Mercosul avança em políticas contra-hegemônicas

Por Ronaldo Carmona*
Ocorre nesta sexta-feira (1/9), no Rio de Janeiro, uma reunião dos ministros da área econômica dos países do Mercosul. Nela, podem-se dar novos passos na conformação de políticas contra-hegemônicas no bloco, destoantes do receituár

Na agenda da reunião no Rio, constam três pontos:



– “Cooperação no comércio regional com moedas locais”;
– “Balanços comercial dentro do Mercosul e países associados, fluxos atuais e desafios do comércio intra-bloco”; e
– “Atuação dos países do Mercosul e países associados em organismos multilaterais”.
Desdolarização do comércio intra-bloco



A substituição do comércio em dólar norte-americano por moedas nacionais – que pode se dar através de instrumentos como os CCRs (Convênios de Créditos Recíprocos) estabelecidos no âmbito da Aladi, gera um acerto de contas periódicos numa caixa de compensação entre os Banco Centrais –, tem efeitos práticos (econômicos), além de ser simbólico de atual fase de construção do novo Mercosul.



Contendo a necessidade de financiamento do comércio sul-americano em dólar, possibilita, por exemplo, destinar as divisas para fortalecer as reservas internacionais – a do Brasil atingiu esse mês de agosto, US$ 70 bilhões, um recorde histórico –, além de conter pressões excessivas sobre o cambio, como ocorre hoje no Brasil, com a sobrevalorização. A desdolarização, pois, pode ser o embrião de uma outra unidade monetária de trocas regionais que aponte para uma moeda unida sul-americana num futuro próximo. É uma medida que tem sentido geral de reforças a autonomia e a soberania, de reduzir a vulnerabilidade, marca dessa geração de governos progressistas sul-americanos.



Essa medida também tem correspondência com algumas iniciativas similares que vêem sendo tomadas por nações em outras regiões do mundo, com a China, que busca diversificar suas reservas ou países do Oriente Médio, como Síria e Irã, que estudam o uso do euro. É uma contestação, todavia tímida, mas já em curso, do dólar como moeda de referência única nas relações econômicas internacionais. Convém atenção ao fato.



Estender a experiência do G-20



Outro debate em curso no Mercosul é a idéia de “blocar” a América do Sul nos organismos financeiros multilaterais, como o FMI (Fundo Monetário Internacional). Um primeiro teste deverá se dar na Assembléia do organismo neste mês em Singapura. Nela, o Mercosul deverá defender – em aliança a ser construída com os demais países em desenvolvimento – uma profunda reestruturação desse organismo financeiro, como anunciou a semana passada o presidente da Argentina, Néstor Kirchner.



Isso, num momento em que o FMI vive uma crise, como tem se visto em diversos órgãos de imprensa nos meses mais recentes. Uma crise de “inutilidade”, de desuso, pois ele é cada vez menos acionado pelos países em desenvolvimento, que relutam em aceitar a draconiana agenda neoliberal radical exigida pelo Fundo como contrapartida a seus empréstimos.



Agenda de desenvolvimento para o Mercosul



Outro debate importante em curso no Mercosul é a criação de um Banco Sul-americano de Desenvolvimento, que teria a função de fornecer empréstimos de ultima instancia para crises de balanços de pagamento (função atualmente cumprida pelo FMI) e de financiamento de projetos de infra-estrutura (função de órgãos como o BID e o Banco Mundial). “Na velocidade que está crescendo o Mercosul é necessário a criação de um organismo financeiro especifico”, disse nesta semana o ministro brasileiro da Fazenda, Guido Mantega (1), agregando que “pode ser um organismo multilateral com a presença do BNDES e do BICE (Banco de Investimentos e Comercio Exterior da Argentina)”.



Aqui, algo que não é um mero detalhe: o fato de esses projetos financeiros do Mercosul serem conduzidos pelo ministro da Fazenda. É um sinal importante, uma vez que esse órgão tem sido, nos últimos anos – inclusive na gestão de Antonio Palocci – o sabotador das iniciativas de integração sul-americana na esfera financeira. Recorde-se, por exemplo, a falta de solidariedade brasileira à Argentina quando do trauma da desvalorização do peso em 2001.



Outros importantes assuntos na agenda econômica do bloco são o Gasoduto do Sul e a criação do Focem. Neste mês haverá novo encontro dos ministros de Energia do Mercosul, que repassarão o estado atual do projeto do Grande Gasoduto do Sul, atualmente em fase de estudos técnicos. Além disso, o bloco busca por em funcionamento o Focem (Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul), projeto de financiamento de projetos nas regiões e países menos desenvolvidos no bloco, visando diminuir as assimetrias regionais. .


Outros avanços no Mercosul


Não é só na área econômica que se avança: também há passos em outras dimensões da construção do Mercosul. Essa semana, saiu no Diário Oficial da União, um decreto que estende aos cidadãos argentinos os mesmo direitos civis, sociais, econômicos e trabalhistas que têm os brasileiros em território nacional – em reciprocidade à decisão argentina tomada em abril último. É um passo para a eliminação dos passaportes em escala sul-americana, revelador de uma outra integração posta em marcha.


 


Outra noticia positiva recente são os avanços nas tramitações legislativas do projeto do Parlamento do Mercosul. Nesta semana o Senado argentino aprovou o projeto, que no Brasil, foi votado em 1º de agosto pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Estima-se que é possível iniciar o funcionamento do Parlamento, de forma inicial, até 31 de dezembro deste ano. As primeiras eleições diretas poderiam ser realizadas em cinco anos, já em 2011.



 


São avanços importantes no processo de integração regional. A reeleição de Lula em outubro, de Hugo Chávez na Venezuela em dezembro e de Néstor Kirchner na Argentina em 2007 permitirá seguir avançando nesse projeto estratégico, de sentido geral antiimperialista e antineoliberal que vem se tornando o novo Mercosul.
Como disse nesta semana a embaixadora argentina em Caracas, Alicia Castro, “o novo Mercosul (..) contribui para uma ordem multipolar capaz de evitar o unilateralismo e a hegemonia das áreas centrais, e desafia a globalização neoliberal” (2). Essa é a dimensão da batalha para os povos da América do Sul, que terá novo capitulo com a reeleição de Lula no Brasil.



 


A união da América do Sul avançará em dois ritmos, em “duas velocidades”, como reconheceu o chanceler brasileiro Celso Amorim (3) há poucos dias, ao responder a uma jornalista, tendo ao lado o novo chanceler do Peru, Garcia Belaunde, que acaba de assinar um TLC com os Estados Unidos.



 


O fundamental é que há um grupo de paises com governos progressistas (nucleados por Brasil Argentina e Venezuela) que vêm marchando razoavelmente alinhados: precisam numa nova fase avançar mais, estabelecendo projetos nacionais de desenvolvimento comuns, compartilhados. A integração sul-americana não é incompatível, absolutamente, com projetos nacionais. Ao contrário, deve ser alavanca para potencializá-los. Assim, a onda do novo nacionalismo sul-americano, característica dos governos progressistas na região, deve confluir para a consolidação de um novo Mercosul contra-hegemônico e pela multipolaridade.



Notas


(1) ver “Desafios da presidência brasileira do Mercosul”, 21/07/2006, disponível em www.vermelho.org.br/base.asp?texto=5416



 


(1) “Hacia un Mercosur mejor consolidado” (Agencia Prensa Mercosul, 31/08/2006)



 


(2) “Por um Mercosul contra el neoliberalismo” (Agencia Prensa Mercosul, 27/08/2006)



(3) “Entrevista coletiva”, 25/08/2006 (www.mre.gov.br)