Valter Pomar: “Lacerdismo: a doença senil do tucanismo”


O ex-presidente FHC lamentou não existir, atualmente, alguém como Carlos Lacerda, ''com capacidade de dramatizar e cobrar'', ''alguém que dê nome aos bois e arrisque''. Vamos atender ao pedido de FHC e dar nome aos bois: C

por VALTER POMAR


A Folha de S. Paulo, supostamente porta-voz da ala progressista do tucanato, publicou hoje dois artigos criticando a reeleição de Lula. Um dos artigos é assinado por Otávio Frias Filho, um dos proprietários da Folha. Intitulado ''Anistia para Lula'', o artigo diz ser ''evidente que a decisão do eleitor será soberana (…) Mas se o veredicto for esse [a eleição de Lula], dispensando o segundo turno, a afoiteza do eleitor terá prejudicado a qualidade democrática desta eleição''.




E por qual motivo o eleitor estaria sendo ''afoito''? Porque, segundo Frias, a eleição no primeiro turno impede o debate programático, que ''só existe (…) no segundo turno''. Ao contrário do que diz Frias, o ''debate programático'' vem acontecendo há muitos anos e se acentuou durante o governo Lula. A Folha sempre teve lado neste debate, o lado dos tucanos. Já a maioria do povo brasileiro está, hoje, do outro lado.




Frias e a maioria dos colunistas políticos não se conformam com isto e apelam para a desqualificação do povo, do voto e dos motivos que explicam o apoio da maioria do eleitorado para Lula.




Frias reconhece que ''a população mais carente tem boas razões para estar satisfeita''. É exatamente a partir desta experiência, mas também da experiência dos últimos 26 anos (pelo menos), que o povo brasileiro vem participando e tomando partido no debate programático sobre os rumos do país.




É claro que para o diretor de redação da Folha, a experiência vivida pelo povo, a partir do qual vem formando sua opinião política, está longe do rigor exigido de um ''debate programático''. É por razões semelhantes que Marco Antonio Rocha, colunista de O Estado de S. Paulo, afirmou que ''até agora, e até onde é do conhecimento do comum dos mortais, não ficou nada clara qual é, de fato, a diferença entre os principais candidatos a presidente da República''.




Não ficou clara para quem, cara pálida?




A impressão que passa é que Rocha e Frias, como estão perdendo a eleição e também o debate programático, começam a apelar para uma espécie de autismo intelectual: ''Lula não apresentou seu programa até agora'', ''nenhum dos presidenciáveis têm programa'', ''todos os programas são iguais''.




Frias chega a dizer que Lula, ''no governo, traiu quase todas as idéias-feitas que pregava nas duas décadas anteriores''. Suponhamos que isto fosse verdade e que Lula estaria parodiando o FHC do ''esqueçam o que eu escrevi''. Por qual motivo, então, toda a direita, o grande capital e os grandes meios de comunicação apoiaram a reeleição de FHC, enquanto hoje estão na sua esmagadora maioria contra a reeleição de Lula?




É evidente que, por mais que possam ter havido modificações (e elas ocorreram) nas posições de Lula e do PT, isso não alterou as posições básicas (de classe, políticas, ideológicas) que ambos ocupam na sociedade brasileira, em contraposição a partidos como o PSDB e PFL.




O preocupante, na argumentação de Frias, é que a lógica de seus argumentos o conduz para o golpismo. Vejamos o que ele diz: a ''reeleição do atual presidente, se de fato ocorrer'', terá um ''significado sinistro'', pois ''a mais alta corte do país, o próprio povo, terá anistiado o escândalo do mensalão''.




O cenário pós-vitória de Lula é resumido assim por Frias: ''um presidente macunaímico, que se orgulha da própria falta de estudo, seria reconduzido sem trauma nem esforço. O partido que lhe serviu de alavanca, o PT, pode não sair destroçado das urnas, mas será um fantasma do que já foi. Políticos sem doutrina, a maioria, farão fila para apoiar um chefe de governo novamente forte''.




Neste contexto, Frias acredita que a proposta de Constituinte para fazer uma reforma política poderia resultar na prorrogação do mandato de Lula, no direito à uma nova reeleição e – palavras de Frias— na determinação de que só poderiam concorrer candidatos ‘progressistas''. Trata-se de algo tão delirante, que Frias mesmo reconhece que ''estamos longe de ver essas fantasias se concretizarem. Mas não custa alertar''.




Outro que resolveu ''alertar os incautos'' é Augusto de Franco, que foi coordenador-geral do Primeiro Congresso do PT (1991) e depois virou tucano de carteirinha.




Segundo este senhor, em artigo igualmente publicado na Folha de S. Paulo de 24 de agosto, ''se a reeleição vier, ela (…) será o passo inicial para uma tentativa de mudança autoritária das regras do jogo político (…) as bases de uma hegemonia neopopulista de longa duração no país''. Mais: ''se consagrado pelas urnas com votação expressiva, Lula e sua tropa atropelarão aliados, adversários e instituições, falando diretamente para as massas''.




Entretanto, diz Augusto de Franco, para que se possa consumar a ''mudança autoritária das regras do jogo'', ''algumas coisas ‘extraordinárias’ deverão acontecer'': ''a descoberta de corrupção em larga escala nos Parlamentos e as ações terroristas praticadas pelo PCC'', fatos ''que deverão ser ‘produzidos’ para causar uma certa comoção na opinião pública, manipulando-a para levá-la a aceitar a adoção daquelas medidas regressivas capazes de permitir a implantação da fórmula lulista''.




Leiam novamente: este senhor acusa o PT de conspiração. A nós interessaria ''produzir'' as ações do PCC e inclusive a ''descoberta'' de corrupção em larga escala nos Parlamentos, para assim desmoralizar as instituições e implantar o medo na sociedade!!!




Augusto encerra seu artigo dizendo que ''a despeito do fato de essa fórmula já estar sendo parcialmente implementada, transformando 2006 em uma ante-sala de 2010 (…) é claro que ela pode não dar certo, sobretudo se encontrar resistência. Mas a insistência em aplicá-la levará o Brasil a uma crise institucional sem precedentes''. Para bom entendedor, meia-palavra basta: tanto Frias quanto Franco estão apresentando argumentos que, se forem tomados a sério, justificariam o golpismo contra Lula. Afinal, seria um governo que conspira contra a democracia.




Para os que acham que esta conclusão é exagerada, lembro das recentes declarações de FHC, que lamentou não existir no Brasil de hoje alguém como Carlos Lacerda, ''com capacidade de dramatizar e cobrar'', ''alguém que dê nome aos bois e arrisque''.




Vamos atender ao pedido de FHC e dar nome aos bois: Carlos Lacerda foi um golpista. Aliás, sua trajetória lembra em parte a de Fernando Henrique: ambos foram de esquerda, passaram para a direita e tornaram-se golpistas. A diferença é que FHC, até agora pelo menos, só fala. Lacerda agia. Ajudou a dar o golpe contra Vargas, em 1954; trabalhou pelo golpe contra JK, em 1955; e ajudou a dar o golpe contra Jango, em 1964.




Quem quiser conhecer em detalhes a biografia de Carlos Lacerda, vá ao endereço http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/2684_1.asp




Lacerda era muito conhecido por suas frases de efeito. Em 1955, disse na televisão que ''Juscelino não será candidato; se for candidato, não será eleito; se for eleito, não tomará posse; se tomar posse, não governará''. A UDN, partido de Lacerda, tentou impugnar a vitória de JK nas eleições de 1955, usando como argumento que Juscelino recebera o voto dos comunistas.




Por ''coincidência'', já há tucanos e pefelistas importantes questionando a legitimidade da vitória de Lula, utilizando como argumento qualquer coisa: sua ausência no debate da Bandeirantes, denúncias de corrupção e até mesmo seu apoio nos setores populares, que seria produto de ''ações populistas'' de governo. FHC e Frias se deixam trair pelas palavras. O primeiro confessou que está buscando alguém que ''arrisque'' uma atitude golpista. O segundo diz que a reeleição de Lula seria ''sinistra'', palavra que em italiano quer dizer exatamente ''esquerda''.




Este é o problema da direita brasileira: sua alma golpista não se conforma que a esquerda governe o Brasil. Muito menos que consolide uma ''hegemonia de longa duração''. É exatamente isto que está em jogo, não apenas na reeleição de Lula, mas principalmente no curso do segundo mandato: a constituição das bases institucionais, sociais, econômicas, políticas e culturais de uma hegemonia democrática e popular de longa duração. Que passa pela disputa dos chamados ''setores médios'' e pela constituição de uma ''opinião pública'' de esquerda.




Um pedaço da direita brasileira acredita que uma derrota em 2006, especialmente se acontecer já no primeiro turno, pode ser a ante-sala de uma nova derrota em 2010. Daí a tentação e a retórica golpista. Com o perdão da blague, ainda ''estamos longe de ver essas fantasias se concretizarem. Mas não custa alertar''. Especialmente num dia 24 de agosto, data do suicídio de Getúlio.




*Valter Pomar é secretário de relações internacionais do PT