Golpe de 1964: nada a comemorar, muito a compreender

Nestes 50 Anos do Golpe de 1964, fora a rememoração episódica de centenas de fatos, sempre incompletos devido ainda a falta de abertura de muitos arquivos bem como sobre a omissão de tantos outros, sobretudo feita por variados setores da chamada grande imprensa.

Alguns argumentos centrais e de fundo têm sido postos em torno do processo que instalou a Ditadura em nosso País e têm sido disputados entre os pesquisadores do tema bem como entre os movimentos sociais e políticos, além dos partidos que resistiram ou são oriundos daquele processo.

Neste cinqüentenário, porém, sabemos muito mais do que na primeira década, quando o Brasil ainda iniciava o período do Governo Geisel e a resistência à Ditadura apresentava os estertores da Guerrilha do Araguaia, fortalecendo a oposição limitada, consentida e institucionalizada no interior do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), somando-se a alguns movimentos sociais que timidamente iam retomando a ação pública de autoorganização. Em 1974, setores mais influentes da CNBB, da OAB e da ABI, majoritariamente apoiadores de 1964, assim como integrantes oriundos de partidos políticos que sustentaram o Golpe e foram golpeados com o bipartidarismo do AI-2 e o cancelamento das eleições para a Presidência em 1966, já estavam em franca e aberta oposição aos governos que eram sucedidos por generais escolhidos indiretamente pelos comprometidos com o arbítrio dos 21 anos.

Hoje, não há nada a comemorar!!! Muito a refletir. Especialmente em torno dos argumentos centrais que justificam as duas décadas de Ditadura, de gerações mortas política e intelectualmente que ainda oprimem como um pesadelo o cérebro dos vivos.

Sabemos ainda pouco sobre o que foi a Ditadura, mas sabemos mais do que antes porque a renúncia de Jânio Quadros em 1961 e a tentativa de impedimento da posse de Jango teve seu contraponto na extraordinária Campanha da Legalidade, adiando o Golpe por quase três anos. Os ministros das Forças Armadas, assim como setores golpistas da imprensa, do Departamento de Estado norte-americano e das classes dominantes que sequer toleravam o trabalhismo no poder e as reformas de base, mesmo conquistando o parlamentarismo conciliatório que limitou as iniciativas de João Goulart até 1963, não admitiram a mobilização de massa que colocou nas ruas operários e estudantes, militares e policiais militares defendendo o cumprimento da Constituição em 1961.

Rapidamente se rearticularam criando, como já disse René Dreifuss, o complexo do (IPES) e do (IBAD), o primeiro deles para a ação ideológica, o segundo para a ação política, respectivamente instrumentalizando setores da mídia e das universidades e financiando com recursos milionários internos e externos a eleição de governadores, deputados e vereadores comprometidos com a desestabilização do Governo João Goulart. E conseguiram.

Sob intenso ataque anticomunista, elegeram as Reformas de Base, inegavelmente a Reforma Agrária como principal deles, impingindo às tentativas de reformas um caráter que elas absolutamente não possuíam na época, a socialização. Na conjuntura pós-Revolução Cubana, conquistaram o apoio majoritário da alarmada classe média reacionária, que marchou de rosário na mão pedindo o Golpe que se construía desde 1961, em nome de um discurso que “salvaria o Brasil do Comunismo”.

Já reiterei em recente artigo para a Revista Princípios, René Dreifuss demonstrou, em 1964: a conquista do Estado, com farta documentação, como empresários, banqueiros e outros, nacionais e estrangeiros, contribuíram para a fomentação do Golpe no Brasil. Entre eles, o Banco Itaú, a Sul-América Capitalização, a Esso, a Companhia Merck do Brasil, a Ultragás, as Lojas Americanas, a Antártica Paulista, a Brahma, a Coca-Cola, a Kibon, a Souza Cruz, a Melhoramentos, a H. Stern, a Klabin Celulose, a Companhia Doca de Santos, a Light Serviços de Eletricidade, a Votorantin, o Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo e muitos outros.

Como na Alemanha nazista, que teve o suporte da Wolkswagen, da Lufthansa, da Bayer e tantas outras grandes empresas, mas responsabilizou apenas o hitlerismo, no Brasil, certa visão de história ainda reproduz a versão da responsabilidade da Ditadura apenas aos militares, através de categorias conceituais que pouco explicam a aliança civil-militar que governou o Brasil de 1964 a 1985, como “Anos de Chumbo” ou “Guerra Suja”. Esta estratégia discursiva, calcada nas meias-verdades direcionadas para os interesses das classes dominantes, de forma idêntica como fazia a propaganda dirigida por Joseph Goebbels, na Alemanha pós-1933, apenas mostra a “ponta do iceberg” da Ditadura de Segurança Nacional no Brasil, quando os militares foram a parte visível de um enorme bloco de gelo, sustentado pelos interesses estrangeiros e seus sócios nacionais.

Caio Navarro de Toledo tem insistido que 1964 foi um Golpe contra a incipiente democracia política brasileira, contra as reformas políticas e sociais, contra a politização das organizações da sociedade civil (Ligas Camponesas, CGT, UNE, Partidos de esquerda como PCB ou PCdoB) e contra o debate cultural e intelectual que vivia o País (CPCs e MEBs, revistas como a Brasiliense e muitos jornais populares), destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais progressistas. Um golpe reacionário da direita e das classes dominantes e seus ideólogos, civis ou militares, como explicou o filósofo João Quartim de Moraes, tendo atrás de si o suporte estratégico, político e militar dos Estados Unidos. Como então não reconhecer que os que lutaram contra a Ditadura, em quaisquer táticas utilizadas, não tenham lutado pela restauração da democracia.

Assim, chega a ser alarmante a visão de certa historiografia que insiste na tese de que havia dois projetos golpistas no Pré-1964, ambos depreciadores da democracia, um de esquerda e outro de direita, sendo vencedor este último. No que tange a um suposto projeto golpista da esquerda, liderado pelo PTB e pelo PCB, em torno das Reformas de Base, a argumentação coincide justamente com os que lideraram e deram o Golpe de 1964 e consolidaram a Ditadura, sob a ótica de que o Brasil vivia o golpismo do “perigo comunista”. Certamente por isto têm sido louvados na mídia, como o historiador Marco Villa, defensor que a Ditadura ou são referendados até por jornais de militares de extrema-direita, mesmo que talvez não o queira, como o historiador Daniel Aarão Reis Filho que tem afirmado que a esquerda não lutava na Ditadura pela democracia, sendo esta uma construção discursiva após a derrota da luta armada. Transforma-se, assim, as vítimas, Jango e seu governo, o PTB e seus aliados, os movimentos sociais camponeses e sindicais, em culpados pelo estupro golpista e constitucional que sofreram. Em relação ao projeto de direita, ao menos esta leituras revisionistas acertam, afinal hoje não resta mais dúvidas sobre o caráter de Golpe para 1964, tratado a época como “revolução” e como “redentora”.

Resta dizer ainda sobre a indicação restrita de “Golpe ou Ditadura Militar” e “Golpe ou Ditadura Civil-Militar”. Pelo argumento que levantei acima, o conceito de Ditadura Civil-Militar amplia mais o significado do Golpe e dos 21 anos que se seguiram. Especialmente para identificar as forças da “sociedade civil” que financiaram e se locupletaram com o Golpe. Ainda é frágil também o argumento historiográfico de que a articulação do Golpe foi Civil-Militar e a Ditadura apenas Militar, especialmente pela simples constatação de que as equipes econômicas de todos os ditadores, de castelo a Figueiredo, eram quase que absolutamente compostas de quadros civis. Mesmo assim, ainda é insuficiente chamar o Golpe e a Ditadura de Civil-Militar. Todo o argumento seria também muito frágil ao não tratar a Ditadura como uma ditadura de classe. Esta é a questão principal e não o apoio ou a participação de civis, a hegemonia ou não de militares nos postos principais, como a Presidência da República.Sabemos que apenas designar a Ditadura como Civil-Militar não é a questão principal. Entretanto, temos que fazer a pergunta: a quem a Ditadura serviu para a dominação das classes no Brasil? Se for dada a conotação militar apenas, o eixo de interpretação é que o Estado foi o agente e os militares os instrumentos de si mesmo, uma velha tese não-marxista de setores da ciência política que autonomiza o papel das Forças Armadas, uma espécie de Poder Moderador, que explica de forma reduzida o início da República em 1889, o tenentismo da década de 1920 e 1930, bem como o Golpe de 1964..

Por outro lado, este debate não tem nada a ver com diminuir a responsabilidade da Forças Armadas no terrorismo de Estado implantado desde o primeiro momento em 1964 e que, através da “operação Limpeza” de imediato atingiu as lideranças dos partidos políticos legais (PTB) ou ilegais (PCs), bem como as lideranças dos movimentos sociais, sobretudo sindicais e camponesas do CGT e das Ligas. Nem se está propondo a utilização do conceito ditadura civil para se referir ao Brasil de 1964 a 1985. Mesmo a conotação de ditadura de classe ainda precisa ser precisada, explicando melhor sobre o papel da chamada burguesia nacional em nosso processo histórico. O inegável é que setores estratégicos da burguesia brasileira financiaram o Golpe e concentraram mais poder e riqueza com a Ditadura, na velha e quase colonial diretriz de um capitalismo associado e dependente, especialmente em apoio aos Estados Unidos, como sócios menores do capital financeiro e do capital rentista, que nos dominam até hoje.

E é esta a reflexão que precisa ser aprofundada pelos marxistas em torno do Golpe e da Ditadura Pós-1964, mesmo depois de 50 anos. Pois, desde que o ditador Errnesto Geisel passou a ser “protagonista” da “distensão”, e outro ditador, João Baptista Figueiredo foi alçado como artífice da “abertura”, se reforça a ideia de “transição pelo alto” entre a Ditadura e a Democracia pós-1985 em nosso País. Isto é, o Golpe de 1964 instaurou a Ditadura e nossas classes dominantes e as Forças Armadas golpistas e os generais de plantão, quando lhes foi conveniente, “decidiram” terminar com o Terrorismo de Estado. Desta “transação política, resultou o governo da “Nova República” e de José Sarney (1985-1990), antigo líder no Congresso do Partido Democrático Social, o PDS, nascido com o DNA da ARENA.

Assim, a resistência à Ditadura e o processo da luta de classes, nesta estratégia argumentativa, são deslocados da História, transformando em elementos principais outros “fatores” históricos que explicam o fim da Ditadura de Segurança Nacional. Assim, o “Regime Militar”, termo eufemístico cunhado pelos próprios ditadores, numa das vertentes argumentativas, vai ter os personagens de Geisel e Figueiredo, somando-se com a “eminência parda” Golbery do Couto e Silva e os “sorbonnistas”, como aqueles que decidiram realizar a transição, como se a História continuasse a ser a ação de indivíduos que tomam ou mudam de posição conforme os seus desejos políticos e individuais.

Muitos dirão que resgatar a luta de classes e os conflitos sócio-políticos para entender a o fim da Ditadura Civil-Militar pós-1964 é uma “história militante”. Mesmo que ainda seja preferível, no caso deste artigo, uma “história militante”, não se trata, por obviedade de reforçar tal “reducionismo”. A “história vista de baixo”, apenas da “resistência”, quando não percebe as formas de dominação e de poder, também oblitera o processo, sendo tão problemática quanto uma história de heróis ou uma construção histórica que dá ao “Estado” o papel de sujeito do processo, neste caso, transformando o aparato jurídico-político em personificação social, tal como sempre fez a historiografia de fundo liberal.

Mas ainda temos um longo caminho pela frente para entendermos melhor a complexidade da luta de classes durante o Brasil de 1964 a 1985, a qual evidencia as contradições mais profundas do processo de Golpe, da própria Ditadura e da chamada “transição democrática”.

Referências

DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

KONRAD, Diorge Alceno. A democracia brasileira não foi doada: a resistência na Ditadura Civil-Militar Brasileira. In: ALVES, Clarissa Sommer; PADRÓS, Enrique Serra (orgs.). II Jornada de estudos sobre a ditaduras e direitos humanos – há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai. Porto Alegre – RS: APERS, 2013, p. 363-377. Disponível em: http://www.apers.rs.gov.br/arquivos/1388085964.Ebook_II_Jornada_Ditaduras_e_DH.p

________. Ditaduras no Cone Sul: história comparada. Princípios, n. 129. São Paulo: Fundação Maurício Grabois/Anita Garibaldi, 2014, p. 79-83.

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