Brasil precisa perder trauma da inflação, recomenda economista sul-coreano

O exonomista sul-coreano Ha-Joon Chang compara o País a uma pessoa paranóica: "Esse país é como uma pessoa que estava acostumada a sair, ir a festas, beber, conhecer pessoas. Um dia é atropelada. Então fica paranóica e

Início de noite, Ha-Joon Chang desce ao saguão do hotel para uma rápida entrevista antes de partir. Tem um jantar marcado com o então ministro das Relações Institucionais, Jacques Wagner. "Vai falar para ele de sua crítica aos juros altos?", perguntamos ao final da entrevista. Balança a cabeça afirmativamente, colocando embaixo do braço uma edição brasileira de seu livro, para presenteá-lo a Wagner.

Chutando a escada, lançado pela Editora Unesp em 2004, é uma crítica às regras de livre comércio e abertura da economia defendidas pelos países ricos e exigidas por instituições como a Organização Mundial de Comércio (OMC) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O título remete a uma expressão do economista alemão Friedrich List. Em seu livro O sistema nacional de economia política, de 1841, List já fazia a mesma crítica de Chang. "É um expediente muito comum e inteligente de quem chegou ao topo da magnitude chutar a escada pela qual subiu a fim de impedir os outros de fazerem o mesmo", escrevia o alemão, há mais de 150 anos.

Dois séculos depois, o economista sul-coreano escreve que os países ricos "não seriam o que são hoje se tivessem adotado as políticas e as instituições que agora recomendam às nações em desenvolvimento". Chang considera que os países ricos usaram, ao longo de sua história, tarifas protecionistas contra a importação para incentivar sua indústria nacional. Após alcançar o desenvolvimento de sua indústria, os países ricos passariam a pregar o contrário do que fizeram.

"O fomento à indústria nascente foi a chave do desenvolvimento da maioria das nações. Impedir que as nações em desenvolvimento adotem essas políticas constitui uma grave limitação à sua capacidade de gerar desenvolvimento", escreve, em seu livro. Fazendo comparações com o esporte, Chang diz que a competição sem regras de proteção só é permitida em categorias semelhantes. Pesos pesados não podem lutar boxe com pesos penas, lembra em suas palestras.

Situação do Brasil

Ao falar sobre o brasil, Chang compara o País a uma pessoa paranóica: "Esse país é como uma pessoa que estava acostumada a sair, ir a festas, beber, conhecer pessoas. Um dia é atropelada. Então fica paranóica e nunca mais sai de casa, por medo de ser atingida de novo por algum acidente", brinca. "Claro que, ficando em casa, esses acidentes não vão acontecer, mas nada de bom vai acontecer também: não vai arrumar emprego, não vai viver a vida".

Confira abaixo os principais trechos da entrevista que Chang concedeu à Agência Brasil:

Como o senhor poderia resumir para o público brasileiro o conceito central do seu livro Chutando a escada?

Ha-Joon Chang: Através dos anos, estive pesquisando a história dos países desenvolvidos. E percebi que devia me atentar mais às políticas que esses países usaram para se desenvolver, em vez de escutar o que os seus governos atuais dizem que deve ser feito para se desenvolver.

Descobri muita informação que vai diretamente contra o discurso que fazem para os países em desenvolvimento. O tipo de política comercial que eles dizem ser o melhor não é o tipo que usaram no passado para se desenvolver, nem a política de banco central autônomo…

Não sou o primeiro a dizer que não são boas as políticas recomendadas pelos países ricos. Mas pouca gente verifica se essas políticas e instituições que eles recomendam foram de fato usadas por eles mesmos.

O melhor exemplo é que eles vivem defendendo o livre comércio, mas olhando a história deles, nunca fizeram o livre comércio, faziam o contrário, um protecionismo alto.

Outro exemplo é que muitos desses países sequer tinha um banco central. Até recentemente, eles mesmos não tinham um banco central independente. Então veja o que dizem para os outros fazerem e o que eles realmente fazem.

Uma outra forma de chutar a escada são as exigências de pagamento da licença de uso da propriedade intelectual – os chamados royalties?

Chang: Muitos países até tinham algum tipo de lei sobre propriedade intelectual estrangeira pela metade do século 19, mas eram muito fracas. Explicitamente deixavam pessoas copiar invenções estrangeiras. Até 1891, os Estados Unidos se recusaram a assinar o acordo sobre direito autoral, de 1886, porque eles importavam livros da Europa. Os alemães produziram muitos produtos falsos "Made in England". Os sul-coreanos ainda hoje pirateiam livros, música, tudo. Agora a Coréia do Sul está brava porque a China copia seus filmes, mas até dez anos atrás eram eles quem copiava filmes dos EUA. Os suíços construíram muitas indústrias com tecnologia alemã. Eu não diria que explicitamente roubaram, porque existe um debate sobre isso, mas usaram a tecnologia alemã sem pagar.

Diante dessa realidade, o que os países pobres podem fazer para recuperar a escada do desenvolvimento?

Chang: Existe muita coisa que, de fato, não podem mais fazer como fizeram os desenvolvidos. Usar trabalho infantil, invadir países e manter colônias, por exemplo, ou reintroduzir a escravidão.

Por outro lado, fica difícil adotar algumas medidas que poderiam ser implementadas, porque as regras globais estão ficando mais apertadas. A Organização Mundial do Comércio (OMC) diz que você não pode fazer isso ou aquilo. Se você se recusa a baixar suas taxas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) podem se recusar a emprestar dinheiro. Então existe pouco espaço para trabalhar.

Entretanto, ainda não é como se não houvesse nada que pudesse ser feito. Existem coisas permitidas na OMC. A OMC tornou a maioria dos subsídios ilegais, mas alguns deles ainda são permitidos – basicamente os que os estados desenvolvidos têm, como na agricultura, pesquisa e desenvolvimento.

Mas o próprio governo brasileiro luta contra esses subsídios que, o senhor diz, poderiam os países em desenvolvimento.

Chang: Sim, os de agricultura, sim. Mas por que o Brasil não poderia usar esses subsídios para desenvolver o campo, a indústria, para diminuir a desigualdade? Os europeus usam o tempo todo. Não chamam de subsídios, mas dizem: se você instalar uma fábrica em determinada região, cortaremos taxas, damos o terreno.

Ultimamente, os países em desenvolvimento têm que trabalhar juntos para reformar a OMC. Isso tem que ocorrer. Claro que não sou ingênuo em dizer que irá ocorrer rápido, as pessoas que têm poder e dinheiro jamais irão ceder, a não ser que sejam forçadas. Mas se colocarmos em perspectiva, 50 anos atrás, muitos países ainda acreditavam em manter outros países como colônias.

O que o senhor acha desse papel do Brasil na OMC?

Chang: O Brasil tem desenvolvido um papel positivo na organização. Existem problemas, claro, o Brasil não é um anjo. Muitos desconfiam das posições brasileiras. E muitas pessoas vêem a luta pelo fim dos subsídios agrícolas quase como um confronto entre o Norte e o Sul do planeta, mas não é bem assim.

Não são todos os camponeses do Norte que são ricos. Pelos padrões nacionais, existem agricultores pobres em países como a Noruega, Coréia do Sul e outros. E nem todos os países em desenvolvimento vão se beneficiar da redução desses subsídios no Norte.

Esses subsídios não protegem o que eles não produzem –café e coco, por exemplo. Protegem a produção de carne, sementes. Então, essa redução também pode afetar países em desenvolvimento que produzem isso, como o Brasil, a Argentina ou o Uruguai. Então, trocar subsídios na agricultura por mercado industrial pode ser um benefício real para o Brasil, principalmente.

Não estou dizendo que o Brasil representa os interesses coletivos dos países em desenvolvimento, mas antes do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, apenas a Índia estava desse lado na OMC. A Argentina era comandada pelos Estados Unidos – e só depois é que ficou nervosa com o FMI e o Banco Mundial. A China não era nem membro da OMC.

Então era simples para os desenvolvidos dizerem que a Índia era apenas um país maluco que incomoda. Malásia e Quênia reclamavam, mas não contam. Agora você tem uma coalizão com Argentina, Brasil, África do Sul, Índia e China. Agora está mais difícil para os países desenvolvidos. A política internacional está mudando de forma. Vamos ver o que vai acontecer.

Algumas organizações civis ou economistas, como o filipino Walden Bello, pedem que os governos do Sul do planeta abandonem as discussões da OMC por serem prejudiciais ao desenvolvimento. O senhor considera a melhor solução?

Chang: Tenho muito respeito por Walden, mas a não ser que você se torne outra Coréia do Norte, totalmente voltada para dentro, é preciso participar do sistema internacional. Você é forçado ao livre comércio. É possível que as coisas caminhem tão mal que eu termine concordando com Walden, dizendo que não existe esperança nesse sistema, mas até agora mantenho minha posição.

Que países você poderia citar que estão reconstruindo a escada?

Chang: Países como a Coréia do Sul se tornaram ricos, mas agora também a Coréia está querendo chutar a escada. Mas você tem também a China… Claro, tem vários problemas, desigualdades crescentes, disparidades regionais, não é o modelo ideal, mas se olharmos como desenvolveram suas indústrias…

Os chineses estão basicamente utilizando os mesmos princípios usados pelos países que hoje são desenvolvidos. De maneira um pouco diferente dos métodos usados por Estados Unidos, Europa, Coréia e Japão, por exemplo, usam investimentos externos de maneira muito mais agressiva: Coréia do Sul e Japão fecharam o país para esses investimentos. Usam também o mercado consumidor, enorme, como moeda de barganha para investidores externos. E fazem parcerias entre as empresas estrangeiras e as estatais do país.

Assim estão desenvolvendo muito rápido. Protegem suas indústrias, ajudam as exportações. São métodos diferentes dos outros países em desenvolvimento, mas que estão ajudando os chineses a reconstruir a escada.

A Coréia do Sul é um país que aplicou muito dinheiro estatal na economia, não?

Chang: Até alguns anos atrás, Coréia foi bem pragmática sobre investimentos públicos. Se a empresa não ia bem, ou não havia interesse, foi vendida, privatizada. Um país que se desenvolveu com setores estatais foi Taiwan e Singapura. Eles tem setores estatais enormes – não dizem isso para ninguém, mas é assim que fazem.

Existe uma discussão enorme no Brasil sobre a taxa de juros. O senhor abordou o tema em sua palestra aqui.

Chang: Basicamente, vocês têm a maior taxa de juros do mundo. Recordes são bons em geral, mas não nesse caso. Isso está matando a indústria. Se você olhar para a taxa de juros reais nos anos 60 e 70, nos países desenvolvidos, estava entre –1% e 3%. Alemanha, 2,8% nos 60 até 1973. Suécia, 1,8%, Suíça, -1%. Coréia do Sul, o tempo todo negativo nesse período.

Vocês tiveram períodos de exceção, mas agora estão estáveis. Ninguém vai investir em empregos e produtividade com essas taxas. Abrir um negócio envolve muita dor de cabeça, lidar com empregados, leis trabalhistas, matéria prima… Você acha que um investidor prefere ganhar 6% com um investimento produtivo ou ganhar 12% com juros?

O argumento principal do governo é que só com essa taxa de juros é possível manter a inflação controlada e baixa.

Chang: Isso é um erro. Perdeu-se o tempo histórico. Não digo que não houve um propósito no início, quando havia um gatilho inflacionário, mas agora tornou-se totalmente contra-produtivo. Não é racional argumentar que, agora, um aumento da inflação vai fazer a economia sair do controle.

Não há evidência de que uma taxa de inflação de 10%, 20%, seja ruim para o crescimento dos países. O Brasil está assustado com a época da hiperinflação, então pensa que ou a inflação é 5% ou 5.000%. Mas isso só acontece em circunstâncias excepcionais.

Esse país é como uma pessoa que estava acostumada a sair, ir a festas, beber, conhecer pessoas. Um dia é atropelada. Então fica paranóica e nunca mais sai de casa, por medo de ser atingida de novo por algum acidente. Claro que, ficando em casa, esses acidentes não vão acontecer, mas nada de bom vai acontecer também: não vai arrumar emprego, não vai viver a vida.

Pode citar algum país que teve bom desenvolvimento com taxas de inflação mais altas que o Brasil?

Chang: Claro, a Coréia do Sul, por exemplo, teve taxas de 20% nos anos 90, 60 e 70. Tinha uma das taxas de crescimento mais altas do mundo. Mesmo economistas do FMI dizem que taxas de inflação menores que 10% não afetam a economia. Dois economistas do Banco Mundial, um deles Michael Bruno, mostraram há cerca de 10 anos que abaixo de 40% de inflação não era possível relacionar baixo crescimento e inflação. Não digam que é uma prova de que a inflação de 10% é ok, ou que 20% ajuda, mas isso pode acontecer. Não se pode ser obsessivo e irracional sobre baixa inflação. Não acho que nada entre 5 e 9% possa fazer diferença para a economia. Claro que, se chegar a 35%, começa a ficar preocupante.

E você não sabe o que pode acontecer. Nos EUA, antes dos anos 90, havia a crença de que se o país crescesse mais de 2,5% haveria inflação. Mas o país cresceu depois 4%, e não houve inflação alguma. Se você não tentar, você nunca vai saber qual é o limite. Inflação é um fenômeno muito complexo, não é apenas colocar um número aqui e, conseqüentemente, ter outro número lá.

Nossa relação entre crédito e PIB é baixa, em comparação com países desenvolvidos. Poderia haver um crescimento maior da economia se tivéssemos um crédito maior?

Chang: Não conheço bem o sistema financeiro brasileiro, mas, como em toda parte, sei que os bancos são conservadores. Como resultado, você olha para a estrutura brasileira, e encontra pouco crédito. Muito crédito não é necessariamente bom, mas as companhias estão crescendo rápido no mundo. No Brasil, crescem a metade. Deve haver alguma relação nisso, as empresas brasileiras não emprestam dinheiro, logo, não expandem.

Por causa dos juros?

Chang: Sim. Mas também por causa do medo dos riscos. A hiperinflação afetou de maneira muito negativa os brasileiros, eles não saem mais de casa com medo dos riscos. A maneira mais segura, claro, é não fazer nada. Mas se você não faz nada, você não consegue nada. Tenho receio de que tenha gerado efeitos psicológicos ruins para o empresariado brasileiro.