Diretores e funcionários da Febem são condenados por tortura

Seis anos depois de praticarem um espancamento generalizado contra dezenas de internos do Complexo Raposo Tavares, dez monitores e quatro profissionais com cargo de chefia da Febem recebem condenação histórica da Justiça.

Rodrigo, Jorge, Fábio, Thiago, Renato, Felipe, Dorival, Jonathas, Leandro, Eduardo, Vanderelei, Danilo, Michel, Samuel, Roberto, José Augusto, Cleiton. Ao todo, pelo menos 38 adolescentes – vários não foram identificados – vítimas de violência praticada por agentes do Estado: funcionários e diretores da Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) que, em 2000, durante dias, submeteram os internos da Unidade 27 do complexo Raposo Tavares a um intenso sofrimento físico e mental como forma de aplicar um castigo pessoal a cada um dos jovens. Funcionários do complexo Franco da Rocha também participaram do crime.


 



Depois de seis anos, eles foram condenados à maior pena já aplicada pela prática de tortura no Brasil. Francisco Gomes Cavalcante, assessor do Gabinete da Presidência da Febem – à época ocupada por Benedito Duarte – e Antônio Manoel de Oliveira, diretor do Complexo Franco da Rocha, foram condenados a 87 anos de prisão. Dez monitores receberam a pena de 74 anos. E os diretores do Complexo Raposo Tavares, Margarida Maria Rodrigues Tirollo e Flávio Aparecido dos Santos (responsável pela Unidade 27), receberam pena de dois anos por terem se omitido diante da tortura praticada. Todos perderam seus cargos. Esta semana, o Ministério Público recorreu da sentença, pedindo um agravamento das penas e a condenação de outros seis réus que foram absolvidos.


 



A sentença do juiz Marcos Zilli, da 15ª Vara Criminal da Capital – um documento de 93 páginas – descreve cenas de profunda violência e humilhação ocorridas entre os dias 14 e 22 de novembro de 2000. Durante um procedimento de revista dos internos, realizada em virtude de sucessivas fugas da unidade nos dias anteriores, os funcionários da Febem, empunhando pedaços de pau, barras de ferro e cassetetes de borracha, passaram a agredir todos os adolescentes, sem qualquer distinção.


 



O depoimento do funcionário Pedro Lourenço, que estava na Raposo Tavares no momento e tentou impedir as agressões, é enfático neste sentido. Segundo ele, os funcionários invadiram a sala onde os adolescentes estavam reunidos e já foram puxando de dentro da roupa, pedaços de pau e cassetetes de borracha. Quando Lourenço viu que a maioria dos adolescentes estava sentada de costas para os funcionários, em via de espanca-los, pulou sobre os internos sentados a sua frente para tentar protegê-los. Gritou para os agressores: “Pára, pára, não tem necessidade disso”. Lourenço acabou apanhando junto com os jovens e foi arrastado para fora da sala, onde continuou a agressão.


 



Alguns internos que se encontravam em seus quartos também foram agredidos. O adolescente Jackson Oliveira, por exemplo, foi espancado por um funcionário com um pedaço de pau no quarto número 3. Pedro Lourenço também tentou impedir a violência e, neste caso, foi impedido pelo próprio diretor da Unidade 27, Flávio Aparecido dos Santos, que disse: “Não se intromete, deixa que eles resolvem isso daí”. Diante da ordem do diretor, Lourenço foi obrigado a se calar.


 



“As agressões, além de indiscriminadas, foram intensas, covardes e desproporcionais. Com efeito, mesmo rendidos, os adolescentes continuaram sendo alvos de agressões perpetradas com pedaços de madeira e ferro”, afirmou o juiz Marcos Zilli. “O que era para ser uma revista acabou se transformando em um espancamento generalizado promovido por funcionários”, descreveu.


 



Após o primeiro espancamento, realizado por volta das 23h, os funcionários determinaram que os adolescentes permanecessem somente de cuecas, sentados com a cabeça entre os joelhos e a mão na nuca. Todos foram levados então para o pátio, que se encontrava molhado por conta da chuva, onde foram novamente vítimas de inúmeras ofensas e agressões individuais. Às 3h da manhã, no caminho de volta para seus quartos, os jovens foram submetidos ao chamado “corredor polonês”. E em seus quartos ficaram de cuecas, sem roupas ou cobertores, até o dia seguinte.



 


Enquanto isso, os diretores do complexo, Margarida Maria e Flávio Aparecido, permaneceram na sala da administração da unidade. Assim, além de não evitarem as agressões, não tomaram qualquer providência para que os fatos fossem apurados posteriormente. Nos três dias que se seguiram, os internos permaneceram trancados, sem que tomassem banho, somente tendo autorização para saída por três vezes, o que os obrigou a urinar em frascos de refrigerantes e a defecar em baldes.


 



Quando os funcionários do turno diurno voltaram ao trabalho no dia 16 de novembro – após o feriado do dia 15 – encontraram os adolescentes trancados em suas celas, com suas atividades regulares suspensas. Várias roupas recolhidas dos adolescentes apresentavam vestígios de sangue e fezes, o que despertou a preocupação e desconfiança de um espancamento generalizado. Mesmo impedidos de manter qualquer contato com os internos, alguns funcionários conseguiram conversar com adolescentes pelas grades dos dormitórios.


 



No dia 22 – oito dias depois do espancamento generalizado –, em virtude de uma denúncia anônima, o Ministério Público realizou uma inspeção na unidade e encontrou 38 internos com equimoses, escoriações e hematomas em diversas partes do corpo, sobretudo na região lombar, dorsal e nos braços. Os exames periciais realizados dez dias após os fatos apuraram inúmeros ferimentos absolutamente compatíveis com o histórico das agressões narradas pelos adolescentes.


 



“É inegável que a situação da unidade nos dias anteriores aos fatos e no próprio dia 14 era de total descontrole. Fugas em massa, confrontos e atos de indisciplina constituíam o quadro reinante. Por esse prisma, de fato, se fazia necessária a adoção de medidas eficazes e urgentes que pudessem restabelecer o senso de ordem. Mas ainda que a intenção inicial fosse de apenas efetuar uma revista, é certo que o reforço recaiu justamente sobre funcionários afamados, dentro dos próprios quadros da Febem, pela truculência”, explicou o juiz que condenou os réus. “A forma como os atos foram seguidamente praticados denotam uma vontade comum, que extrapolou o senso do mero resgate da disciplina”, afirmou Zilli.


 



Para o juiz de direito, o que aconteceu não pode, definitivamente, ser caracterizado como meros maus-tratos ou crime de lesões corporais. Ele acredita que os funcionários da Febem, inconformados pelo clima de indisciplina dos dias anteriores, pretenderam restabelecer o que para suas óticas correspondia ao senso de ordem e hierarquia. Para tanto, adotaram a tática da imposição da força e do sofrimento. Daí a forma pela qual as agressões foram executadas.


 



“Esta sucessão de agressões, que não podem ser partilhadas entre si, demonstram que o objetivo não era o da mera contenção de ânimos. Em realidade, a intenção foi a de impor um sofrimento físico que pela forma de execução – golpes de madeira e ferro nas costas, braços, mãos e pernas, tapas, “corredor polonês”, permanência no chão molhado – e condições pessoais das vítimas – adolescentes entre os quinze e os dezessete anos –os qualifica como intenso”, afirmou Marcos Zilli.


 


Fonte: Agência Carta Maior