Há mais entre a ciência e a religião do que uma vã filosofia

Atravessamos o século 20 e um debate antigo continua opondo a ciência e a religião. No Brasil, entramos em 2008 e, logo, duas grandes polêmicas se instalaram: o projeto de estudo sobre a violência de cientistas de duas importantes universidades do Rio Gra

A simples oposição mecânica entre ciência e religião ainda são insuficientes para a reflexão sobre esta complexa relação. De um lado, a pureza da fé e da crença; do outro, a infalibilidade e a neutralidade da ciência. No fundo, duas vertentes de uma mesma visão idealista e preconceituosa de mundo.


 


 


No processo histórico, fenômenos físicos levaram a racionalidades explicativas que originaram deuses. Entre o politeísmo e a crença em um deus único passaram-se centenas de anos. Entre um ou mais deuses e a busca racional da explicação dos fenômenos, muitos queimaram nas fogueiras das inquisições, muitas mulheres se tornaram bruxas e vítimas da intolerância. Entre a ciência e seu absolutismo, muitos morreram em laboratórios ou queimaram nos campos de concentrações pelo mundo afora. Em nome de determinada ciência outros milhares morreram em experiências que buscavam comprovar, a priori, idealizações da razão ou da chamada natureza humana.


No desenvolvimento do conhecimento, separar as partes de um todo e explicar o restante a partir de um destes isolamentos gerou, em nome da ciência e da razão, os mais variados tipos de determinismos científicos, de viés positivista ou racionalista.


 


 


No chamado mundo ocidental e eurocêntrico, na transição do feudalismo para o capitalismo, entre o Renascimento e o Iluminismo, muitos deixaram de explicar o que os rodeava apenas na lógica de um deus único. Nestes trezentos, quatrocentos anos que uma história tradicional chamou de Idade moderna, as explicações das coisas perderam a vertente única da religião para encontrar outros dois caminhos: a natureza e a razão humana. Estas duas, separadas, geraram duas formas reducionistas do conhecimento, as quais chegaram ao seu auge no século 19: o idealismo filosófico e o materialismo vulgar ou mecanicista.


 


 


Foi necessário o desenvolvimento do capitalismo e o surgimento de suas mazelas sócio-econômicas e político-culturais para que, pela primeira vez na história, a insuficiência da dialética separada do materialismo e os limites do materialismo sem uma lógica da contradição  fossem superadas. Enfim, foi necessária a construção de teorias que mesclavam a economia política inglesa com a filosofia clássica alemã, todas traduções de uma burguesia em ascensão, que justificasse o novo homem, dono de seus destinos e de sua racionalidade, tendo o egoísmo e o individualismo e o direito à propriedade como manifestações da natureza humana.


 


 


Pois foi esta nova classe histórica, a burguesia, que incorporou e criticou, sem superar as visões religiosas que a precederam, dando novo rumo ao chamado conhecimento científico de então. Porém, de classe revolucionária que chegou ao poder criticando as posturas clericais e religiosas, uma vez consolidando o seu poder, tornava conservadora as suas teses. Consolidava, assim, uma nova postura político-ideológica: a de nova de classe dominante.


 


 


No século 19, o exemplo científico mais acabado desta trajetória foi Auguste Comte, o teórico da ciência positiva que estabeleceu sua fórmula máxima, tendo a ordem por base, e o progresso por fim, ou seja, a segurança do novo sistema dentro do desenvolvimento evolucionista do mesmo, sem luta de classes, sem contradições. Paralelamente e no fim da sua vida, foi justamente este mesmo Comte que, transformou a sua doutrina positiva em religião da humanidade.


 


 


No meio de uma classe que se apoderava, renitentes tradições teimavam em persistir, expressando as teorias da nobreza decadente. O romantismo traduziu a falta da perspectiva objetiva do conhecimento, em uma época em que o velho ainda não fora superado e o novo ainda não estava suficientemente maduro. Entre o 18 e o 19, ao menos nos principais países capitalistas do mundo, o agnosticismo, o ecletismo e o relativismo apresentavam-se como uma pretensa terceira filosofia.[1]


 


No meio de teses científicas e hipóteses metafísicas, as concepções religiosas encontraram sobrevida. As igrejas adaptaram seus dogmas e suas doutrinas, ressaltaram enfaticamente que o lucro não era mais pecado, enquadraram-se no novo status quo. Seguiram-se a elas as doutrinas espíritas, defensoras da mescla entre fé e ciência, utilizando-se desta para a comprovação daquela. E, dessa forma, uma visão de ciência avançou até os dias de hoje, ou uma noção de religião teima em manter-se como fórum de verdade.


 


Como, então, adentrar nas atuais polêmicas que envolveram setores religiosos e o mundo acadêmico e científico.


 


Talvez, desmistificando as instituições que estão por trás delas; de um lado, as igrejas; de outro, as academias de ciência e/ou universidades.


 


Se desde os tempos feudais a Igreja perdeu o monopólio da verdade, ela continua como uma das Instituições que têm maior credibilidade nos tempos atuais. Mais ainda em um país como o Brasil, em que até 1889 o catolicismo era a religião oficial do Estado. De lá para cá ele e diversas concepções cristãs continuam a busca da hegemonia de corações e mentes.


 


Por isso, na Campanha da Fraternidade de 2008, a Igreja Católica, dirigida pelo Documento Final da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, ou Documento de Aparecida, decidiu tratar, ao mesmo tempo, de várias questões polêmicas que vêm combatendo de forma sistemática: contracepção, aborto, pesquisa com células-tronco, eutanásia, prevenção do HIV/Aids.


 


Sob a louvável consigna da defesa da vida, suas teses têm questionado vários ramos da ciência. Justamente aquelas que pesquisam a vida, tendo nela argumentos parecidos para o conhecimento buscar a solução de problemas que afligem a todos, desde os fiéis e integrantes desta mesma Igreja, como aqueles que nenhuma relação tem com a fé ou a crença.


 


Suas teses são apresentadas como um “destino-manifesto”, a fim de que sigam os preceitos do sexo só para procriação, da recusa do direito à livre orientação sexual e do veto a técnicas de reprodução assistida para casais homossexuais, à pregação da abstinência sexual aos jovens como forma de evitar gravidez indesejada e o abortamento, enfim, um conjunto de proposições que fogem da diversidade sócio-cultural da atualidade que, a princípio, deveriam permanecer laicas e continuar definindo políticas públicas, quanto se afastam das concepções que relacionam classe com gênero, etnia e transformação social.


 


Neste embate, e “no campo do Judiciário, a Igreja Católica tem evocado a ciência – ainda que lançando mão de cientistas católicos – para fazer frente ao discurso dos que defendem posições contrárias às suas. Trata-se de uma tentativa de não parecer dogmática. O recurso à ciência só é bem-vindo quando tem o objetivo de enfrentar atores do campo da ciência”.[2]


 


Na outra ponta do debate temos vários investigadores, marcadamente influenciados pela tese epistemológica da unidade lógica da ciência e de que não há diversidade de procedimentos entre elas, sendo que “cada uma delas procede ao tratamento empírico de sua matéria e a explicação teórica de seus fatos” ou fenômenos.


 


Esta tendência, que buscou reformar o tradicional e criticado positivismo do século 19, encontrou no Círculo de Viena abrigo para suas férteis  teorias neokantianas. Desenvolveu-se, então, a partir dos anos 1920, considerando metafísicas as perguntas sobre as condições da possibilidade do conhecimento, pois “as ciências são dadas como ciências ao pensamento epistemológico, que deve se limitar a expor sua estrutura lógica”. Em um dos seus desdobramentos, se reforçou na tendência estruturalista e organicista, a qual tem “uma visão formalista da matéria (…) baseada na redução da realidade histórica aos modelos construídos por uma teoria”.[3]


 


Pois, parece que um conhecimento científico, a luz da exposição da sua estrutura lógica, ganhou abrigo nas justificativas de uma polêmica pesquisa que professores da UFRGS e PUC-RS vem propondo em conjunto. O objetivo é estudar e analisar genética e neurologicamente jovens homicidas na busca de suposto comportamento agressivo, tendo como universo jovens privados de liberdade e acusados de homicídio, internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE), comparando-os com outro grupo de faixa social e etária semelhantes, mas não em situação de violência.


 


Divulgado publicamente o intento, mesmo que a pesquisa ainda não tenha passado por comitês de ética das respectivas instituições, o dissenso se estabeleceu, sobretudo em questões sobre a liberdade de pesquisar, a censura prévia na busca do conhecimento e os limites ou não da ciência.


 


Com razão estão aqueles que levantam os exemplos históricos  das concepções eugênicas dos finais do século 19 e início do século 20, especialmente aquelas que levaram as experiências nazi-fascistas. Na ocasião, teorias oriundas de Arthur de Gobineau e Cesare Lombroso construíram uma cultura do crime e da lei, trazidas para o Brasil através de Cursos de Direito e Medicina. Reproduzidas em delegacias de polícia e em hospitais e clínicas de saúde, as quais criminalizavam as pessoas pela sua origem étnica e social e as isolavam da sociedade como verdadeiras chagas. A historiadora Elizabeth Cancelli, já afirmou que a violência, o crime e o Direito fazem parte da política. Assim, continua a autora, “estudar os instrumentos de violência e repressão de uma sociedade é mergulhar no interior da cultura política desta sociedade”.[4]


 


Não é preciso dizer o quanto teorias ditas científicas ainda permeiam nossas mentes e fazem parte das tradições dos órgãos de repressão em nosso país e mundo afora.  Como disse Luís Fernando Veríssimo, ao abordar a questão: “acho bom que perdure por muitos mais anos na memória do mundo o que aconteceu na Alemanha nazista, quando uma presunção de neutralidade moral levou a ciência a romper todos os limites da humanidade”.[5]


 


Portanto, não se trata de negativa da liberdade de pesquisar, mas sim do contingente a ser pesquisado e da forma de compreender o conhecimento científico. Sabemos sim que há riscos, sejam quaisquer conclusões advindas de uma pesquisa, se a velha neutralidade da ciência servir de escudo para referendar o fascismo latente em nosso meio. E é este mesmo pensamento conservador que criminaliza os movimentos sociais e considera certos segmentos de nossa sociedade como princípio, meio e fim do problema da violência.


 


E os neurocirurgiões e geneticistas nada tem a ver com esse debate quando construírem suas conclusões sobre a violência? Se desconectadas do discurso situado numa cultura biológica que desvia dos graves problemas sociais de um país como o Brasil, qual será a extensão do resultado de uma pesquisa que averigua o cérebro e o DNA de pessoas envolvidas que praticam diversas formas de violência?


 


Aqui deveria entrar a questão da relação das partes com o todo. Idealizadas por teorias racionalistas e religiosas, mas profundamente abstratas e desconectadas da concretude histórica e real, velhos dogmas negam à ciência o conhecimento em defesa da vida ou da construção de uma sociedade de liberdade com igualdade social. Petrificadas por teorias naturalistas e pseudocientíficas, mas absolutamente justificadoras de variadas formas de dominação política e ocultamento de desigualdades sociais, certos preceitos apenas reafirmam o velho chavão durkheimiano[6] de que os fatos sociais podem ser tratados como coisas e de que ciência não tem nada a ver com ideologia. Orientados por diretrizes teóricas popperianas[7] de defesa da sociedade aberta e liberal, tendo nas universidades e centros de pesquisa e em projetos isolados a única fonte do conhecimento, muitos cientistas vêem o mundo em suas redomas, certos de sua contribuição infalível para o mundo do conhecimento.


 


Precisamos ultrapassar esta simples dicotomia que opõem visões religiosas dogmáticas contra teses cientificistas absolutizadas. Nunca é tarde para lembrar os escritos pioneiros de Karl Marx e Friedrich Engels, incorporando, negando e superando o conhecimento existente até o século 19, revolvendo criticamente as teorias dialéticas, mas idealistas de Hegel, e as concepções materialistas, porém mecânicas de Feuerbach, entre outros, quando propuseram um novo método para o conhecimento. Este foi além das  teimosas reminiscências de passados feudais e escravistas, mas também questionou os cânones de mundo da burguesia, conciliadora com idéias que antes negara, a fim de manter a sua exploração de classe.


 


A partir do marxismo, passamos a compreender que a realidade ainda é uma parte do todo e que, portanto, o empirismo era insuficiente para a busca do conhecimento objetivo, pois “se a aparência do fenômeno fosse a sua essência, não era necessária a ciência”. Que era preciso virar a dialética de ponta cabeça para que, a partir das relações materiais seguíssemos o caminho metodológico da abstração, onde relacionamos as partes contraditórias e não homogêneas. Neste mesmo processo, chega-se à totalidade concreta do fenômeno, ou seja, na síntese das suas múltiplas determinações, nos aproximando cada vez mais da verdade objetiva.


 


Dessa forma, diminuem os relativismos absolutos e vão para longe as idealizações preconcebidas de uma suposta razão infalível. Também enfraquecem as teses surgidas na história sobre destinos predeterminados a partir de forças espirituais, mesmo que estas últimas tenham sua importância inegável nas explicações mágicas e mitológicas que organizaram as diferentes sociedades ao longo dos diversos níveis de tempos históricos.


 


Não foi por nada que, do século 19 para cá, principalmente nas academias, nas escolas, nos diferentes veículos midiáticos, o marxismo tenha sido tão atacado, vilipendiado, deturpado e negado.


 


Para esta nova forma revolucionária e classista de ver o mundo, os determinismos da razão (e sua vertente religiosa) e da natureza (e sua vertente cientificista) ficam muito aquém da explicação objetiva e do caráter histórico dos diversos tipos de fenômenos que nos cercam. Sejam eles oriundos de nossas mentes ou surgidos pela relação conjunta dos homens com outros homens, seja da natureza para com os homens e vice-versa.


 


Para o marxismo, qualquer teoria, sócio-científica tem sim implicações políticas e ideológicas e a busca do conhecimento e da verdade tem desdobramentos diretos na luta das classes, o que resulta em necessária discussão sobre os modelos teóricos das ciências, nos diferentes processos de análise, nas variadas formas de pesquisa.


 


Mas não se encerra em si mesmo, pois o alerta de Michel Löwy é sempre bem vindo: “o ponto de vista do proletariado não é uma condição suficiente para o conhecimento da verdade objetiva, mas é o que oferece maior possibilidade de acesso a essa verdade. Isso porque a verdade é para o proletariado um meio de luta, uma arma indispensável para a revolução. As classes dominantes, a burguesia (e também os burocratas, num outro contexto) têm necessidade de mentiras para manter seu poder. O proletariado revolucionário tem necessidade da verdade”.[8]


 


Dessa forma, podemos ir além de simples oposição mecânica entre ciência e religião (seja aquela do materialismo vulgar, seja do idealismo subjetivo); ou da simples conciliação entre o materialismo e o idealismo (definida nos pressupostos teóricos do relativismo, do ecletismo ou do agnosticismo). Ambas são vertentes de uma mesma vã filosofia que parte do princípio irresolúvel sobre a questão da existência do mundo exterior e da solução dos seus problemas.


 


Os marxistas, procurando entender historicamente as diversas religiões e seu sentido social e cultural, as diversas formas de construção científica e seu papel político e ideológico, defendendo o direito das pessoas professarem uma, outra ou ambas. No entanto, consideram atual os propósitos materialistas históricos de Lênin. Este defendia ir além do “trajo pretensioso de subterfúgios verbais,”, superar os “alambicados artifícios silogísticos”, ultrapassar a “escolástica refinada”, rompendo “o mesmo conteúdo reacionário sob o mesmo rótulo berrante”,[9] na qual o pensamento conservador se instala em todos os campos da vida social, seja proibindo a investigação, seja manipulando o saber. Tanto em nome da religião, como em nome da ciência.


 


Notas


 


[1] Vivenciamos hoje outra forma deste fenômeno, de conteúdo distinto, mas perfeitamente comparável, quando, na crise do capitalismo e na infância de outro modo de produção, teses relativistas, agnósticas e idealistas permeiam as concepções de mundo da burguesia decadente, sobretudo nos espaços acadêmicos e no conjunto da mídia.


[2] Cf. http://www.mulheresdeolho.org.br/?p=271. Acesso em 11/02/2008.


[3] Ver estas considerações em RÜDIGER, Francisco. Paradigmas do estudo da História. Porto Alegre: IEL/IGEL, 1991, p. 112.


[4] Ver CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei 1889-1930. Brasília: Ed. da UNB, 2001, p. 12.


[5] Cf. a crônica Evocação. In. Zero Hora, ano 44, n. 15.498, Porto Alegre, 4 fev. 2008, p. 3.


[6] Uma referência a Émile Durkheim (1858-1917), considerado um dos pais da sociologia moderna e conservadora, combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica e reconhecido como o grande  teórico da coesão e harmonia social. Partia da afirmação de que os fatos sociais deviam ser tratados como coisas, defendeu que cabia à pesquisa científica revelar as leis que regem o comportamento social, ou seja, o que comanda os fatos sociais.


[7] Uma referência ao o filósofo da ciência austríaco Karl Raimund Popper (1902-1994), apologista do liberalismo e autor de A sociedade aberta e seus inimigos, entre outros. Em suas diversas teses, entre as quais uma muito referenciada pelos teóricos relativistas da pós-modernidade, defendeu a idéia de que a história não consiste numa ciência teórica, nem estabelece leis gerais, pois ela se preocuparia “com a explicação causal de acontecimentos singulares” ou a “interpretação histórica”, cujo papel “é fornecer um ponto de vista para a seleção dos aspectos que nos interessam no curso de uma pesquisa”, negando-lhe, assim, o estatuto de ciência totalizante, bem como afirmando que a sua condição não é dada objetivamente. Ver RÜDIGER, op. cit., p. 113-114.


[8] Ver LÖWY, Michael. Método dialético e teoria política. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 34.


[9] Cf. LENIN, Vladimir I. Materialismo e empiriocriticismo. Moscou: Progresso, 1982, p. 244.

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