Elementos para entender a crise libanesa

Por Elias Jabbour *
 
O mundo sente hoje a dor dos que morrem no “País do Cedro”. O cedro é a arvore símbolo, representada no centro da bandeira nacional do Líbano, assim conhecido desde o Velho Testamento, onde Salomão recita versos de glórias

Um pouco de geografia


A República Libanesa (nome oficial) é um país com uma área de apenas 10.400 km2 e uma população que de acordo com o senso de 2002 não passa de 3,8 milhões. País asiático do Oriente Médio tem toda sua costa banhada pelo Mar Mediterrâneo, faz fronteira com a Síria ao norte e ao leste. Ao sul faz fronteira com Israel. Sua população é composta em 80% por árabes libaneses, 17,5% por árabes sírios, os árabes palestinos são 1,5% do total e os curdos e armênios correspondem a 2% da população.


Do ponto de vista físico, pode-se dividir o Líbano em quatro regiões principais: estreita planície costeira, planalto interior estreito e fértil, a cadeia montanhosa do Líbano e o Líbano ocidental. O pico Qurnat as Sawda com 3088 m. de altitude é o ponto mais alto do país. O clima de tipo mediterrâneo domina o país com chuvas anuais que variam de 920 mm. na costa a 2300 mm. nas montanhas
 
Religiosamente o país é composto de 62,4% de muçulmanos divididos em xiitas (34%), sunitas (21,3%) e os druzos (7,1%). Os cristãos são 37,6% do total, sendo que os católicos romanos correspondem a 25,1%, os ortodoxos 11,7% e os protestantes 0,5%.


A economia libanesa foi reconstruída após a guerra civil de 1975-1992. O Líbano possui um dos maiores padrões de vida do Oriente Médio. Com ajuda ocidental da ordem de US$ 15 bilhões, sua infra-estrutura foi refeita. O país voltou a ser um pólo turístico e financeiro da região e seus índices de crescimento nos últimos 10 anos têm registrado média de 5,5% ao ano. O PIB, segundo censo de 2003, é de US$19 bilhões, sendo que o turismo e o comércio correspondem a cerca de 60%, a agricultura (uvas, maçãs, tâmaras, etc.) a 20% e a indústria (basicamente têxtil) outros 20%. A moeda libanesa é a Libra.


Os problemas sociais têm síntese nas várias favelas de Beirute, que surgiram como resultado do crescente êxodo rural – iniciado na década de 1950 – de muçulmanos xiitas e nas péssimas condições dos campos de refugiados. O Líbano foi o país que mais sofreu com a pressão demográfica no Oriente Médio. Está aí uma das receitas para a guerra motivada por diferenças religiosas: os cristãos, apesar de serem minoria foram os mais beneficiados na “divisão do bolo” econômico.


Formação social, algumas observações


O Líbano é uma das 15 nações modernas que correspondem aos Berços da Humanidade.


Os fenícios, comerciantes feníticos de cultura marinha, foram os criadores do alfabeto que serviu de base para todas as línguas indo-européias. Foram também os criadores da navegação, fato comprovado pelo fato de terem “dobrado” o Cabo da Boa Esperança milhares de anos antes de Vasco da Gama. Foram também os construtores de Cartago, a grande rival de Roma. Existem sinais de uma possível passagem dos fenícios por território brasileiro através de escrituras e a constatação após escavações de uma série de escritos fenícios no Líbano com tinta extraída de pau-brasil, datando de 3 mil anos atrás.


A localização geográfica viabilizou a transformação do Líbano em entreposto comercial entre o Império Romano e a Mesopotâmia. O país é cobiçado desde a antiguidade, quando foi invadido por hititas, persas e egípcios. Em 332 a.C., Alexandre o Grande conquistou-o mantendo o domínio grego até 63 a.C., quando se tornou província romana; em 395 d.C. passou a fazer parte do Império Bizantino. A história milenar de comércio transformou sua capital, Beirute, em centro financeiro do Oriente Médio. O Líbano é chamado de “a Suíça do mundo árabe”.


A passagem de muitos povos pelo território libanês está marcada por vários monumentos de grande valor arqueológico, reconhecidos como patrimônio cultural da humanidade. O mais importante deles chama-se Baalbek: comporta um templo em homenagem ao deus Baco, onde estão localizadas as maiores colunas romanas de que se tem conhecimento.


Ascensão e queda do poder otomano


Entre 635 os árabes muçulmanos ocupam a região. São desalojados temporariamente pelas cruzadas cristãs (a quem se deve a presença cristã no país), com o apoio interno da parcela maronita da população. Os cristãos permaneceram no controle até serem expulsos pelos muçulmanos em 1291. Em 1516 o Líbano cai sob domínio do Império Otomano: os árabes no Brasil são chamados de “turcos” porque os documentos de muitos deles, expedidos até 1918, indicavam-nos como súditos do otomanos.


O Império Otomano foi um dos maiores da história, porém como todos os poderes imperiais entrou em decadência, de 1800 a 1923. Derrotada na 1º Guerra Mundial, a Turquia perdeu o controle, mediante tratados, de mais de 80% de seu território incluindo o Líbano. Desde antes, com a guerra que travou contra a ocupação otomana entre 1860-61, os libaneses tinham status privilegiado, com uma espécie de auto-governo.


Com o fim do domínio turco, o Oriente Médio foi perversamente partilhado entre a Rússia, Inglaterra e a França através da assinatura – em 1916 – do Acordo de Sykes-Picot. Por este tratado a Inglaterra recebia o controle da Mesopotâmia e dos portos de Haifa e Acre, ligados por uma zona de influência inglesa. A Rússia recebeu o noroeste de Anatólia e regiões da Armênia e Curdistão. Coube a França a ocupação do Líbano e a Síria.


A independência libanesa foi conquistada em 1941 e autonomia plena em 1943. As tropas francesas só desocuparam o país em 1947, como parte da descolonização afro-asiática que ganhou força após a vitória da URSS e aliados na 2º Guerra Mundial.


Política, religião e crises


O sistema político libanês se baseia – até hoje – na distribuição confessional (religiosa) de cargos executivos e legislativos. Um acordo assinado em 1942, com base no censo de 1932, distribui esses cargos na proporção de seis cristãos para cinco muçulmanos. Ficou acordado que o presidente do país seria um cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o chefe do legislativo um muçulmano xiita.


A fundação do Estado de Israel, em 1948, e o êxodo palestino ao território libanês trouxeram consigo dois elementos: a crescente força demográfica muçulmana e a contestação da forma como o poder era distribuído no país. Contestação reforçada devido ao alinhamento externo dos cristãos maronitas ao lado ora de Israel, ora da Síria.  As diferenças religiosas e étnicas são exacerbadas com a influência da Guerra Fria na política interna libanesa. Em 1958, o presidente maronita e pró-americano Camille Chamoun passa a ser o alvo principal de rebeliões muçulmanas inspiradas por regimes pró-soviéticos (Síria e Egito). O imperialismo norte-americano intervém com o desembarque de tropas no país; após protesto soviético, a crise é contornada com a substituição de Chamoun e a retirada das tropas dos EUA.


A derrota árabe na Guerra dos Seis Dias (1967) e o massacre de palestinos na Jordânia (1970) no que se convencionou chamar de “Setembro Negro” levaram cerca de 300 mil palestinos a se refugiarem no Líbano. A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) instalou seu quartel-general em Beirute de onde coordenava ataques contra Israel. O equilíbrio interno de poder fora abalado, o que desembocou em uma guerra civil iniciada em abril de 1975: de um lado estava uma coalizão druzo-muçulmana apoiada pelos palestinos e de outro uma coalizão de direita composta por cristãos. O Exército Libanês fracionou-se em grupos rivais.


Em 1976, a iminente vitória dos setores de esquerda levou a Síria a intervir no conflito, do lado dos cristãos. Porém o apoio de Israel a este grupo levou Damasco a mudar de lado, enquanto passava a dominar o território e as instituições políticas do Líbano.


Desde 1998 o país é presidido pelo general Émile Lahoud, cristão maronita cujo pai foi um dos líderes da independência do país.


Sabra e Chatila, crime contra a humanidade


A primeira ofensiva israelense em território libanês ocorreu em 1978. Porém a mais contundente ocorreu em junho de 1982, sob o comando do então general criminoso de guerra Ariel Sharon.


 Israel expulsa o comando da OLP de Beirute. A 16 de setembro, com a autorização e coberturas israelenses, milícias cristãs comandadas pelo testa-de-ferro do imperialismo Eli Hobeika (morto em atentado no início de 2002, após declarar que, caso fosse julgado pelo massacre, iria incriminar Sharon como mandante da chamada operação “Cérebro de Ferro”) invadem os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila assasinando 3.500 pessoas (segundo fontes, nem os animais foram poupados), em resposta ao assassinato do então presidente libanês, o cristão Bachir Gemayel.


Fopi um crime contra a humanidade. As tropas do Estado de Israel colaboraram impedindo a fuga de moradores dos dois campos de refugiados.


Em seguida, Israel retirou-se para a chamada “zona de segurança” localizada ao longo de uma faixa de  20 quilômetros na fronteira sul do Líbano. Ali formou sob sua supervisão o Exército do Sul do Líbano, composto por cristãos.



A benéfica presença síria e a trama do imperialismo


O controle sírio sobre o Líbano deve ser visto de alguns ângulos. Um é a multi-secular existência da nação libanesa, que não é uma anomalia geopolítica do tipo Israel ou Taiwan. Outro é a luta antiimperialista em escala mundial percebendo; ao obrigar a saída da Síria do território libanês, o imperialismo impõs em Beirute um governo influenciado por sua política. Inclusive abrindo uma condição objetiva concreta para que Israel partisse para o ataque direto ao Hezbolá sem maiores envolvimentos da Síria.


São conhecidas as ligações dos EUA com o ex-primeiro-ministro libanês Hafik Hariri (assassinado – suspeita-se que pela CIA – em fevereiro de 2005, como forma de utilizar a Síria como bode espiatório).


Ao contrário do que veiculam os defensores da “democracia”, dos “direitos humanos” e da “liberdade de expressão”, a Síria teve papel positivo na sobrevivência do Estado libanês e é levando em conta esta constatação que se deve entender a questão nacional libanesa. O Líbano paraticamente está proibido de aparelhar um exército, por imposição da “única democracia do Oriente Médio”, Israel. O reerguimento libanês após 1992 não teria sido posível sem a Síria, que por três décadas defendeu as fronteiras do país e foi a responsável pelo desarmamento das milícias (menos o Hezbolá, o que é compreensível), patrocinando um acordo de paz no mesmo ano de 1992.


A atual desestabilização do Líbano é expressão da presença americana no Iraque e das constantes ameaças à Síria, seguidas da morte misteriosa de Hafik Hariri. Há uma trama entre o imperialismo norte-americano e o sionismo para desmantelar a soberania libanesa em nome da “guerra infinita contra o terrorismo” e da difusão de valores ocidentais em uma região de cultura, hábitos, escrita e valores humanistas vários milênios mais antigos que o American Way of Life.


Ignorância e bárbarie


O Ocidente recusa-se a tomar conhecimento dessas contribuições. Em The evolution of Geography, Emille de Martonne demonstra o papel de geógrafos árabes (Ibn Khaldoun e Ibn Bathouta) como ponte entre as geografias antiga e moderna. Um dos pais da geografia francesa, J. Brunhes, a partir da comparação entre os sistemas de irrigação na Península Ibérica e do norte da África, chegou à conclusão que os árabes foram essenciais na difusão de sistemas de irrigação.


A ignorância toma ares de barbárie, como visto após a invasão do Iraque com o saque ao Museu Nacional de Bagdá, onde estavam instaladas mais de 4 mil peças que remontam à civilização mesopotamica, e na facilidade com que bombas caem sobre cidades libanesas matando crianças e velhos.


E a ONU?


E o papel da ONU ante a investida judia em território libanês? Será que o Tratado de Genebra será usado contra os agressores da nação e do povo libaneses? Ou assistiremos a mais uma omissão deste organismo internacional que cada vez mais justifica a razão de ter sua sede em Nova York?


* Assessor econômico da presidência da Câmara dos Deputados (Brasília/DF), doutorando e mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” (Anita Garibaldi, 2006)