últimos atentados à liberdade de imprensa e dos cidadãos constituem a prova de que o nosso povo tem que resistir e lutar, cada vez mais com maior energia, por uma democracia verdadeira, genuinamente popular, o oposto da ditadura que hoje nos oprime e humilha com todo o seu cortejo de fome, terror e submissão aos monopólios e às forças armadas dos Estados Unidos.

Voto contra a aceitação da presente porque quero ser fiel ao mandato que recebi do povo brasileiro e às suas tradições de liberdade e independência."     

Reichstag mirim

Não havia dúvidas quanto à essência daquela ofensiva contundente contra o PCB, comandada pelo PSD — na toada democrática iniciada em 1945, os comunistas logo seriam a força política majoritária do país. Eles obtiveram mais de seiscentos mil votos nas eleições de dezembro de 1945; em janeiro de 1947 repetiram a mesma votação, em termos proporcionais, e ainda ajudaram a eleger governadores em São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Ceará e Rio Grande do Sul; e com as eleições municipais do final de 1947 chegaram a ser a força política mais importante nas principais cidades do país, saindo majoritários em São Paulo, Santos, Sorocaba, Santo André, Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Aracaju, Fortaleza e Rio de Janeiro.

No dia seguinte à cassação dos mandatos — os deputados do PCB só deixariam formalmente suas cadeiras depois do acatamento pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados da comunicação do Superior Tribunal Eleitoral, em 10 de janeiro de 1946 —, a polícia política prendeu o já ex-deputado comunista Gregório Bezerra sob a alegação de que ele havia incendiado o quartel do 15º Regimento de Infantaria em João Pessoa, no estado da Paraíba, a dois mil quilômetros da cidade em que se encontrava e dela não saíra. A acusão nunca foi provada, mas ele ficou detido por um ano e três meses.

O caso do “reichstag mirim” — uma alusão ao famoso incêndio do parlamento alemão provocado pelos nazistas, em 1933, e atribuído aos comunistas — fez Pedro Pomar ocupar a tribuna da Câmara dos Deputados sistematicamente para exigir notícias do “bravo filho de Pernambuco”. “Afinal de contas, o que ocorre com Gregório Bezerra? Por que lhe cassam o direito de defesa?”, indagou. Segundo Pedro Pomar, o grupo “militar-fascista” criou uma novela para espalhar calúnias contra os comunistas. A prisão era profundamente ilegal por não se basear em lei ou em qualquer documento escrito, disse Pedro Pomar. A ilegalidade se estendia para outras prisões, igualmente truculentas.

Governos pós-Dutra

O Brasil havia voltado à velha prática da direita de não aceitar a convivência pacífica entre as classes sociais, respeitando as regras democráticas, no caso a Constituição de 1946. Mesmo no período de semilegalidade dos comunistas — nos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e João Goulart — as perseguições eram frequentes, como mostram as biografias de Maurício Grabois e Pedro Pomar. As alegações sempre foram da mesma natureza e se ampliaram para atingir também os governos pós-Dutra, agora acusados de “corruptos” e adeptos dissimulados do “comunismo”.

Foram esses os argumentos básicos dos facínoras que deram o golpe militar de 1964, enterrando de vez a Constituição de 1946. Com a redemocratização consolidada pela Constituição de 1988, essa ideologia obscurantista, escravista e reacionária passou por uma certa hibernação e agora, com a deflagração da marcha golpista que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, prendeu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e elegeu Jair Bolsonaro para a Presidência da República, ela voltou a mostrar a sua face repugnante.

Por trás desses acontecimentos estão manobras explícitas para impedir qualquer possibilidade de consolidação de um processo político de feição popular e democrática. A direita não tem escrúpulos quando a meta é manter as rédeas do país sob o seu controle absoluto. Ela reage com fúria quando surgem possiblidades de se alterar essa conformação, como aconteceu com os ex-presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Lula e Dilma Rousseff.

Exemplo emblemático

Outro exemplo emblemático é o do ex-governador paulista Orestes Quércia, que surgiu como jovem liderança em 1974 contestando a ordem autoritária do regime militar, conforme relata em detalhes a biografia do ex-deputado comunista Aurélio Peres, intitulada Vida, fé e luta. Em um dos capítulos do livro Grandes pecados da imprensa, do jornalista e ex-deputado federal Sebastião Nery, publicado em 2000, ele dedica-se a explicar por que Quércia sempre foi perseguido pela direita.

Um dos fundadores do MDB, o ex-governador despertou a ira dos poderosos quando foi eleito senador em 1974. “A Arena era tão poderosa e autossuficiente que no começo não deu bola para aquela candidatura provinciana, de um ex-prefeito do interior, de um partido miúdo, que tinha apenas um senador, Franco Montoro, e um punhadinho de deputados federais e prefeitos”, escreve Nery. “Lançaram para o Senado o professor Carvalho Pinto, udenista símbolo, um barão paulista quatrocentão da mais fina aristocracia paulista, secretário da Fazenda de Jânio na prefeitura e no Estado, governador eleito por Jânio e ministro da Fazenda nos estertores do governo João Goulart.”

O resultado da eleição foi arrasador: Quércia teve 4.630.182 votos e Carvalho Pinto, 1.600.000. “Era o senador mais votado do país. Do mais importante Estado do país. Pelo MDB. Pela oposição. Que se preparasse para apanhar. A imprensa governista estava aí para cumprir seu velho papel de capitão do mato”, diz Nery. Para o jornalista, não havia nenhuma surpresa nesse comportamento porque desde o Brasil Colônia e o Império foi assim. “Nas lutas contra a escravidão foi assim. Até hoje é assim. Quem contraria os grandes e intocáveis interesses das elites instaladas apanha”, escreve ele.

Pistoleiros gráficos

“Senador de quase 5 milhões de votos significava governador certo quando voltassem as eleições. Era preciso matar Quércia antes. O Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo, a Veja e outros pistoleiros gráficos da ditadura estavam aí para isso mesmo. Com os bacamartes de aluguel apontados, esperavam a hora atrás do muro. Foi só o tempo de Quércia tomar posse no Senado”, escreveu

Nery narra uma série de episódios de acusações sem provas, julgamentos e absolvições do ex-governador — amplamente manipulados pela mídia. Um merece ser lembrando por ser emblemático. Quércia foi acusado de haver levado trilhos de bondes retirados das ruas de Campinas para sua fazenda em Pedregulho. Ele provou, com nota fiscal, que não eram trilhos de bonde, mas de trens, já velhos e gastos, comprados da Fepasa (Ferrovias Paulistas S.A).

O Supremo Tribunal, em 1975, por unanimidade mandou arquivar o processo, com a seguinte sentença: “Ficou demonstrada a inexistência de qualquer crime por desvio de trilhos”. Nery relata: “O Estado de S. Paulo, em 23 de agosto de 75, teve de dar a notícia com destaque: 'Supremo decide a favor de Quércia'. Assunto encerrado? Nada disso. Para certa imprensa, no Brasil, decisão de tribunais, mesmo em última instância, no Supremo Tribunal, não vale nada. O Estado de S. Paulo noticiou a decisão em 75. Dezoito anos depois, em 2 de fevereiro de 93, publicou tudo de novo, como se não tivesse havido a decisão do Supremo. A cada nova fornada de Mesquitas, o Estadão raspa a história, adapta a seus interesses e escreve tudo outra vez.”