“Juventude em Marcha” mostra que cinema bom não é cinema caro

Filme do diretor português Pedro Costa, rodado em formato digital (DV), durante 15 meses, com equipamentos exíguos e equipe minúscula, selecionado para a mesma mostra oficial que exibiu produções milionárias como “Marie Ant

A inclusão de “Hamaca Paraguaya” (um filme de 78 minutos falado em guarani e com praticamente cinco planos fixos) na mostra paralela (Un Certain Regard) do festival já havia surpreendido, mesmo que parte do público previsivelmente abandonasse a sala durante a projeção. Mas o grande óvni que pousou em Cannes este ano foi “Juventude em Marcha”, do português Pedro Costa, apresentado na seleção oficial competitiva.

Trata-se de um filme de 155 minutos, rodado em formato digital (DV), também composto principalmente de planos fixos e escuros, que em grande parte se repetem e nos quais personagens conversam longamente. Na trama, acompanhamos a perambulação de Ventura, um imigrante cabo-verdiano do subúrbio de Lisboa, que é abandonado pela mulher e passa seu tempo a visitar jovens, supostamente seus filhos, pela cidade.

O cenário de “Juventude em Marcha” são as ruínas do bairro cabo-verdiano de Fontainhas, no noroeste de Lisboa, e o novo bairro construído pelo governo para abrigar essa população, o Casal da Boba, construído nos antigos terrenos da maior lixeira do país. No primeiro, temos espaços escuros, pequenos, em cenas filmadas com luz natural que entra por portas, janelas, buracos; enquanto que o segundo se caracteriza por espaços amplos, muito claros, com paredes muito brancas.

O elenco é composto por atores não profissionais, que estão ali desempenhando seus próprios papéis, o que dificulta inclusive falarmos em "elenco". O diretor colocou-se a acompanhar Ventura pela cidade, visitando jovens do bairro que ele já conhecia de filmes anteriores e que trouxeram, cada um, seu argumento, idéias pessoais, lembranças, pedidos, mensagens que gostariam de passar a alguém. A obra situa-se na fronteira entre documentário e ficção, talvez em face de um semidocumentário, no qual pessoas reais engajam-se numa determinada linha ficcional de eventos que lhes permite criar situações para que estejam juntos em cena.

As conversas do filme parecem mais monólogos sobrepostos do que diálogos propriamente ditos. Ainda que haja comunicação entre os personagens, ela é truncada, tem um ritmo próprio e estabelece-se um pouco pela sedimentação de informações que são dadas por cada um em suas falas recorrentes. Muito disso deve-se à figura de Ventura, que repete um discurso aparentemente desconexo ao longo de sua peregrinação, tratando todos os jovens que encontra como filhos e dizendo-lhes ter sido abandonado pela sua mãe, ao que alguns respondem "minha mãe está morta" ou então fazem referência a seus pais, deixando claro que não existe ali o laço de paternidade pleiteado pelo protagonista.

Ventura é a figura que carrega o filme. Um homem de violenta solidão, que vive numa ronda diurna e noturna por esses seus filhos reais, imaginários, desejados, e que parece não esperar muita coisa do presente. Pedro Costa escreveu sobre Ventura que ele mostra às pessoas apenas uma de suas faces, o que as faz tomarem-no por louco, quando se trata de alguém que simplesmente tem "uma fidelidade absoluta ao que foi e ao que fez", um homem do passado, que vê poucas vantagens na mudança. No seu encontro com estes jovens da periferia lisboeta, temos acesso ao trajeto pessoal de cada um e a lacuna emocional que lhes permite que sejam filhos para Ventura, assim como ele é pai deles.

“Juventude em Marcha” é um filme extremamente lírico, poético, o que torna ainda mais espantoso o fato de as falas não terem sido criadas previamente e vermos ali na tela pessoas reais e seus universos pessoais próprios. Impressionam cenas como o encontro de Ventura com o jovem que trabalha como segurança de um museu e, de maneira muito simples, faz uma contraposição entre aquele e seu emprego anterior, o de segurança de um supermercado. Ou então a seqüência em que "pai" e "filha" brincam de imaginar formas nas paredes sujas e manchadas da casa da jovem antes que ela conclua que não terão mais aquilo nos quartos de parede branca do novo bairro. Existe uma implicação político-social muito sutil nesses diálogos, que compõem um quadro ao mesmo tempo lírico e engajado. A mistura de negros e brancos no elenco também afasta o filme de um contexto puramente étnico e enriquece mais ainda a beleza do retrato.

O espanto continua quando se toma conhecimento dos meios técnicos dos quais se valeu a equipe (de sete pessoas, sendo três responsáveis por etapas de pós-produção) para construir esta pérola. Costa filmou “Juventude em Marcha” durante 15 meses, trabalhando seis dias por semana, com uma câmera digital (mais precisamente uma Panasonic AG1000X), um DAT para o som, um ou dois microfones e um tripé, valendo-se unicamente de luz natural, captada com o auxilio de oito espelhos e papel refletor.

A inclusão de “Juventude em Marcha” na mostra competitiva, ao lado de superproduções como “Marie Antoinette”, de 40 milhões de dólares, certamente reforça uma idéia de que bom cinema não é cinema caro. E o fato de suas exibições terem sido abandonadas em massa pelo público durante os primeiros longos planos de diálogo não ajudam a contrariar o velho jargão elitista de que cinema bom é pra poucos. Ao grande público, a seleção oficial serviu este ano “Código da Vinci”, numa oscilação entre arte e espetáculo que parece ter se estabelecido definitivamente em Cannes.