Desarmada, Cidade de Deus recebe Lula em comício funk

Famosa dentro e fora do Brasil como símbolo da violência ligada ao tráfico de drogas nas favelas, Cidade de Deus guarda as armas para receber, neste sábado (02/9), o presidente candidato à reeleição, Luiz Inácio Lula da Silva. Às 15 horas, Lula se encontr

Em 40 anos de existência, é a primeira vez que uma autoridade – federal, estadual ou municipal – visita o cenário do filme Cidade de Deus, indicado ao Oscar em 2004. Líderes comunitários vêem no comício de Lula a oportunidade de superar o estigma de antro da criminalidade reforçado pelo filme.


 


“Foi uma grande surpresa para nós, porque receber o presidente da República é um privilégio. Isso vai mostrar que somos cidadãos trabalhadores e queremos viver em paz”, afirma a diarista Juciara Moraes, 49 anos, vice-presidente da Escola de Samba Unidos de Jacarepaguá, onde Lula fará o comício.


 


A quadra da escola está sendo reformada para a festa em um ritmo frenético. Com dinheiro do comitê da reeleição, as paredes estão sendo pintadas de azul, os cabos elétricos foram trocados, os buracos no teto de zinco estão sendo fechados com telhas de amianto, novas calhas de água e uma rampa de acesso ao palco estão sendo instaladas às pressas.


 


Grafiteiros preparam um gigantesco painel para emoldurar o palanque, onde Lula vai se encontrar com estrelas do movimento hip-hop, do funk e outras expressões da juventude negra e pobre – 1.500 convidados de todo o país.


 


Segurança
A rampa é uma exigência da segurança presidencial, que está mais preocupada com o controle da multidão do que com a vizinhança do tráfico. Apenas uma porta estreita leva ao palco e só um portão duplo de ferro, quase caindo, conduz à área de 3.800 metros quadrados onde se espera reunir cinco mil pessoas.


 


Os serviços militares de inteligência detectaram que o tráfico vai se recolher durante a visita do presidente, por cálculo estratégico. Além disso, a quadra da escola, em frente ao batalhão da PM, não é o local preferido dos traficantes. “É até mais fácil trabalhar em áreas como essas. Os próprios criminosos tratam de evitar incidentes, temendo as consequências futuras de uma reação”, disse à Reuters um dos responsáveis pela segurança do Planalto.


 


“O presidente pode vir na boa porque ninguém aqui vai dar vacilo. Nem fogos o pessoal vai soltar, não vão entrar nessa roubada”, concorda Luiz Artur dos Santos, presidente do Bloco Carnavalesco Unidos do Coroado.


 


Terra do funk
Artur deve saber do que está falando. A quadra do Coroado promove os mais animados bailes funks da região, nos quais os traficantes das bocas de fumo de CDD (como os moradores abreviam o nome do lugar) se misturam aos jovens e se divertem nos fins de semana.


 


De bermudas justas e sandálias de borracha, como quase 100% dos homens de CDD, Artur conversava com vizinhos, na tarde de quinta-feira, sobre policiais e bandidos, em frente a um dos pequenos edifícios de cinco andares, sem elevadores, na parte da favela conhecida como “os apês”.


 


Os prédios, com apartamentos de um e dois quartos, foram erguidos em 1967, um ano depois que moradores dos morros do Rio, vítimas de enchentes, foram exilados para a nova favela. Num conjunto habitacional semelhante, em Cidade Alta, longe da CDD, foram feitas as locações do filme de Fernando Meirelles.


 


Polícia e bandido
A facção criminosa Comando Vermelho (CV) controla isoladamente o tráfico no local, o que pelo menos evita conflitos entre bandos rivais, comuns em outras favelas do Rio e de grandes cidades brasileiras. “Aqui só há guerra quando a polícia entra”, relata Rodrigo Felha, 27 anos, militante da Central Única das Favelas (Cufa), uma organização social inspirada no hip-hop e estimulada por seu mais famoso líder, o rapper MV Bill.


 


A polícia entra – quando entra – em camburões imundos que contrastam com o aspecto geral de limpeza da rua principal de CDD, na região oposta aos “apês”. Pela “principal” também entram carrões vindos da Barra e da Zona Sul, transportando a clientela mais rica das bocas de fumo. Logo na esquina, uma pichação no muro da farmácia adverte: “O verdadeiro objetivo da guerra é a paz.”


 


De janeiro a junho deste ano, 17 pessoas morreram em tiroteios; 13 do lado dos bandidos, quatro do lado da polícia. Foram registrados 54 homicídios, 798 casos de lesões corporais e encontrados cinco cadáveres na área. Da média mensal de 800 ocorrências no 42o. Distrito Policial, responsável por CDD, há apenas 11 registros de apreensão de drogas por mês.


 


“Se eu encontrar o Lula, vou dizer a ele pra acabar com a mineira”, diz G., 38 anos, que pede para não ser identificado. Ele se refere aos grupos de extermínio conhecidos como “polícia mineira”, que atuam nas favelas. “Tem que pôr a Polícia Federal pra acabar com os policiais bandidos”, sugere.