Guerrilha do Araguaia: a lei e os fora-da-lei

Como registro histórico, o livro "A Lei da Selva – Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares sobre a Guerrilha do Araguaia", recentemente lançado pela “Geração Editorial”, tem dois pecados ori

Por Osvaldo Bertolino

O principal mérito do livro A Lei da Selva – Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares sobre a Guerrilha do Araguaia, recentemente lançado pela “Geração Editorial”, é a revelação de mais segredos sobre a Guerrilha. Em suas 383 páginas, o autor, o jornalista Hugo Studart, apresenta dossiês, relatórios, depoimentos originais escritos por participantes dos combates e fotos — alguns até agora inéditos. Como registro histórico, no entanto, a obra tem dois pecados originais: pretende basear-se em regras acadêmicas sem cumprir seus princípios, ou seja, analisar os diferentes pontos de vista evolvidos; e, assim como outras publicações do gênero, exagera na artificialidade interpretativa. Studart não chega a dar vôos delirantes, mas a linguagem utilizada no livro tem um defeito típico dos intelectuais que se imaginam num pedestal: o academicismo exasperante e tumultuado que massacra a clareza e a simplicidade.
A pesquisa, produzida originalmente como dissertação de Mestrado para o Departamento de História da Universidade de Brasília, conforme explica o autor, focou o “imaginário” dos militares mas o livro tem muitas passagens que são puras elucubrações de Studart. Segundo ele, seu principal corpus de informação é o Dossiê Araguaia, elaborado pelos militares entre 1998 e 2001. “Fica claro, portanto, que o objetivo não é analisar o episódio sob o ponto de vista dos guerrilheiros, tampouco dos moradores da região”, escreveu ele. Numa de suas primeiras elucubrações, o autor afirma que trabalhou com a hipótese de que as práticas repressivas “estavam cravadas no histórico social, ou seja, no período de extremismos, resultante da Guerra Fria internacional e da repressão política instaurada”.

A falta de uma tradição progressista

 

Bem, hipótese é hipótese — cada um pode ter a sua. Mas o rigor científico exige outra abordagem. Se quisermos compreender a Guerrilha do Araguaia, o “histórico social” brasileiro precisa ser analisado levando em conta elementos fundamentais da formação do nosso povo. “Para se compreender a dimensão do que significa a Guerrilha do Araguaia é necessário analisá-la historicamente”, disse João Amazonas em depoimento colhido em agosto de 2001, na sede nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em São Paulo. Ou seja: nosso “histórico social” revela que o passado do Brasil contado pelas forças conservadoras tem uma interpretação; se quisermos contá-lo pelo ponto de vista progressista, os fatos ganham outra conotação.

Em suas interpretações, Studart pende visivelmente para o lado conservador. Já na abertura do livro, na página 14, ele afirma que a luta armada chegou ao Brasil depois do golpe militar de 1964. É conhecida a falta de uma tradição progressista na elaboração da nossa história. A ausência de debates, de discussão ampla, durante anos e anos entre os nossos estudiosos da história, decorrência dos arbítrios principalmente da ditadura militar, é uma das principais causas da nossa debilidade ao empreender estudos progressistas sérios. E Studart compreende tão bem essas dificuldades que adverte, na página 15, que o livro não tem “a pretensão de reconstruir a ‘história definitiva’ da guerrilha”. Talvez por isso ele parte de um ponto de vista errôneo ao apresentar o combate no Sul do Estado do Pará como um enfrentamento armado decorrente do “período de extremismos”.

Valores da sociedade brasileira

Aí o autor toma a nuvem por Juno. (A expressão tem origem mitológica. Ixião, criador de cavalos, apaixona-se platonicamente por Juno — Hera —, mulher de Zeus — Júpiter. Sentindo-se traído por essa paixão oculta, Zeus faz uma nuvem na forma de sua mulher. Ixião, enganado, une-se à nuvem, e, num sonho fantástico, nasce um centauro, criatura metade homem, metade cavalo.) Studart reduz àqueles combates armados o que foi uma luta de gerações sucessivas, muitas vezes sangrentas, e atribui à exaltação de alguns comandantes — principalmente João Amazonas e Maurício Grabois — as ações resolutas dos guerrilheiros. Na página 197, falando do “Tribunal Revolucionário”, ele pergunta: “Nossos bravos guerrilheiros se sentiriam encarnação do novo-homem de Lênin?” 
Nas páginas 61 e 62, Studart escreve: “Cabe lembrar, preliminarmente, que os episódios protagonizados pela guerrilheira Dina, assim como todos os sujeitos da Guerrilha do Araguaia, estavam inseridos dentro do sistema de representações e valores da sociedade brasileira dos anos 1960 e 1970.” Para ele, existia simplesmente uma “polarização extremista, maniqueísta, quando predominava, tanto no nível teórico quanto na prática social, o marxismo e o antimarxismo”. Dessa definição, completamente fora da realidade, o autor depreende que, “paradoxalmente, os dois lados se apresentavam como defensores da liberdade e da democracia”. Portanto, as “Forças Armadas”, sustentáculo da ditadura militar, e a Guerrilha, que queria a “ditadura do proletariado”, estavam equivocadas.

 
O significado da Guerrilha do Araguaia

A linha de argumentação do livro, sempre baseada em “imaginários”, explica esses conceitos “históricos”. Studart revela uma certa má vontade com o que considera um excesso de movimentos armados. Mas este fato é revelador da vida política do país, da participação do povo desta ou daquela forma nos destinos da nação que em 1964 foi violentamente atacada pelos militares golpistas. O autor diz combater os “mitos” da história mas defende mitos como esse da indiferença da Guerrilha em relação à liberdade e à democracia. Ele não considera que por trás do movimento guerrilheiro estava um partido histórico, portador de um projeto revolucionário. Por não perceber isso, Studart revela absoluta incompreensão do real significado da Guerrilha do Araguaia.
Na página 52, ele escreve: “No caso do Brasil, uma discussão profunda sobre a Guerrilha do Araguaia pode ser igualmente dolorosa, passional, maniqueísta, tanto para os militares quanto para o PCdoB. Mas, caso o debate seja administrado sem embustes nem revanchismo, pode vir a ser uma dor positiva, tão boa quanto a dor do parto. No caso, um parto da história.” Como disse João Amazonas, o PCdoB não faz proselitismo sobre o Araguaia. “Nosso Partido achou que cumpriu o seu dever, de procurar, em condições difíceis, o caminho da resistência, preparando o fim do regime de tirania implantado no Brasil”, disse ele. E explicou que o PCdoB é um Partido integrado às raízes do nosso povo. A “discussão profunda” que interessa, portanto, é a que considera os frutos dessas raízes.

 
A “questão militar” no Brasil

Trata-se de uma discussão integrada, por exemplo, ao significado histórico de movimentos da altura da Inconfidência Mineira e da Abolição da Escravatura. Assim como a Guerrilha do Araguaia, aquelas lutas sofreram feroz repressão e legaram para a história exemplos de que o povo não desiste do futuro. A proclamação da República e a busca por liberdade e democracia para o povo durante o regime militar não eram simples sonhos. Eram idéias naturais que se espalhavam pelo mundo e se tornavam realidade em muitos países. Fugir dessa constatação faz lembrar a frase insultante de Aristide Lobo, que se espalhou no dia seguinte à proclamação da República — de que o povo assistira ao fato “bestializado”. O povo nas ruas impôs a Abolição da Escravatura, a República e o fim da ditadura militar.

O livro tem ainda sérias imprecisões. Não é o caso de discorrer sobre elas por conta da quantidade exagerada. Mas algumas passagens merecem rápidas considerações. Studart desconsidera, por exemplo, que as ações repressivas não podem ser tomadas como elaborações somente dos militares. A “questão militar” no Brasil precisa ser compreendida como algo inserido na sociedade. Não se pode, portanto, dizer que haja uma separação entre Forças Armadas e povo — em suas fileiras destacam-se personalidades que são nomes legendários no coração da nossa história. Os militares que cometeram crimes no Araguaia certamente não respondem por essa história. E nem se pode dizer que eles expressam o pensamento histórico das nossas Forças Armadas.

 
O autor não lançou apenas luz

 
Outro grave defeito da obra é a insistência do autor em afirmar que a Guerrilha do Araguaia queria “implantar uma utopia socialista no Brasil”, quando o que ocorreu foi um agudo conflito do histórico combate por liberdade e democracia. Há ainda outras falhas sérias, como a tentativa de inocentar pistoleiros de aluguel — fazendo coro com os militares que participaram da repressão — e a afirmação de que o “comandante (Ângelo) Arroyo desertou em meados de janeiro de 1974”. Outra falha grotesca, inexplicável, é o registro de Maurício Grabois como "oficial de artilharia da Força Expedicionária Brasileira na Itália” — período em que o comandante da Guerrilha do Araguaia estava completamente envolvido na reorganização dos comunistas no Brasil. Ele também acolhe como verdade a informação dos militares segundo a qual o diário de Grabois foi incinerado logo após a sua morte.

Há ainda revelações citadas de segunda mão, sem comprovação prática (como a informação de que Grabois lutou na Itália). Outro problema sério é o texto assinado por Luis Mir, que está nas orelhas do livro — um purgante mental. (Ele chega ao ponto de culpar João Amazonas pelas mortes dos guerrilheiros.) Studart termina dizendo que “o objetivo principal do trabalho foi tão-somente lançar um pouco de luz nesse obscuro episódio da recente história brasileira”. Não se pode dizer que o objetivo não foi alcançado. O problema é que o autor não lançou apenas luz — há muita confusão em suas informações. Seja como for, só o fato de ele criar uma oportunidade de debate sobre o assunto já é uma grande coisa. Studart apresentou os ideais da Guerrilha do Araguaia, em essência, como um amontoado de propósitos mais ligados aos sonhos do que à realidade. É o caso de dizer então: vivam os sonhos!