Equador na encruzilhada: entre o coronavírus e o neoliberalismo

No Equador vivem 17 milhões de pessoas. Cerca de 60% da mão de obra é informal e isso fez do isolamento a perda da fonte de recursos de milhões de famílias

O coronavírus chegou ao Equador em meio a uma profunda crise econômica. O epicentro da enfermidade se deu na cidade de Guayaquil, atualmente com a taxa mais alta de contágio da América Latina. Em meio às enormes críticas ao governo pela falta de credibilidade nas estatísticas, o próprio presidente Lenín Moreno reconheceu que as cifras não eram precisas.

Até o último domingo (2), havia cerca de 30 mil casos positivos e 1.564 mortes. No entanto, há alguns dias a prefeita de Guayaquil, Cynthia Viteri, disse que o mês de abril de 2020 teve sete mil mortes a mais na cidade do que no mesmo período de 2019. Moreno planejou uma saída do isolamento para esta segunda-feira, 4 de maio, mas em Guayaquil e em Quito a quarentena prosseguirá ao menos até 31 de maio.

Algumas organizações indígenas anunciaram que não vão seguir a medida. “Sem dados reais é impossível fazer um planejamento sério. Vamos manter o isolamento”, disse Leónidas Iza, presidente do Movimento Indígena e Campesino de Cotopaxi, integrante da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie).

O Estado ausente

Desde sua chegada ao governo, Moreno foi limitando a capacidade do Estado para intervir na economia. Dessa maneira, o país entrou em um labirinto do qual parece ser difícil avistar o final. E chegou o coronavírus. Somente no estado de Guayas, onde está Guayaquil, o número de contágios chega a 13.053, 62% do total nacional. Há algumas semanas o sistema sanitário da cidade entrou em colapso ante o crescente número de mortes. A Prefeitura demorou entre três e quatro dias para retirar os corpos das casas, o que levou as famílias a deixa-los nas ruas. Apesar da situação alarmante, as autoridades locais dizem que não conseguem ter total certeza sobre as causas das mortes. As cifras oficiais estão no centro do debate.

O governo tomou uma série de medidas para conter o contágio. Em 16 de março, declarou Estado de Exceção, o que limitou o tráfego de veículos e a atividade comercial. Também ordenou o trabalho remoto e fechou as escolas do país. Três dias depois, decretou um Toque de Recolher que funciona entre 14h e 5h.

No Equador vivem 17 milhões de pessoas. Cerca de 60% da mão de obra é informal e isso fez do isolamento a perda da fonte de recursos de milhões de famílias. Moreno lançou um bônus de US$ 60,00 para os meses de abril e maio para os que recebem abaixo do salário mínimo, hoje em US$ 400,00. Estima-se que cerca de 950 mil equatorianos receberão a ajuda.

Em paralelo, o Executivo enviou ao Congresso um projeto de “Lei de Apoio Humanitário”. O mesmo propõe um novo imposto, sobre os salários superiores a US$ 500,00. A porcentagem de aporte seria progressiva, sendo incrementada para os salários mais alto. Por outro lado, as empresas que tenham faturado mais de US$ 1 milhão entregarão 5% desse lucro em três pagamento mensais. Ao apresentar a proposta, Moreno disse que a crise econômica se devia a dívida deixada pelo ex-presidente Rafael Corre. “Essa crise […] nos deixou sem um centavo nas contas do Estado e com uma dívida histórica de mais de US$ 65 bilhões”, tentou se justificar.

Na oposição, o partido de Correa (Revolução Cidadã – RC) sustém que o valor não é real. “Diante de cada crise política, Moreno apela ao mesmo discurso. Já não é crível. Os dados oficiais, hoje nas mãos do Ministério da Economia, mostram que isso não se sustenta. A dívida real quando Correa deixou o governo era de cerca de US$ 38 bilhões”, diz Pabel Muñoz, deputado do RC.

O parlamentar diz que ainda que o projeto de lei do governo só jogará sobre os trabalhadores a maior parte da conta pela crise. “Esperam arrecadar cerca de US$ 1,4 bilhão. Desse total, US$ 900 milhões viriam das pessoas e comente US$ 500 milhões das empresas. O governo não quer criar impostos sobre o capital, pois lá está sua base de sustentação”, afirma Muñoz. Seu partido propôs criar um imposto sobre bancos e empresas de telefonia, que conseguiram manter seus lucros mesmo nos anos de crise. Também propuseram uma contribuição de 0,9% dos patrimônios daqueles que tiveram rendimentos superiores a US$ 1 milhão.

Na contramão do mundo

Além disso, a “Lei Humanitária” estipula um corte de salários de funcionários públicos, segundo denúncia do sociólogo Andrés Chiriboga. “Aproveitam esse contexto para continuar aplicando as medidas exigidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O governo planejou um corte de 10%, que não seria aplicado somente durante a crise, mas que se tornaria permanente”, denunciou. Dessa forma, segundo o acadêmico, o governo estaria na contramão do que o mundo está fazendo para enfrentar a pandemia.

Em paralelo, durante o mês de abril houve uma enorme fuga de capitais. “Seguindo as estatísticas que publicou o Serviço de Rendas Internas, que se encarrega da cobrança de impostos, advertimos que houve uma saída de ao menos US$ 829 milhões. Isso afeta gravemente nossa economia, dolarizada, já que o governo necessita dessa moeda e não pode emiti-la”, ressaltou o sociólogo. Além disso, ele ressaltou que a estrutura primária da economia é outro componente fundamental da crise. O país depende da exportação de petróleo, entre outros insumos básicos, e seu preço está no chão.

A saída é comunitária

A especulação nos preços e a falta de estoque são moeda corrente. Assim afirmam as organizações indígenas que em paralelo denunciam a desregulamentação do mercado. “Depois de um mês da pandemia, aumenta a crise alimentar. Por isso temos dito que o governo federal deve dispor de toda sua estrutura para garantir, em primeira instância, a alimentação. Mas isso não está ocorrendo”, informou Iza, do Movimento Indígena e Campesino. Diante da ausência do Estado, as comunidades passaram a potencializar a própria distribuição de alimentos.

Nesta semana, apareceram os primeiros casos de coronavírus nas comunidades indígenas. Diante disso, seus líderes enfatizam a necessidade de manter o isolamento obrigatório, mesmo diante dos anúncios de Moreno. “O governo tomou essa decisão sob a pressão dos grupos econômicos e sem estatísticas reais. Uma catástrofe pode estar sendo produzida. A crise econômica deve ser enfrentada, mas não às custas das vidas dos equatorianos”, afirma Iza.

Tradução e edição: Fernando Damasceno