O habeas corpus do nordestino e o “Brasil” de Capistrano de Abreu

Os explicadores do Brasil desvendam o sentido da ignorância e da estupidez de Bolsonaro ao se referir aos nordestinos.

Por Osvaldo Bertolino

Nordeste

Há uma tradição do Nordeste que pode ser útil nesse momento em que o presidente da República, Jair Bolsonaro, se manifesta na sua inteireza. É a autoridade que se empresta ao que pertence a alguém por direito. O chapéu de couro é o seu habeas corpus. Se for pendurado em uma cerca de um terreno litigioso, por exemplo, quem o derruba afronta o valente a quem ele pertence. Quem desrespeita o chapéu, desrespeita o dono.

Bolsonaro atentou contra o chapéu de couro dos nordestinos. Ou seja: ao chamá-los de “paraíba”, num impulso redivivo dos agudos brados de um certo Adolf Hitler, ele rompeu o limite de qualquer contemporização. Além de abusar de uma palavra que representa muito para o Nordeste e para o Brasil, utilizando-a de forma pejorativa, tentou desqualificar um povo que traz a dignidade na alma.

A manifestação de Bolsonaro é ideológica. Ela reflete a ideia de um pequeno setor do Brasil que se imagina mais capaz, mais limpo, gente melhor do que os seres considerados primevos por serem descendentes de negros e índios. Gente que joga sobre os pobres toda a responsabilidade pelas mazelas sociais que ela cria, disseminando mitos execráveis como o de que às mulheres cabe o papel de esquentar a barriga no fogão e esfriá-la no tanque, ou o de que os negros são menos dignos por terem mais melanina em suas peles.

É o tipo de gente que promove passeatas pela “moralidade”, pede “mais segurança” e rosna contra o “lulopetismo” e o “comunismo”. São eles também que pregam uma dura política repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas, a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte. Gente que, por sua ideologia vassala, escreveria “Brasil” com “z”.

Indústria da maracutaia

Essa é a face pública dos portadores dessa ideologia. A privada é o modo de vida que cultivam, à base de sonegação de impostos em grande escala e de troca favores, sabotando a dinâmica social do país e suas práticas democráticas. Simplesmente não interessa, para eles, que os processos no Brasil funcionem melhor. Se o sistema de transporte público fosse eficiente, o significado de ter um carro de luxo mudaria. Se os serviços de saúde funcionassem, o fato de haver hospitais cinco estrelas seria irrelevante.

Essa gente passou a vida, de geração em geração, trocando favores, construindo atalhos, traficando influência. Se todos os brasileiros tivessem assegurados os mesmos direitos, por meio de sistemas sólidos e funcionais, toda essa rede de relações obscuras, essa indústria da maracutaia, perderia o sentido. Não dá, evidentemente, para imaginar no Brasil uma coletividade na qual todos se reconheçam e se respeitem como iguais com gente assim governando o país. A quase totalidade dos seus privilégios e status advém da exclusão social.

Esses conceitos e preconceitos, propagados pelos aparelhos de controle ideológico – sobretudo a mídia e as seitas religiosas oportunistas –, são de difícil remoção. Eles estão entranhados na alma dessa gente, são parte daquilo que se pode chamar de sentido absoluto da realidade brasileira.

Cabral e Colombo

Tudo isso já foi, de certa maneira, estudado, definido e classificado pelos explicadores do Brasil. Compreendê-lo é um exercício básicos para os que lutam por transformações na estrutura social do país. Como disse Oliveira Viana no seu livro Problemas de política objetiva – seu pensamento foi uma das vertentes para o desenvolvimento da Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas –, o desconhecimento do Brasil e dos brasileiros pela elite deste país é completo.

O termo correto, na verdade, seria desinteresse. Pode ser também ignorância, descaso ou crueldade ideológica, de classe. Para essa gente não existe pobreza, mas somente pobres, como se essa condição fosse uma mera questão de opção de vida. É desse comportamento que surge a ideia de um profeta, de um mito, de um messias capaz de fazer milagres que nenhum Cristo fez.

Capistrano de Abreu (cearensse do município de Maranguape), também um dos mais importantes explicadores do Brasil – dizia-se, conforme o cronista Humberto de Campos, que em seus estudos ele não navegava como Cabral, para descobrir por acaso, mas como Colombo, para confirmar previsões, e que vivia com a sabedoria de consumir a vida como a vela se consome –, ao comentar a obra História do Brasil, de Frei Vicente – o primeiro documento da historiografia brasileira –, descoberta por ele, discutiu a grafia da palavra “Brasil”. Em sua opinião, um homem de bem, de caráter, jamais admitiria que se escrevesse “Brasil” com “z”.