''El País'': MV Bill faz o rap da ''tragédia brasileira''

Confira reportagem publicada neste sábado (29/7) pelo jornal espanhol El País, a respeito do rapper MV Bill.

Rap para a tragédia brasileira

O popular músico brasileiro MV Bill retrata em
documentário a condenação das crianças das favelas

 

Ninguém o havia contado na pequena tela com tanta crueza: crianças e adolescentes que vivem de noite, usam radiotransmissores e fuzis AK-47 quase maiores que eles e trabalham no negócio das drogas. Os brasileiros já sabiam: pode-se ler praticamente diariamente nos jornais, mas nunca haviam visto e escutado seus protagonistas.

 

''Falcão ou os meninos do tráfico'' foi transmitida em 19 de março no ''Fantástico'' da Rede Globo, o programa de televisão de maior audiência no Brasil. Provocou uma comoção. ''Foi visto por 100 milhões de pessoas. Ao mostrar o assunto por outra óptica, com o olhar de quem está dentro, cabia a possibilidade de desencadear uma grande discussão sobre as favelas.'' A classe média descobriu uma gigantesca favela de excluídos chamada Brasil.

 

''Mais que mostrar essa realidade, o documentário diz: 'Ou você divide sua riqueza ou vai continuar sofrendo as conseqüências dessa miséria que está ajudando a gerar'.''

 

MV Bill esteve esta semana na Espanha a convite do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona para participar do debate sobre ''Esquerdas urbanas – Segregação e contracultura no Brasil''. Ali se projetou o arrepiante documentário de MV Bill e Celso Athaíde. Dos 17 meninos e adolescentes que aparecem, 16 já morreram. Em uma cena, crianças brincam de executar um suposto delator. ''Se eu morrer vem outro, melhor ou pior'', diz um deles. ''No início do ano passado soube que um deles não estava morto, mas na prisão. A primeira coisa que lhe perguntei foi se seu sonho continuava vivo. Eles têm sonhos de meninos de favela: ser jogador, cantor… Sérgio não, ele queria ser palhaço. Agora estuda em uma escola de circo e foi acolhido por uma família. Já fala e se comporta de outra maneira.''

 

MV – que significa Mensageiro da Verdade, nome que lhe deram com 14 anos – Bill se chama na realidade Alex Pereira Barbosa. ''Hoje seria mais 'Minha Verdade''', diz sorrindo, ''porque a verdade é um assunto muito complexo. Pode inclusive ser uma grande mentira.'' Ele nasceu há 32 anos – e ainda mora na Cidade de Deus, a favela carioca cujo nome se tornou famoso pelo romance de Paulo Lins e o posterior filme de Katia Lund e Fernando Meirelles. Houve certa polêmica quando declarou que o filme talvez ganhasse o Oscar, mas que a comunidade só ia ganhar violência. ''Muitos sociólogos estavam discutindo a realidade baseando-se em uma história de ficção. Tudo aquilo começou a causar um estigma ainda maior à Cidade de Deus. A polícia começou a ter atuações mais violentas e algumas pessoas perderam o emprego quando se descobriu que moravam na favela. O filme nem sequer foi projetado na comunidade. Não houve contrapartida. Nem que fosse uma piscina cheia de mosquitos da dengue'', diz, sarcástico.

 

Favela, comunidade, periferia… o nome é o de menos. ''Um conjunto de pessoas em condições precárias que são vistas como lixo, escória da sociedade. Há estatísticas segundo as quais 99% de seus habitantes são gente de bem'', diz. Mãe é uma constante nos depoimentos dos meninos. ''A maioria não tem pai ou não o conhece. Sabem que não vão viver mais de 18 anos e que deixarão uma viúva de 13 ou 14 com outro menino no colo. As mães têm de trabalhar fora cuidando dos filhos dos ricos e deixando os seus sozinhos. E quem cuida deles é o tráfico.''

 

São invisíveis fora da favela. Falta de auto-estima. Mas com uma arma na mão são alguém. ''O machismo determina as funções das mulheres: mãe, viúva, botequeira – a que troca serviços sexuais por drogas… Estamos preparando um livro sobre isso: Falcão, o crime de saias.'' Ele sabe que a favela não precisa de mais polícia, mas de um esquadrão de médicos, professores… ''No Brasil a educação não é uma prioridade. Às vezes escutam-se as elites dizer que alguém é violento e que a favela é, mas violência é condenar as pessoas a viver naquelas condições.''

 

''Compra o pó de mim / depois me insulta na televisão'', ele canta. Por seu videoclipe ''Soldado do morro'' o acusaram de apologia do crime. ''Se eu tivesse tido outra cor de pele ou pertencido a outra classe social o transformariam em arte.'' O processo continua na justiça. Em 1999, em um show, tirou uma pistola e a colocou sobre um lençol branco. ''Quis mostrar que sou a favor do desarmamento, mas não fui compreendido.'' Depois alegou que a pistola era de mentira.

 

MV Bill já esteve em Barcelona. No Fórum Mundial das Culturas, em uma noite dedicada ao rap. ''Comprovei que havia um monte de gente no mundo usando a linguagem do hip-hop para falar do desequilíbrio social.''

 

Autor dos discos ''Traficando informações'' (1999), ''Declaração de guerra'' (2002) e ''Falcão o bagulho é doido'' (2006), MV Bill conta que o hip-hop é uma música marginalizada nas rádios do Brasil. Mas o dos americanos é tocado. O presidente de uma grande rede comentou que os programavam porque as pessoas não entendem o que dizem e é melhor para dançar. Funcionam os canais alternativos. Levar os discos pessoalmente aos locais.''

 

Explica que no Brasil quanto mais escura for a pele maior a discriminação. ''Fruto de uma escravidão física e mental. Estou lutando para romper toda essa merda. É o que mais me seduz em meu trabalho: incomodar os que têm posicionamentos racistas. Se pensavam que havia um lugar predeterminado para o negro, se enganaram'', afirma. ''Eu disse ao Lula que a tragédia que mostramos não é coisa de seu governo ou do anterior. No final da escravidão o país se dividiu em duas sociedades: a do bem-estar e a da miséria. Mas a podridão cresceu tanto que se transformou em um monstro.''

 

MV Bill é um dos fundadores da Central Única de Favelas (CUFA), ''uma instituição que nos permite realizar o que dizemos''. Promove cursos audiovisuais, ateliês de grafite e teatro, basquete, e só na Cidade de Deus há 70 computadores ligados à Internet. Contam com ajudas como a de Caetano Veloso – ''está sempre conosco. Já foi dar aula sobre bandas, falar sobre a ditadura, das metáforas de suas canções quando não tinha a liberdade que hoje tem o hip-hop'' – ou Ronaldo – ''nos ajudou a construir a sede da CUFA. Organizou uma partida com Zidane para arrecadar fundos''.

 

''Meu trabalho não incomoda. Tiro um jovem do tráfico e há 50 entrando. Nosso time está perdendo de goleada. Estávamos conversando com um gerente [pessoa que controla as finanças dos traficantes] e chegou uma menina de seus 16 anos com a barriguinha inchada, levando o namorado pela mão. Pediu para falar com o gerente e lhe disse: 'O rapaz está desempregado, você está vendo que estou grávida, queria saber se não teria um lugar para ele'. O mais terrível foi a resposta: 'Agora não tem lugar, quando tiver algum livre, aviso'.''

 

Diversão de pobres

Nas favelas do Brasil pode-se ouvir samba, reggae, forró, axé ou hip-hop, esse canto falado que se expressa através de artistas como Marcelo D2 ou MV Bill. E os anunciantes de televisão descobriram agora a eficácia do hip-hop e do funk carioca como trilha sonora para suas campanhas internacionais. Um funk procedente do Miami Bass, adotado pelo Rio de Janeiro, que o abrasileirou com tambores de candomblé. Uma mutação de outras mutações nas mãos de pioneiros como DJ Marlboro. As letras são explicitamente sexuais nos bailes noturnos em que reina o MC – também chamado de rappper ou rimador.

 

Calor terrível, um som metálico ensurdecedor, baixos que retumbam dentro do corpo… Um cartaz proíbe a entrada de grávidas. O funk carioca se desenvolveu nas favelas do Rio, onde a maioria dos habitantes de seus bairros acomodados não pisará jamais. Mas seus filhos, sim, o fazem nos fins de semana, atraídos pelo poderoso som que os alto-falantes cospem. Os bailes foram objeto da crônica criminal. E alguns jornais chegaram a pedir sua proibição.

 

Não é a primeira vez que se reprime uma expressão da cultura popular:
ocorreu com o samba no início. O antropólogo Hermano Vianna escreveu: ''Vocês que não puseram os pés em um baile funk, não sei por que o odeiam. Talvez por ser uma diversão de pobres''. No início dos anos 70 chegou às favelas o ''black power''. Os negros brasileiros copiaram os penteados e as roupas de seus primos do norte. E seus bailes foram inundados por ''I feel good'', ''Sex machine'' ou ''Say it loud (I'm black and proud)'', canções que eram amplificadas por equipes como Soul Grand Prix. Em um baile de domingo, no antigo orfanato da Cidade de Deus, enquanto tocavam Otis Redding e Marvin Gaye, conheceram-se Cristina e Juca, os pais de MV Bill.