Lula diz que é preciso superar a herança histórica da pobreza

No discurso de abertura da Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que é preciso superar a herança histórica da pobreza, da discriminação racial e da exclusão social numa sociedade onde há f


O presidente afirmou que a presença de líderes do continente africano em Salvador, ao todo são sete chefes de Estado, demonstra que os temas que serão discutidos ganharam prioridade na agenda do Brasil e dos países africanos. “Viemos a Salvador consolidar o diálogo permanente entre a África e as regiões onde sua gente e civilização deitaram no país”, afirmou Lula.

De hoje (12) a sábado (15), Salvador deve funcionar como uma extensão do continente africano ao sediar a conferência internacional, que vai reunir intelectuais, representantes da sociedade civil e tomadores de decisão para discutir temas de interesse da África e dos afro-descendentes, como saúde, educação, religião, comércio, ciência e tecnologia.

A conferência – cuja primeira edição ocorreu em Dacar, no Senegal, em outubro de 2004 – tem a presença de chefes de Estado e de governo dos países participantes. A diáspora – segundo a Fundação Palmares, os cerca de 12 milhões de africanos que foram espalhados pelas Américas pelo tráfico de escravos – é o outro assunto da conferência. Diáspora, do grego Diasporá, significa neste contexto a dispersão desses povos em virtude da perseguição de grupos dominadores intolerantes.


Confira abaixo a íntegra do discurso do presidente:



Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por ocasião do encerramento da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora


Salvador-BA, 12 de julho de 2006


 


  


 


            Senhores Presidentes,


            Senhora Primeira-ministra,


            Senhor Vice-presidente,


            Governador da Bahia,


            Prefeito de Salvador,


            Ministros do meu governo, aqui presentes,


            Secretários de Estado,


            Intelectuais,


            Senhoras e senhores participantes da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora,


 


 


            Eu não poderia começar as minhas palavras sem agradecer a presença de todos vocês aqui, sobretudo a presença dos presidentes que aceitaram o nosso convite, e a paciência de todos vocês, aí no Plenário, porque com o meu, já será o décimo quinto discurso que vocês ouvirão antes do almoço. Um conjunto de intelectuais e de autoridades que tem essa extraordinária paciência, certamente terão possibilidade de enfrentar tantos outros problemas que teremos pela frente.


            Eu queria até pedir desculpas ao meu intérprete, que deve estar com o meu discurso por escrito, mas o meu discurso vai ser uma repetição daquilo que foi dito aqui e eu gostaria de dizer algumas palavras, muito mais do sentimento que eu tenho, um pouco do coração e um pouco da razão. Eu tomei posse na Presidência do Brasil no dia primeiro de janeiro de 2003, e tomei a decisão de que o Brasil precisaria fazer uma inflexão na sua política internacional. O Brasil precisaria ter os olhos para a América do Sul e a América Latina e, ao mesmo tempo, ter outro olho para o continente africano. No início, parecia absurdo porque estavam acostumados, aqui no meu país, a uma política prioritária e quase única, de relação com os Estados Unidos e com a União Européia.


E eu mesmo tinha uma experiência, quando dirigente sindical, eu nunca tinha sido convidado para um debate na América do Sul e nunca tinha sido convidado para um debate no continente africano. Entretanto, dezenas de vezes eu fui convidado à Europa e dezenas de vezes eu fui convidado aos Estados Unidos, e eu percebi que quem determinava a relação não era o país colonizado, era o colonizador. Embora tivéssemos deixado de ser colônia, embora tivéssemos conquistado a nossa independência, do ponto de vista econômico e financeiro, do ponto de vista cultural e do ponto de vista comercial, havia uma certa subordinação.


Passados três anos, eu visitei 17 países africanos, todos da América do Sul e recebi, no Brasil, 15 presidentes de países africanos. Com a presença de vocês, aqui, chegamos a 22 países.  Visitei sete países do Oriente Médio, China e Índia, sem menosprezar a importância da nossa relação com os Estados Unidos e sem menosprezar a nossa relação com a União Européia, apenas estabelecendo uma tese de que era preciso mudar a geografia política e comercial do mundo. A geografia do mundo não poderia continuar dependendo dos mesmos que a dominaram no século XX, era preciso uma nova esperança no século XXI.


            Lembro de quanto fomos criticados, não faltou editoriais, não faltou articulista criticando a opção equivocada do Brasil por um continente que não tinha muito a oferecer. Porque, na cabeça de alguns, a relação é quase que mecânica, do ponto de vista dos interesses econômicos, e a nossa relação tem que ter um componente chamado solidariedade, chamado parceria e chamado até gratidão, porque a África tem a ver muito com o que nós somos, muito. O jeito do brasileiro é a mistura mais extraordinária que a raça humana produziu, é uma mistura de negros, de índios e de europeus. E que permitiu que nos transformássemos num povo miscigenado, num povo alegre, num povo amigo, e vocês vão sentir isso aqui na cidade de Salvador, que é a cara mais negra de todas as cidades brasileiras e de todos os estados brasileiros.


            O que aconteceu nesses quatro anos? A relação comercial entre Brasil e paises africanos significa, hoje, 12 bilhões e meio de dólares. A relação com a América do Sul e América Latina é maior do que a relação com os Estados Unidos e com a União Européia, numa demonstração de que o Oceano Atlântico não pode ser o obstáculo para nós no século XXI, quando ele não foi para os colonizadores no século XVIII, no século XVII, no século XVI. Os portugueses saíam de Lisboa e iam para a Índia, dando a volta no continente africano; os franceses ocuparam os países da África; os ingleses ocuparam os países da África e tudo porque o Oceano Atlântico era o que facilitava a chegada dos colonizadores. Nós, no século XXI, e essa é uma contribuição extraordinária que os intelectuais podem dar, precisamos pensar o que nós queremos para o continente africano, o que nós queremos de integração para os países do Sul, para os países do terceiro mundo, no século XXI nos próximos 30 anos ou nos próximos 20 anos. Não existe saída voluntarista. O voluntarismo resolve o problema de uma assembléia, mas não resolve o problema da relação entre os Estados, não resolve o problema do atraso secular a que fomos submetidos, daí aumenta a nossa responsabilidade, saber que passos poderemos dar na nossa política de integração, na recuperação dos séculos em que o continente africano foi obrigado a sofrer o atraso de que é vítima hoje.


Esse é o desafio para os intelectuais, esse é o desafio para que nós aprendamos a criar organismos multilaterais que dêem durabilidade às políticas que os governos fazem, porque nós temos mandatos com tempo determinado, e cada um que entra pode ter uma prioridade e uma política começada em um ano pode não ser seguida no ano seguinte. Então, é preciso que tenha organismos multilaterais fortes e respeitados para que as coisas possam acontecer de verdade. O Conselho de Segurança da ONU, nós não podemos admitir que a ONU continue, no século XXI, em 2006, com a mesma organização que tinha quando foi criada há 60 anos. A geografia política mudou, a geografia econômica está mudando, os países mudaram, olhamos o mapa-múndi e percebemos que vários países não existem mais. Então, por que continuar com a mesma organização, não termos coragem de democratizá-la e fazer com que o continente africano esteja, verdadeiramente, representado, que a América Latina esteja representada? E que outros países estejam representados.


Agora, estamos num conflito na Organização Mundial do Comércio e a briga é a mesma de sempre: os países ricos estarão dispostos a fazer concessões para que os países pobres possam ter acesso a seus mercados? Haverá sensibilidade da União Européia em permitir o acesso ao seu mercado agrícola? Haverá sensibilidade dos Estados Unidos para reduzir os subsídios agrícolas? Haverá sensibilidade nossa, do Brasil e do G-20, que muitos de nós participamos, para permitir o acesso a bens industriais? Se nós não tivermos sensibilidade para negociar e para fazer as concessões de acordo com a proporcionalidade do nosso tamanho e da nossa riqueza, não haverá acordo e quem é rico continuará mais rico, e quem é pobre vai continuar mais pobre.


Essa é a lógica perversa do comércio mundial, por isso estou indo a São Petersburgo na próxima semana. Lá estará o presidente do Congo, se não me falha a memória, da Índia, da China, do México e o G-8, onde nós vamos tentar introduzir o compromisso dos líderes políticos para tentar fazer um acordo. A minha tese é de que os negociadores já esgotaram a possibilidade de acordo. Agora chegou o momento dos líderes políticos dizerem “queremos ou não queremos um mundo mais justo, queremos ou não queremos um mundo mais solidário, queremos ou não queremos diminuir o terrorismo, queremos ou não queremos um mundo com menos mortalidade infantil, com menos doenças, com menos desemprego e com menos fome”.


Esse é o desafio que está colocado para nós e que não é responsabilidade dos países africanos, não é, tampouco, responsabilidade do Brasil, é uma responsabilidade de 6 bilhões de seres humanos que habitam o planeta Terra. E precisamos assumir a responsabilidade e não permitir que a globalização de hoje ou o modelo de desenvolvimento de hoje permita que os países pobres sejam tratados da mesma forma que foram tratados na época da colonização. Os colonizadores chegavam prometendo progresso, chegavam prometendo desenvolvimento e, quando vocês conquistaram a independência, vocês constataram que, do ponto de vista das riquezas naturais, os países estavam mais pobres, tinham sido dilapidados. Parece que ninguém, hoje, tem responsabilidade, parece que não aconteceu nada, a África é pobre porque é um continente negro, a África é pobre porque não tem escola, a África é pobre porque não tem desenvolvimento e ninguém assume a responsabilidade de dizer que a África é pobre porque, durante mais de 300 anos, as mulheres, as crianças e os jovens eram transformados em escravos para construir algumas das nações que são ricas hoje.


            E todos nós temos dívida a pagar. Aqui, no Brasil, criamos a Secretaria Especial da Igualdade Racial, com o papel de ministro de Estado, para criar as possibilidades de termos alguns avanços, o que, muitas vezes, não acontece com a facilidade que gostaríamos que acontecesse, porque os marcos legais existentes no país… às vezes demora muito para que as coisas aconteçam. Temos, no Congresso, um debate sobre o estatuto da igualdade racial. Tem uma polêmica, mas é como dizia o nosso querido Abdias,  a possibilidade de polemizar sobre essas questões não é uma coisa ruim, é uma conquista que os negros tiveram no nosso país. Temos as cotas nas universidades, que tem debates e mais debates. O dado concreto é que criamos o ProUni, e no ProUni, de 203 mil alunos que ganharam bolsa de estudo, 63 mil são afrodescendentes que conquistaram o direito de entrar na universidade em apenas 14 meses de implantação do Programa. Certamente eu tenho consciência, e os presidentes aqui também, e os intelectuais muito mais, de que não iremos, numa década ou em duas décadas, resolver os problemas que nos foram criados durante tantos e tantos séculos. A única coisa que eu posso dizer para vocês é que o Brasil vai continuar tendo uma forte prioridade na sua relação com o continente Africano.


Lamentavelmente somos um país pobre e não temos todos o recursos para que a gente possa fazer o que pretendemos fazer. Ontem, eu estive com dois presidentes, tinha estado antes de ontem com o presidente de Gana, hoje vou estar com outros presidentes, estive com o presidente da União Africana, e eu tenho dito para eles: este século pode ser nosso. O século XIX foi da Europa, o século XX foi dos Estados Unidos e também uma parte da Europa. Por que nós, que somos chamados de Terceiro Mundo, que moramos no continente Africano e na América Latina, por que nós vamos deixar passar a oportunidade de aproveitar o século XXI para definir o que nós queremos? E tenho dito aos presidentes: o Brasil, neste momento, tem uma extraordinária experiência na produção de biodiesel, é o país que tem a mais importante tecnologia na produção de etanol, é o país que tem hoje a patente de um novo combustível chamado H-Bio, que é a mistura do óleo vegetal diretamente no petróleo e refinado diretamente na refinaria.


Meus caros presidentes,


Eu tenho dito aqui, no Brasil, que, logo, logo, nós não estaremos mais prospectando petróleo a quatro mil metros de profundidade. Eu tenho dito que, daqui a alguns dias, nós vamos estar plantando petróleo. E esse programa de combustíveis renováveis pode ser o pilar do continente africano no século XXI. Nós plantamos mamona, nós plantamos girassol, nós plantamos a palma africana, nós plantamos o algodão, nós plantamos a soja, de todos esses produtos nós poderemos produzir o combustível que nós precisamos e não ficar dependente de comprar petróleo a um preço. E os países pobres nunca podem dizer quanto podem pagar, têm que pagar o que os produtores de petróleo acham que vale.


            Ao mesmo tempo, nós temos que acreditar fortemente – o continente africano, uma parte do Brasil e de outros países da América precisam acreditar que somente com muito investimento em educação é que a gente vai conseguir dar o salto de qualidade que nós precisamos dar. Eu, aqui no Brasil, presidente Wade, tenho dito que, cada centavo que nós não tivermos coragem de investir na educação, nós teremos que investir na doença, teremos que investir em cadeia, porque sem educação, sem emprego e sem oportunidade, é disso que as pessoas pobres terminam sendo vítimas. Nós precisamos de paz, nós precisamos de democracia, e democracia não é um meio valor. Democracia é, definitivamente, aquilo que pode garantir aos países de terceiro mundo o seu desenvolvimento, sem sermos pegos de surpresa por golpes, por derrubadas de governo, como muitas vezes acontece nos nossos países.


            Quero terminar dizendo a vocês que, quando estamos discutindo conceitos, poderemos ter muita divergência, e é importante que as divergências perdurem mas, ao mesmo tempo, precisamos discutir as coisas práticas, que podem melhorar a vida do povo de cada país africano, do Brasil, da América Latina e dos países pobres. Nós não temos que ter medo de fazer a discussão. Nós não temos que ter medo de sermos ousados, precisamos ir definindo, a cada dia, como aumentar a nossa relação, como os países menos pobres podem ajudar os mais pobres e como os mais ricos podem ajudar os países pobres. Não esperemos sensibilidade, temos que ter ação política e temos que ter projeto, porque tudo o que um país rico gosta é de fazer um pequeno favor e, depois, dizer que está ajudando.


            É preciso política consistente. E essa política consistente não pode vir de cima para baixo, ela tem que sair do continente africano para que o resto do mundo saiba os projetos que são de cada país e que são de interesse do povo africano. Se nós não fizermos isso, nós estaremos cometendo um erro histórico, que pode nos causar prejuízo, tanto como foi a tragédia da escravidão. Nós não podemos passar mais 40, 50 anos no atraso a que estamos submetidos.


            Então, é preciso que tenhamos coragem de ousar, tenhamos coragem de brigar nos fóruns multilaterais e vamos tomar uma ação que, quem sabe, possamos aperfeiçoá-la no dia 30 de novembro, quando haverá, na Nigéria, o Encontro Continente Africano-Continente Sul-americano. Possivelmente os presidentes nunca se encontraram, possivelmente muitos de vocês nunca foram aos países da América do Sul e muito presidente da América do Sul nunca foi à África, mas certamente todos nós já fomos à Europa mais de uma vez e já fomos aos Estados Unidos mais de uma vez.


            Então, nós precisamos nos ajudar, nós precisamos criar política de solidariedade entre nós mesmos. Eu, desde pequeno, ouço dizer, e aqui na Bahia deve valer muito, Governador, que a gente vai à casa de um pobre, e a qualquer hora da noite ou do dia em que a gente chegar, o pobre tem uma coisa para nos oferecer. A gente chega na casa de uma pessoa mais abastada, se já jantou, não tem mais. E a gente ouve as mulheres pobres da periferia dizerem “onde come um, comem dez, onde dorme um, dormem dez”. Portanto, ao invés de ficarmos esperando que outros venham nos ajudar, vamos definir que tipo de ajuda nós mesmos poderemos fazer entre nós para nos tornarmos mais fortes e para podermos exigir um pouco mais dos outros. Nós temos o direito de fazer tudo. A única coisa que nós não temos o direito é de, no século XXI continuar,nos omitindo de discutir os grandes problemas que vivem os países pobres do Planeta.


            Muito obrigado pela presença de vocês, muito obrigado a todos vocês e bom Encontro.