Espanha celebra 75 anos da República que Franco matou

Por Bernardo Joffily

A Espanha celebra neste 14 de abril o 75º aniversário da proclamação de sua 2ª República, o primeiro regime efetivamente democrático que o país conheceu. Também

A Esquerda Unida (IU, na sigla em espanhol; frente parlamentar impulsionada pelo PC da Espanha) apresentou nas Cortes (nome do Parlamento espanhol) a proposta de fazer de 2006 o ano da Memória Republicana. Deseja que se homenageie as vítimas da Guerra Civil e da ditadura franquista (1939-1975). O grupo parlamentar da IU, liderado por Gaspar Llamazares, voltou a apresentar a proposta na semana passada.

Polêmica com o neofranquismo

A iniciativa chocou-se com o rechaço dos herdeiros do franquismo, aglutinados no PP (Partido Popular), hoje na oposição ao governo de Rodríguez Zapatero, do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol, social-democrata). Parlamentares da IU temem que manobras protelatórias da direita levem a proposta a só ser aprovada em 2007, quando terá perdido sua razão de ser.
A contraproposta do PP é declarar 2006 como “Ano da Concórdia”. O objetivo alegado: evitar “que sirva para reavivar velhas feridas ou remexer no rescaldo da confrontação civil”.
A polêmica mostra até que ponto, três gerações depois, os acontecimentos dos anos 30 continuam sensíveis. Por motivo do 75º aniversário, atos de celebração, palestras e debates estão programados em todo o país. A causa republicana, que sete décadas atrás polarizou os espanhóis e o mundo, continua a dar o que falar.

Uma experiência que o mundo todo acompanhou
 

A 2ª República espanhola (a 1ª durou menos de dois anos, em 1873-1874) foi uma experiência que concentrou as atenções do mundo na época – um pouco como o Iraque ou a Palestina concentram as da atualidade.  Ali se defrontaram e testaram suas forças os dois blocos que, no momento seguinte, iriam se defrontar na 2ª Guerra Mundial: de um lado, uma Frente Popular de esquerda; de outro, o nazifascismo e ascensão.
A proclamação de 14 de abril se deu depois que o rei Afonso XIII abandonou o país, após as forças que o sustentavam se verem derrotadas nas eleições municipais. O país recusava-se a retornar aos tempos da ditadura monárquica de Primo de Rivera (1923-1930).
Nova eleição, desta vez para o Parlamento, confirma a guinada à esquerda. O PSOE torna-se a maior força. Abre-se a fase conhecida como  “Biênio Progressista”. O Partido Comunista passa de mil militantes, em 1931, para 25 mil em 1923 (chegará a 134 mil em 1934).
Segue-se uma vitória efêmera da direita, nas eleições antecipadas de 1933, que inaugura o “Biênio Negro”, com ataques a conquistas como a reforma agrária. Sucede-se a Revolução de 1934, com forte protagonismo sindical – a central UGT convoca uma greve geral revolucionária – e levantes autonomistas como o da Catalunha. O governo cai e nas eleições de 1934 vence a Frente Popular. Esta reúne em suas bases desde o PSOE e o PCE até os anarquistas, uma força importante na Espanha da época, que dessa vez abriram uma exceção em seu tradicional rechaço a qualquer participação eleitoral.

A Guerra Civil Espanhola

O mundo inteiro cravava os olhos naquela irrequieta Espanha republicana, que se inventava em todas as esferas da vida, desde a economia e a política até o comportamento: os garçons passaram a rejeitar gorjetas como um insulto, as esposas já não se deixavam espancar pelos maridos, as prostitutas organizavam-se e formulavam reivindicações. Em plena ascensão do nazifascismo (Hitler chegara ao poder em 1933), era o primeiro broto de uma ofensiva progressista que só floresceria no mundo dez anos mais tarde, após a Batalha de Stalingrado, com a derrota militar da Alemanha.
As forças da direita decidem recorrer à força para sufocar a experiência. Em julho de 1936, o general Francisco Franco desfecha o golpe, em nome da tradição, da religião… e da monarquia. No mesmo mês, a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini decidem dar apoio militar aos golpistas. A República decide resistir e arma milícias populares de operários e camponeses. Começa a Guerra Civil, que iria durar três anos.
Não caberia aqui historiar as peripécias da Guerra Civil Espanhola. Registre-se que ela mobilizou a máquina de escrever de Ernest Hemingway, os pincéis de Pablo Picasso e voluntários do mundo inteiro, que se inscreveram como combatentes nas Brigadas Internacionais – entre eles, 40 brasileiros, o mais célebre dos quais foi o ex-insurreto de 1935 Apolônio de Carvalho. E que opôs, de um lado os “nacionales” franquistas, do outro os republicanos.
Franco ganha a guerra, favorecido pelo apoio militar nazifascista, pela não-intervenção das potências ocidentais e também por divisões e erros no interior do campo republicano. E proclama a Espanha como “reino católico”, do qual ele, Francisco Franco, é o “caudilho” e “generalíssimo”.

O fim da ditadura, conciliador e monárquico

A ditadura franquista sobrevive à vitória democrática na 2ª Guerra e só entra em agonia após a morte do “caudilho”, aos 83 anos, em 1975. Assume então o trono o rei Juan Carlos I, designado por Franco como seu herdeiro desde 1969.
As circunstâncias fizeram com que a redemocratização espanhola assumisse um formato negociado, de uma grande conciliação, mediada pelo rei e sacramentada em 1977 pelo Pacto de La Moncloa (nome do palácio real), avalizados inclusive pelo PSOE e o PCE. As principais quebras do pacto vieram pela direita (tentativa de golpe do general del Bosh em 1981). A Constituinte de 1977, pela primeira vez com a participação das forças proscritas durante o franquismo, e com o apoio destas, deu ao Estado espanhol a forma de uma monarquia constitucional.
É neste quadro que transcorre agora o 75º aniversário da República de 1931. Tal como em outras monarquias européias, também na Espanha a questão republicana não aparece como uma bandeira imediata de transformação, mesmo da parte das forças de esquerda. Mas a controvérsia nas Cortes e as celebrações programadas mostram que o tema permanece subjacente: não se compreenderá a história recente e contemporânea do país sem tomar partido, com nitidez, em favor da herança progressista republicana e em repúdio ao tenebroso legado franquista.