Vacinas: como o STF tirou Bolsonaro do caminho

Ministros reconhecem que estados e municípios podem imunizar sem aguardar União

(Foto: Reprodução)

Por dez votos contra um, o Supremo deu a estados e municípios o poder de decidir sobre a obrigatoriedade da vacinação em seus territórios e até mesmo impor sanções contra os indivíduos que não queiram ser imunizados. A medida não significa vacinar à força – “arrastando as pessoas pelos cabelos”, como ilustrou o presidente do STF Luiz Fux –, mas que a campanha de vacinação será tratada de forma parecida às eleições no Brasil.

A apresentação do comprovante de vacinação pode ser exigida para o acesso a benefícios, concursos e serviços públicos. Mas bem diferente das eleições, em que as regras são homogêneas e reforçadas pelo governo federal, a vacinação obrigatória enfrenta resistência de Jair Bolsonaro. Uma das ações julgadas, a do PDT, foi movida justamente para garantir alguma margem de manobra aos outros entes diante da postura antivacinas do presidente.

“Se o cara não quer ser tratado, que não seja. Eu não quero fazer uma quimioterapia e vou morrer, o problema é meu”, reagiu Bolsonaro, em um evento em Porto Seguro (BA), dando um exemplo que induz ao erro, já que no caso das vacinas a ideia de proteção é solidária. Sem falar que não atingir as coberturas recomendadas para cada imunizante, por vezes na casa dos 95%, é um fracasso para o Estado também do ponto de vista da aplicação dos recursos públicos – e zelar por isso é responsabilidade do presidente que de manhã assinou uma medida provisória de R$ 20 bilhões para o plano nacional de vacinação e, de tarde, foi no sentido contrário: “Se tomar vacina e virar jacaré é problema seu”, disse, repetindo que não pretende se vacinar.

O indicado de Bolsonaro para o STF, Kassio Nunes Marques, foi o único voto contrário. Para isso, ele fez um malabarismo: concordou que a vacinação obrigatória é constitucional, mas afirmou que depende de “prévia oitiva” do ministério da Saúde, só pode ser usada como “última medida” caso uma campanha regular não atinja a imunidade de rebanho, e também que não deve valer para vacinas com tecnologia inovadora, como a da Pfizer que usa o RNA-mensageiro.

Mais tarde, na transmissão ao vivo semanal, Bolsonaro o elogiou – e chamou de “direita burra”, “fedelhos” e “imbecis” os internautas que o criticam pela escolha de Nunes Marques. O presidente também admitiu abertamente que o governo federal não tem intenção de correr atrás de vacinas para todos os brasileiros em 2021 – “Não vai ter para todo o mundo” – e refletiu que justamente por isso a decisão do Supremo pode ser “inócua”. “Não temos como conseguir a vacina para todo mundo até o final do ano. Então, não vai ter medida restritiva nenhuma. O cara pode falar: ‘quero tomar, mas não tem’”. De acordo com o Estadão, a previsão atual do governo é imunizar toda a população até a metade de 2022.

A decisão do STF reforçou os princípios que dão base ao SUS. Em seu voto, o relator Ricardo Lewandowski argumentou que o direito à saúde previsto na Constituição de 1988 inclui a medicina preventiva. Por isso, afirmou, “não é uma opção do governo vacinar ou não vacinar, é uma obrigação”. O julgamento estabeleceu que uma vacina só deve ser obrigatória se houver “evidências científicas e análises estratégicas pertinentes” – e também que todo imunizante obrigatório precisa, necessariamente, ser distribuído “universal e gratuitamente”.

No mesmo julgamento, os ministros decidiram por unanimidade que pais são obrigados a imunizar os filhos, no caso de vacinas incluídas no calendário nacional de vacinação do Ministério da Saúde, previstas em lei, ou que sejam consideradas essenciais pelas três esferas de governo, com base em consenso científico. Essa ação chegou ao Supremo como recurso de um casal de Paulínia (SP) que nunca vacinou o filho, de 5 anos, tendo como justificativa serem “adeptos da filosofia vegana”.

Eles haviam ganho na primeira instância, perdido na segunda, e então recorreram ao STF. O caso ganhou repercussão geral para evitar que diferentes juízes deem diferentes interpretações a um problema que pode se tornar cada vez mais comum. O relator, Luís Roberto Barroso, entendeu que o direito à vida e à saúde das crianças está acima do direito dos pais de liberdade de crença e consciência – e que eles podem perder temporariamente sua autoridade para que o poder público consiga imunizar os filhos.

Também ontem, mas desta vez individualmente por meio de liminar, Ricardo Lewandowski decidiu que uma demora da Anvisa para dar aval a imunizantes já registrados por agências estrangeiras não vai ser empecilho para que estados e municípios façam as compras por conta própria. O ministro determinou que isso poderá ser feito “no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19, recentemente tornado público pela União, ou na hipótese de que este não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença”. A ação chegou ao Supremo pelas mãos do governo do Maranhão e da OAB.

A possibilidade de importação de vacinas sem registro na Anvisa, mas autorizadas no exterior, é prevista na Lei 13.979 de 2020 – e a liminar dá mais respaldo a essa saída que, dias atrás, era vista como provável no caso da CoronaVac, imunizante desenvolvido pela chinesa Sinovac que tem acordo com o Instituto Butantan. Agora, com a sinalização mais forte de que a vacina será incorporada ao Programa Nacional de Imunizações, a preocupação com interferências do governo federal na Anvisa para atrasar a autorização do imunizante diminui sensivelmente.

De qualquer forma, a vacina se enquadra direitinho na lei, que cita a agência reguladora da China como uma das quatro possibilidades, sendo as outras EUA, União Europeia e Japão. O Butantan divulgou que já foi procurado por 12 estados e quase mil prefeituras interessados em comprar a vacina. Ontem, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, pediu que prefeitos e governadores não comprem por conta própria esses imunizantes.

Novo número, com Coronavac

O ministro Eduardo Pazuello divulgou novos números e datas sobre a campanha nacional de vacinação ontem. Desta vez, o general afirmou que o governo espera receber 24,5 milhões de doses em janeiro. Dessas, 500 mil virão da Pfizer, 9 milhões do Instituto Butantan (CoronaVac) e 15 milhões da Fiocruz (AstraZeneca/Oxford). Com isso, a nova estimativa para início da vacinação no país é “meados de fevereiro”.

Neste mês, o ministério receberia outras 37,7 milhões de doses, divididas assim: 500 mil da Pfizer, 22 milhões do Butantan e 15,2 milhões da Fiocruz. Em março, seriam mais 31 milhões, mas não foi detalhada a quantidade por laboratório. Nas contas divulgadas pela pasta, a vacina de Oxford será aplicada em duas doses – mas há certa confusão sobre esse ponto, já que o ensaio clínico demonstrou eficácia maior no regime de uma dose e meia. De qualquer forma, faz sentido fazer um cálculo conservador. As outras vacinas serão aplicadas em duas doses, com certeza.

Esses números e datas apareceram ontem durante uma audiência no Senado. Finalmente. Estamos em meados de dezembro e o ministro da Saúde informou que está “partindo para um contrato” com o Butantan – o que poderia ter acontecido em outubro, caso Bolsonaro não o tivesse desautorizado publicamente.

Pazuello disse que a previsão continua sendo comprar 46 milhões de doses, conforme o memorando de entendimento assinado por ele na época. Todo o atraso gerado pela estratégia antivacinas – e, principalmente, anti-Doria – do presidente foi negada pelo ministro que, contra os fatos, afirmou aos senadores que o Brasil está na “vanguarda” no processo de imunização contra o coronavírus.

Questionado pelo senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) sobre a declaração de Bolsonaro de que não vai tomar a vacina e confrontado com exemplos de chefes de Estado que vão se imunizar para dar exemplo, o general encontrou a seguinte justificativa para o comportamento do chefe: “Sobre o presidente ser voluntário ou não, eu acho que é o mesmo enfoque: ele está reforçando a voluntariedade, e não a obrigatoriedade. É uma visão”.

A propósito: João Doria (PSDB) continua sustentando que a vacinação em São Paulo começa no dia 25 de janeiro, e se valendo de um conhecido slogan seu, instou o governo federal a “acelerar” seu cronograma. Ontem, chegaram mais 2 milhões de doses de CoronaVac, vindas da China. O estado conta agora com 3,2 milhões de doses prontas para uso assim que a vacina tiver autorização.

Com informações do Outras Palavras

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