Flávio Aguiar: “A natureza da disputa: projeto contra projeto”

Nas eleições de outubro, estarão em disputa dois projetos opostos de administração pública: um mantendo a tradição de favorecer minorias privilegiadas e a exclusão social e política, e outro construt

por Flávio Aguiar*

Esquerdas e direitas têm diferentes leituras da natureza do que está em disputa nas eleições de outubro.

As direitas vêm querendo mostrar estas eleições como uma disputa entre os menos informados e menos instruídos contra os mais informados e mais instruídos. Aqueles votariam em Lula, estes em Alckmin. Entre os dois, alguns desiludidos com o PT e Lula prefeririam Heloísa Helena e muito poucos Cristovam Buarque.

À esquerda, prosperam visões da eleição como uma disputa cujo eixo é a luta de classes: ricos x pobres, no caso de eleitores petistas ou próximos; verdadeiros esquerdistas x traidores, entre muitos eleitores do PSOL; nas opções por Buarque ainda não consegui discernir com clareza seu eixo.

As visões à direita deixam escapar volta e meia seu campo de preconceitos. Democracia é coisa para iluminados, para bem dotados financeira e quanto acessos a serviços, ainda que privatizados. O povo não tem capacidade para fazer opções; no máximo, intui temas genéricos sobre sua condição, o que o torna presa fácil para “populismos”, para “demagogias”, para “assistencialismos”, “clientelismos”, termos com que sistematicamente desqualifica de modo indiscriminado todas as políticas populares.

As direitas hoje não têm como explicitar seu projeto de governo. Quando o fazem, perdem pontos. Não conseguem se libertar de sua adesão acrítica aos modelos neoliberais, triunfantes. Nesse modelo, propaganderam um suposto “Estado mínimo”, na verdade “máximo”. Mas máximo não no sentido de promover direitos e integração; ao contrário, máximo no sentido de pulverizar direitos, triturar sonhos, administrar o caos da desintegração social – algo cuja metáfora mais pungente hoje é o que acontece no sistema prisional de São Paulo, ou com a segurança pública neste Estado, onde grassa uma guerra suja entre os cavaleiros templários da ordem desordenada de um lado e organizações criminosas do outro, com a população e a maioria dos policiais espremidos no meio. Às direitas resta o caminho atrabiliário dos ataques pessoais, das desqualificações moralistas (porque distantes do objetivo maior de construir uma ética política que democratize de vez a gestão das instituições públicas). No limite resta o caminho da desqualificação do país inteiro: aqui nada dá certo; em se plantando, nada dá. Bom mesmo é o “primeiro mundo” de fantasia em que imaginam poder viver, como se ele de fato existisse, e não estivesse ele também cercado pelas coroas de exclusão das periferias pelo mundo à fora. No fundo, o mundo proposto pelas direitas assemelha-se àquelas cidadezinhas medievais que a gente construía com os bloquinhos em tijolinhos vermelhos, quando criança. Um fosso intransponível separa esse mundinho do oceano de turbulência e desgraça a que o resto do mundo fica relegado, e sem ponte levadiça. Outra metáfora cruel desse mundinho prepotente é o cortejo de anúncios de condomínios fechados, num feio estilo neoclássico, que pululam nos grandes jornais, anunciando as delícias… do isolamento.

Mas tenho minhas dúvidas de que nessas eleições o eixo das distinções seja de fato uma luta de classes, ainda que a grande maioria dos pobres tenda, até o momento, a votar em Lula, enquanto uma significativa maioria dos ricos tenda a votar em Alckmin. Um dos índices do papel relativo da luta de classes nas eleições é a constituição do contingente que até agora tende a votar na candidata que se apresenta como a mais radical à esquerda, a senadora Heloísa Helena. Não o constitui uma franja considerável de mais pobres: pelo contrário, são setores em geral de classe média e funcionalismo público razoavelmente aquinhoado que pensa protestar dessa forma contra o que consideram o envolvimento do PT com as tradicionais manobras da política brasileira, inclusive casos de corrupção. Não raro confundem retórica moralista com opção revolucionária ou reformista, o que, na verdade, termina por colocá-los mais debaixo da sombrinha das posições de direita no presente espectro político do que com o guarda-chuva de posições à esquerda. Embora, é verdade (e aqui disponho apenas da empiria de minhas conversas), muitos afirmem que se houver um segundo turno, votarão contra a direita e a favor do candidato mais à esquerda.

Há também um forte contingente de mais remediados, mais ricos (que a direita apregoa serem os mais informados e instruídos, o que não é necessariamente verdade, dado o estado da imprensa conservadora no Brasil) – mais de um terço, pelo menos – que prefere votar no candidato da continuidade hoje no Brasil.

Além disso, os dados de pesquisas sobre a distribuição de renda e condições de vida no Brasil espelham que não está havendo expropriação de renda ou riqueza de nenhuma classe mais abastada em favor das classes mais pobres – condição sine qua non para definição de uma política governamental de fato baseada numa luta de classes e em favor dos “de baixo” (na terminologia do saudoso prof. Florestan). O que está havendo, isto sim, é um redirecionamento decisivo dos investimentos da área pública em favor dos mais pobres, sob a forma de programas compensatórios que vêm se mostrando absolutamente necessários no panorama nacional e internacional de hoje em função das gerações desmazeladas pelas políticas neoliberais hegemônicas no final do século XX e em função da reabertura de alguma perspectiva de futuro em relação aos mais jovens. Essas políticas são necessárias, não suficientes; é preciso que avancem na direção de propiciar, no futuro, investimentos capazes de assegurar bases estáveis e progressivas de desenvolvimento, investimentos que as direitas hoje não têm mais condição nem interesse de captar e promover em benefício do país, tamanha a sede de retornarem ao pote das benesses em favor de suas bases bem aquinhoadas e clientes de sempre.

A essas políticas compensatórias de somam dois fatores de monta: o primeiro é o impulso ao patamar mínimo de renda do trabalhador (o salário mínimo), que empurra para cima toda a base da pirâmide social. As direitas agem erraticamente diante desse impulso: ora apregoam que isso vai quebrar de vez a previdência social; no momento seguinte, tentam acuar o governo aprovando para o conjunto dos previdenciários o reajuste de 16,5% concedido aos pisos inferiores da categoria: essa mão que supostamente afaga agora o povo é a mesma que prega o arrocho contra ele há dezenas de anos no Brasil.

O segundo fator é o realinhamento da política externa brasileira, em favor de uma integração soberana baseada na ampliação do Mercosul e na negociação de melhores condições com a União Européia, Estados Unidos, países asiáticos. As direitas se vêm na obrigação de denunciar alucinadamente esta política – que corresponde a objetivos nacionais estratégicos – porque ela rompe com a rede de acordos que tornam a posição brasileira a de uma autonomia relativa e subalterna na ordem internacional, de que elas sempre se apresentaram como porta-vozes em nome de uma suposta “civilização”.

Vejo portanto nestas eleições uma disputa acirrada, que não vai parar nelas, entre projetos opostos de administração pública, um mantendo a tradição de favorecer minorias privilegiadas e a exclusão social e política, e outro construtor (no que recupera políticas passadas, também) de uma perspectiva de integração social e de investimentos em favor das maiorias que, na verdade, historicamente constroem a riqueza nacional. Aquela tende a perpetuar uma concepção de Estado como vetor de exclusão e discriminação política e social; esta abre a possibilidade de se rediscutir a função do Estado e dos governos, rompendo com a tradição de serem eles apenas os administradores do caos neoliberal.

Esse debate está por toda parte, não só nas eleições, e vai continuar, independente dos resultados.

PS – Esta é minha última “Carta Ácida”. Calma: leitores e leitoras que porventura lamentariam, não têm por que lamentar; leitores e leitoras que certamente festejariam, não têm por que festejar. Não estou deixando a Carta Maior nem o seu recanto dos colunistas. Estou simplesmente devolvendo o seu a seu dono. Ocupei a rubrica “Cartas Ácidas” a partir dos começos de 2003, quando seu criador e titular, o jornalista e professor Bernardo Kucinski, passou a ser assessor especial do Presidente da República. Mantive assim o vínculo da rubrica com a Carta Maior, função que muito me honrou, apesar de nem por um momento pretender substituir o insubstituível BK. Agora Bernardo deixou a função de assessor do Presidente, para continuar de outro modo e em outras frentes sua incansável luta por um Brasil melhor. Cabe, portanto, que eu reponha à sua disposição sua rubrica, que tanto significa para o jornalismo brasileiro. Continuarei por aqui, sendo o Flávio Aguiar que sempre fui, autor destas crônicas às vezes amargas, às vezes bem humoradas.

*Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.

Fonte: Agência Carta Maior