Movimento Okupa cria alternativas anticapitalistas na Espanha

Por Bruno Fiúza, especial para o Brasil de Fato, de Barcelona (Espanha)


No final dos anos 1980, Yulia era uma jovem que dividia apartamento com mais três amigos em Barcelona, na Espanha. Eles moravam no Raval, um antigo bairro operário no centr

Naquela época, chegavam a Barcelona notícias de ocupações de imóveis abandonados, que eram transformados em centros de atividade política e cultural alternativa, chamados squatts. Aconteciam principalmente em países como Alemanha, Holanda, Inglaterra e Itália, mas também em outras regiões da Espanha, como o País Basco.



Sem possibilidades de arcar com os gastos de um novo aluguel e inspirados pelas notícias que chegavam de longe, os quatro amigos decidiram ocupar uma casa vazia no município de Esplugues, região metropolitana de Barcelona.



Não tinham intenção política, só queriam um lugar para morar. Depois de duas tentativas que terminaram em despejos, Yulia e seus amigos voltaram a entrar em uma antiga casa abandonada no bairro barcelonês de Gracia. Era uma construção do começo do século 20, que havia servido de quartel-residência para os oficiais da Guardia Civil, a polícia espanhola, até o início dos anos 1980. Fora abandonada após um grupo armado – chamado Terra Lliure (Terra Livre, em catalão), que lutava pela independência da Catalunha, região onde está Barcelona – colocar duas bombas na base policial e deixar partes do imóvel em ruínas.



Kasa de la Muntanya



O antigo quartel foi rebatizado e se tornou uma residência coletiva que, logo depois de ocupado, já contava com cerca de 30 moradores. Nascia a Kasa de la Muntanya (Casa da Montanha). O grupo que ocupou a casa só queria um espaço para morar, mas começou a desenvolver atividades políticas no Ateneu Libertário de Gracia, um centro cultural montado nos anos 1960 por militantes libertários, herdeiros da tradição anarco-sindicalista catalã e dos ateneus do começo do século. A idéia era criar um espaço de intercâmbio cultural entre os trabalhadores nos bairros.



Seguiam a linha política dos anarquistas de 1936, que, ao estourar a Guerra Civil Espanhola, defenderam Barcelona e lutaram contra as tropas do general Francisco Franco, até serem derrotados, três anos depois. Franco, em regime ditatorial, governou a Espanha entre 1939 e 1975, quando morreu. A experiência anarco-sindicalista, durante os primeiros meses da Guerra Civil, fomentou na Catalunha um processo de coletivização de fábricas, transformando Barcelona no epicentro da Revolução Espanhola, que completou 70 anos em 19 de julho.



No início, a Kasa de la Muntanya estava em péssimas condições. Os estragos causados pelas bombas e o abandono de quase uma década haviam destruído o encanamento e o sistema elétrico, além de comprometer a estrutura das paredes. Os moradores assumiram a tarefa de reconstruir o local. Transformaram o que antes eram escombros em uma casa com luz, água e quartos habitáveis. Sempre por meio do trabalho coletivo, tomando as decisões em assembléias.



Projeto político



De uma ação por moradia a um projeto político. Essa é a diferença entre uma ocupação com “c” e a okupação com “k”. A explicação é de Joan e Gemma, que integram o coletivo do Kasal Okupat del Prat (KOP), um Centro Social Okupado na cidade de El Prat de Llobregat, na região metropolitana de Barcelona. Ao contrário da Kasa de la Muntanya, a KOP nasceu em 2003 com o objetivo explícito de ser um espaço para atividades políticas e culturais alternativas.



“A ocupação com “c” reivindica apenas o direito à moradia. A okupação com “k”, além da moradia, reivindica várias outras coisas. É mais politizada. É preciso diferenciar as pessoas que entram em casas vazias para morar das que reivindicam essas okupações como um ato político para tornar público um problema social”, explica Joan. Na okupação, as pessoas experimentam novas formas de se organizar coletivamente, não comerciais e não institucionais.



É uma alternativa à sociedade capitalista, na prática. São auto-gestões, que objetivam a auto-subsistência. Nesse sentido, nenhuma “okupação” supera a comunidade “rururbana” – rural e urbana – de Can Masdeu, um antigo leprosário situado em uma montanha perto de Barcelona. Foi “okupado” em 2001 por 8 pessoas que buscavam um espaço para organizar um encontro de ecologistas europeus.



Can Masdeu já atingiu um nível avançado de auto-suficiência. Seus moradores levam uma vida que em vários aspectos está à margem da sociedade urbana e capitalista, com abastecimento próprio da água e dos vegetais que consomem. Álvaro, um dos moradores de Can Masdeu, explica que “com a okupação você pode se permitir não gastar a maior parte do tempo trabalhando porque já não tem que pagar aluguel. Por não ter que dedicar tanto tempo trabalhando, você pode dedicar mais tempo a fazer o que gosta”.



Combate à especulação imobiliária



Uma forma de luta contra a especulação imobiliária, as “okupações” hoje giram em torno de 150, em toda Barcelona, incluindo casas e centros sociais. Desde o final da década de 1980, a prefeitura de Barcelona adota a política de transformar a cidade em uma grande vitrine mundial. Quer atrair turistas e empresários, patrocinando eventos como os Jogos Olímpicos de 1992. A cidade se metamorfoseia. Antigos bairros industriais são substituídos por paisagens pós-modernas.



A remodelação da cidade expulsa os moradores dos bairros populares, transformados em áreas nobres. Os especuladores imobiliários aproveitam a crescente demanda de imóveis e aumentam o preço dos aluguéis, que ficam inacessíveis para os jovens. O movimento okupa resiste à reestruturação econômica e territorial “okupando” imóveis vazios. Uma vez “okupado”, um imóvel particular só pode ser desocupado após um processo judicial, onde são ouvidos tanto os “okupas” como os proprietários. Edifícios públicos podem ser desalojados, sem julgamento.



O tempo de vida de uma “okupação” depende de quando o proprietário reclama a propriedade a quando é expedida a ordem de despejo, e isso muitas vezes pode durar meses ou anos. Terminados os recursos pela via judicial, passa-se à resistência por meio da ação direta contra a polícia, para defender a “okupação” e reivindicar a função social da moradia, considerada mais importante do que o direito à propriedade privada.



Movimento sem rótulo



Não há um movimento “okupa”. Há vários. Nenhuma generalização é possível quando se trata de “okupações”. Não se trata de um movimento unitário e qualquer tentativa de ver uma organização hierárquica e centralizada é pura perda de tempo. Há diferentes centros sociais, com suas práticas e visões de mundo próprias. Os vínculos são feitos entre grupos de afinidade que trabalham temas de interesse comum.



Tanto que não existe uma ideologia do movimento. “Em Barcelona, nunca quisemos identificar a okupação com uma determinada ideologia, como aconteceu em outros lugares da Espanha e da Europa. Todos os que precisam têm o direito de okupar. O trabalho coletivo depende da afinidade entre as pessoas”, explica Yulia, da Kasa de la Muntanya. Ela acredita que antes de ser um projeto político a “okupação” surge da necessidade de espaços “onde pessoas, com inquietudes diferentes das que nos vendem continuamente, possam realizar seus projetos. É uma ação direta contra a propriedade privada e a especulação”.



Práticas libertárias



As “okupações” baseiam seu funcionamento na autogestão e têm a assembléia como prática política por excelência. Por isso, alguns, como Joan, do Kasal Okupat del Prat, acreditam que há uma clara influência da tradição libertária e que o movimento seria um novo ciclo desta luta. Mas nem todos estão de acordo.



Álvaro, da Can Masdeu, é um dos que não se identificam com esse rótulo: “A okupação é muito heterogênea, existem muitas formas de fazer as coisas. Ninguém vai te dar uma definição. Mas em geral eu não me identifico com isso de ‘libertário’, ‘anarquista’. A sensação que tenho é de que a sociedade, pelo menos a européia e a espanhola, vem sofrendo transformações que fazem com que muitas formas antigas de militância já não funcionem muito. Há uma necessidade de se reinventar, e o que me interessa é tudo aquilo que esteja experimentando com coisas novas”, afirma.



Ideologias à parte, o fato é queas experiências sociais das “okupações”, baseadas em uma visão de mundo distinta da dominante, não permitem mais a quem as vive estar no mundo da mesma maneira que antes. Depois de dois filhos e mais de 17 anos “okupando”, a professora primária Yulia é a primeira a reconhecer isso. “Quando você vive assim, de maneira comum com tantas outras pessoas, aprende a pensar por você mesma e a tomar suas decisões. Isso te faz ganhar uma liberdade que você acaba transmitindo por onde passa. Isso acontece quando você aprende a viver de outra maneira, e ainda por cima vê que é muito mais gratificante do que estar aí enjaulado em um apartamento com seu marido, com seus filhos, com sua televisão, com seu carro e só”, explica.