BNDES: um pára-quedas para a Varig

Como time de futebol e ministério, empresa que troca de comando com freqüência acima do razoável está, nove em dez vezes, com problemas sérios. Na Varig, cujos presidentes costumavam só sair do cargo para ser conduzidos ao cemit&e

Por Osvaldo Bertolino
O socorro estatal, no entanto, implica em enfrentar um debate que freqüenta os bastidores deste governo desde os seus primeiros dias. "O BNDES é um banco de desenvolvimento, e não de investimento", disse o ex-presidente da entidade, Carlos Lessa, em seu discurso de posse. No governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o banco fez a inversão dos papéis. Além disso, nessa época o BNDES concedeu financiamentos sem garantia de retorno. O caso mais rumoroso é o da empresa de energia norte-americana AES, controladora da Eletropaulo, que aplicou um calote de US$ 1,2 bilhão. Quando este governo tentou cobrar a dívida, descobriu que quem deu a garantia ao empréstimo não foi a AES e sim uma subsidiária instalada num paraíso fiscal. Na “era FHC”, como dizia Lessa, o Brasil era um cavalo de corrida seguro pelo cabresto.  O ex-presidente do BNDES dizia que sua missão era resgatar a cartilha rezada pelo banco até os anos 90, ou seja, apoiar setores considerados estratégicos para o desenvolvimento do país.

Evidentemente, no caso da crise do setor aéreo o governo deveria ter ao menos calçado o pé da mesa e não deixá-la virar. Recursos existiam para isso. Quando o presidente Luis Inácio Lula da Silva assumiu, o BNDES tinha mais de R$ 7 bilhões parados no caixa à espera de demanda. Numa economia em crise, que se arrasta desde o início dos anos 80, o investimento privado geralmente se move como uma segunda onda, a partir de sinais dados pelo setor público. São as perspectivas de um mercado crescente que levam o empresário a investir. Se a economia cresce pouco, ele fica esperando. No máximo, investe em modernização, que é importante para cada empresa mas tem pouco efeito macroeconômico.

Os irmãos Wright

A infra-estrutura, a locomotiva da economia, fica para trás. Foi assim que os portos se degradaram, que o transporte coletivo desabou e que a malha de rodovias virou um queijo suiço. Foi assim também que surgiu o fantasma da quebra da aviação civil, um setor que foi operado de maneira desastrada nestes últimos anos. A regulamentação a la FHC acirrou um tipo de concorrência predatória entre as companhias. Elas começaram a voar com aviões praticamente vazios, em rotas superpostas. Essa competição asa a asa, digamos assim, não poderia resultar em boa coisa. "Não acreditamos no discurso desse tipo de concorrência como mola do sistema capitalista", afirmou, profeticamente, o ex-vice-presidente do BNDES, Darc Costa, ao defender a fusão da Varig com a TAM quando as empresas do setor começaram a pôr a língua de fora.

Ele expressou um cuidado que só o Estado pode garantir. O especulador (e acionista da US Air) Warren Buffett, que se alterna com Bill Gates, da Microsoft, no posto de homem mais rico do mundo, disse certa vez: "Se houvesse algum capitalista por perto quando os irmãos Wright voaram pela primeira vez, a melhor coisa que ele faria era matá-los". Quando era presidente do BNDES, o atual ministro da Fazenda, Guido Mantega, chegou a assinar um contrato de financiamento entre o BNDES e a TAP para livrar a Varig da perda imediata de dezenas de aeronaves — à época na iminência de ser retomadas por falta de pagamento de contratos de leasing. Mantega defendia que, além de dinheiro, o BNDES deveria atuar como articulador do salvamento da empresa.

Perda do monopólio

Agora, o presidente do banco, Demian Fiocca, diz que pode liberar recursos para investimentos na Varig, mas descartou financiar a compra  para os trabalhadores da empresa. (O Trabalhadores do Grupo Varig — TGV —, que arrematou a Varig no leilão realizado em 8 de junho, tem até o dia 23/06 para efetuar um aporte de US$ 75 milhões.) Para garantir seu lugar nas nuvens, no entanto, a empresa precisa apresentar as credenciais corretas e garantir a saída da zona de turbulência. "O banco irá avaliar esse pedido (do TGV) de acordo com os procedimentos normais de análise, tais como sustentabilidade da companhia no futuro, perspectivas de fluxo de caixa e o conhecimento dos potenciais investidores", disse Fiocca.

Não é tarefa fácil. A Varig foi fundada em 1927 pelo alemão Otto Meyer, que a comandou por catorze anos, mas o grande piloto foi Rubem Berta, que assumiu a presidência em 1941. Com Berta, a Varig deixou de ser uma obscura companhia que voava apenas no Rio Grande do Sul. Já era a maior da América Latina quando Berta morreu, em 1966. Em 1945, Berta mudou radicalmente a administração da Varig, ao criar uma fundação cujo controle seria dos funcionários e que teria metade das ações da empresa. Essa estrutura de poder, quando já era velha e viciada, desabou com a perda do monopólio das rotas internacionais em 1990. Além de empresas brasileiras, a Varig passou a enfrentar a concorrência das agressivas American e United Airlines, que substituíram as falidas Pan Am e Eastern.

Prisão de Canhedo

A crise nas companhias aéreas segue em um emaranhado de propostas e contrapropostas, decisões judiciais e intervenções parlamentares. A histeria neoliberal contra a intervenção do Estado na economia até agora tem mantido o governo receoso de dar um passo decisivo para resolver o problema. Até o vice-presidente da República, José Alencar, um destacado defensor do fortalecimento dos setores estratégicos da economia brasileira, disse, numa palestra na Escola de Comando e Estado Maior do Exército quando ele era também ministro da Defesa, que o Estado desejava uma “solução de mercado" para a Varig. Como se viu, essa “solução” resultou em desastre.

Outro exemplo de que o setor precisa do Estado é a Vasp. Nas mãos de Wagner Canhedo, seu controlador privado desde 1990, ela se tornou alvo de críticas muito mais ácidas do que sofria sob o comando de seu antigo dono, o governo do Estado de São Paulo. Nas mãos de Canhedo, a empresa passou a ser acusada de tráfico de influência, sonegação fiscal, atrasos nos pagamentos a credores, negligência na manutenção dos aviões, desentendimentos com funcionários, fornecedores e clientes, excesso de dívidas, problemas de caixa… Nada, ou praticamente nada, pareceu estar certo com a Vasp depois da privatização. Poucas companhias, sobretudo num setor tão sensível quanto o da aviação comercial, teriam resistido num cenário tão desfavorável à sua imagem. A Vasp, no entanto, não apenas se manteve no ar, como cresceu por um bom tempo.

Política de Estado

Um dos motivos desse milagre apareceu quando Canhedo foi preso pela Polícia Federal em 2004. Ele foi considerado depositário infiel pela 8ª Vara de Execução Fiscal do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região por não realizar os recolhimentos à Previdência Social e por não cumprir formas alternativas de pagamento da dívida com o INSS. Segundo o despacho do juiz David Rocha de Magalhães e Silva, o empresário não realizou a penhora de 5% do faturamento bruto da companhia aérea como a justiça havia determinado. A retirada de 5% da receita da empresa deveria ter sido feita para quitar os débitos com a Previdência Social. A Vasp tem uma dívida total de R$ 254 milhões com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Em 2003, quando o Ministério da Previdência Social divulgou a lista dos maiores devedores do INSS, duas das três maiores devedoras eram aéreas. A Transbrasil ficou em primeiro lugar, com uma dívida de R$ 408,69 milhões, e a Varig figurou na terceira posição com R$ 373,190 milhões — atrás da prefeitura de Campinas (SP), então com uma dívida de R$ 402,83 milhões. Seja qual for o destino da Varig, a crise aérea apenas começará a ser ultrapassada depois que uma política de Estado para o setor for posta em prática. Só assim um pouco de luz começará a iluminar esse canto escuro da infra-estrutura brasileira.