Vale-Usiminas: das privatizações ao monopólio 

A complexa entrada da Vale no comando da Usiminas é um operação inserida na tendência mundial de monopoplização do setor siderúrgico.

Por Osvaldo Bertolino


 



A forma estrepitosa e vazia como o noticiário econômico anunciou a entrada da Companhia Vale do Rio Doce — a Vale, como é mais conhecida — no controle da siderúrgica Usiminas, formado pela japonesa Nippon Steel, pelos grupos Votorantim, Camargo Corrêa e Bradesco e pelos funcionários da empresa por meio da chamada Caixa dos Empregados, pode ser contabilizada como mais uma manifestação dos ecos das privatizações da “era” neoliberal. A Vale, que tem uma esquisita arquitetura de comando (leia a respeito no artigo “Vale do Rio Doce: uma multinacional verde-amerela desbotada”, clicando no seguinte endereço: http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=9196), venderá ações da Usiminas para a Nippon Steel, para a Votorantim e para a Camargo Correa.


 



Mesmo fora do bloco de controle, o emaranhado jurídico tecido para a privatização da mineradora permitia que ela fosse a maior acionista da Usiminas — que ficou famosa ao inaugurar o programa brasileiro de privatizações, em outubro de 1991. Sua venda, ainda no governo do presidente Fernando Collor de Mello, entregou a grupos privados além do patrimônio físico da empresa e sua alta tecnologia um dos melhores corpos técnicos do setor siderúrgico brasileiro pela bagatela US$ 1,941 bilhão.


 



O primeiro golpe do martelo neoliberal no patrimônio público nacional entrou para a história como símbolo de uma “era” contestada por multidões nas ruas. As privatizações foram o centro dos enfrentamentos entre as forças da transformação e da reação nos anos 90. Era o desdobramento da encruzilhada com que o país se deparou após a crise que levou ao fim da ditadura militar. Vivemos, na segunda metade da década de 80, um cenário marcado ao mesmo tempo pelo desejo da maioria dos brasileiros de progredir e pela reação das forças do conservadorismo.


 



Sujeito engravatado


 



Era visível que se em 1989 não fosse eleito um governo comprometido com um desenvolvimento independente, que abrisse clareiras para o progresso efetivo, o país submergiria na degradação econômica, política e social. Essa previsão, confirmada pelos governos de Collor e de Fernando Henrique Cardoso (FHC), era decorrência de uma lógica econômica em essência progressista que permeou o século 20, sustentada basicamente por grandes investimentos estatais. Daí o simbolismo que a privatização da Usiminas adquiriu. No dia da sua venda, uma multidão de patriotas cercou a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, local da realização do leilão.


 



A foto de um sujeito engravatado sendo atingido por um pontapé desferido por um manifestante correu o mundo e retratou a simbologia dos dois lados envolvidos naquele processo — nas palavras de Barbosa Lima Sobrinho, então presidente Associação Brasileira de Imprensa (ABI), os partidários de Joaquim Silvério dos Reis e de Tiradentes. Causalmente, a sede da Usiminas fica na terra de Tiradentes, em Ipatinga, Estado de Minas Gerais. A cidade de 200 mil habitantes surgiu e cresceu em torno dos fornos e laminadores da empresa. Nos seus bons tempos de empresa estatal, a Usiminas construiu o aeroporto de Ipatinga, 20 clubes de lazer, 10 mil casas, uma rede de supermercados, hotéis, igrejas, a melhor escola, o melhor hospital… Quem trabalhava na Usiminas sentia-se meio dono da cidade. E meio dono da própria Usiminas. Ainda é um pouco assim.



 


Sustentáculo dos benefícios


 



Desde a privatização, os funcionários são proprietários de 10% do capital da empresa. ''A Usiminas tornou-se uma empresa cidadã, que busca o lucro, mas tem responsabilidades sociais'', diz Rinaldo Campos Soares, presidente da empresa que, segundo as notícias, tem bom relacionamento com os trabalhadores da Usiminas e por isso virou alvo dos controladores privados da Vale. Todo ano, ele comparece a um grande churrasco oferecido aos funcionários. Por meio da fundação da empresa, ele patrocina o Ipatinga Futebol Clube e freqüentemente é visto batendo bola com os trabalhadores no campo do time. Rinaldo — como é mais conhecido — é membro do conselho de administração da empresa por indicação dos trabalhadores.


 



Ele é considerado hoje, dizem, o sustentáculo dos benefícios que os trabalhadores conquistaram ao longo da história da empresa. Nos finais de semana, os funcionários e seus dependentes se reúnem nos clubes da empresa para o futebol, a piscina e o churrasco. Cerca de 90% dos trabalhadores têm casa própria, comprada ou construída com financiamento próprio da Usiminas, com juros reduzidos. As compras do mês são feitas num dos seis supermercados mantidos pela Cônsul, a cooperativa de consumo da Usiminas. O débito vai direto para o salário. A assistência médica também é considerada boa. Um exemplo disso é a saúde odontológica da cidade.



 


Um sobrevivente


 



A Organização Mundial de Saúde (OMS) registra uma média de 4,9 cáries por brasileiro com idade até 12 anos. Nos filhos de funcionários da Usiminas, o índice é de 0,7. (Para se ter uma idéia: na Dinamarca é 1,3.) A marca é o resultado do trabalho do Centro Integrado de Odontologia, uma policlínica com 27 consultórios em Ipatinga. Os filhos dos funcionários são acompanhados desde que nascem. De tempos em tempos, os pais são avisados que está na hora de levar o filho ao dentista para uma visita preventiva. Essa rotina se repete até a adolescência. O funcionário pode optar por três tipos de plano. No básico, ele paga R$ 6 por mês, mais R$ 3 por dependente, e tem direito, entre outras coisas, a realizar até transplantes na rede credenciada. No plano mais sofisticado, com custo médio de R$ 60 por mês para uma família de quatro pessoas, o funcionário tem livre escolha de hospital e médico.


 



Rinaldo é, antes de tudo, um sobrevivente. Ao longo de uma carreira de 35 anos na Usiminas — 16 deles como comandante da empresa —, já atravessou vários períodos turbulentos. E carrega nas costas o peso de ter sido o responsável por dirigir a empresa durante o processo de privatização e de ver a Usiminas envolvida no escândalo fabricado pela mídia que recebeu o nome de “mensalão”. Rinaldo resistia à entrada da Vale no bloco de controle da Usiminas. A queda-de-braço começou há alguns anos, mas se intensificou no final de 2005, quando o presidente da Vale, Roger Agnelli, ligado ao banco Bradesco, decidiu intervir pessoalmente na disputa. A estratégia de Agnelli foi tentar convencer os demais acionistas da Usiminas de que a presença da Vale no bloco de controle daria um novo fôlego à companhia.


 



Monopolização mundial


 



Para articular a reestruturação societária, Agnelli encontrou-se com representantes dos grupos Bradesco, Votorantim e Camargo Corrêa. No início deste ano, em meio às negociações sobre o preço do minério de ferro no mercado mundial, Agnelli discutiu o assunto no Japão com os executivos da Nippon Steel. O jogo de persuasão parece ter funcionado. Aos poucos, Rinaldo foi ficando cada vez mais isolado e seus únicos aliados declarados eram os funcionários da Usiminas. Ele parece ser uma pedra no caminho dos planos monopolistas que a Vale tem para a siderúrgica mineira. As negociações em torno do novo comando da Usiminas incluem, por exemplo, a construção de uma usina de placas de aço com capacidade de 5 milhões de toneladas.


 



O projeto já estava nos planos da siderúrgica, mas não havia saído do papel por falta de financiamento. O plano é que a nova usina compre todo o seu minério exclusivamente da Vale e se torne fornecedora de outras siderúrgicas estrangeiras. A iniciativa na Usiminas não é a única aposta da Vale para dar fôlego ao seu projeto monopolista. Recentemente, a empresa fechou uma parceria com a alemã ThyssenKrupp para construir uma nova siderúrgica no Rio de Janeiro, a Companhia Siderúrgica Atlântica (CSA), na qual a mineradora tem 10% de participação. Trata-se de uma tendência e um perigo para a soberania nacional — sobretudo porque o setor passa por uma fase de monopolização mundial.



 


Potencial destrutivo


 



Depois que o grupo indiano Mittal anunciou a compra da Arcelor, em junho passado, as siderúrgicas de todo o mundo se moveram na mesma direção. A formação de uma empresa dessa magnitude deixou a concorrência para trás — a Nippon Steel, segunda colocada no ranking, produz 30% do volume da líder. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS), a expectativa é que a capacidade de produção das empresas brasileiras aumente dos atuais 36 milhões de toneladas por ano para 43 milhões de toneladas até 2010. Nessas movimentações da Vale, é possível ver nitidamente as mãos dos banqueiros.


 



O banco Bozano, Simonsen foi um dos líderes do processo de compra de estatais brasileiras, arrematando empresas como Usiminas, Cosipa, Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) e Embraer. No comando do banco estava Paulo Ferraz, tido e havido como amigo íntimo de Pedro Malan, o poderoso ministro da Fazenda de FHC. Ferraz era considerado um bom articulador: a delicada costura dos consórcios vencedores em seis leilões de privatização leva a sua assinatura. ''Foi obra dele'', disse certa vez Mário Henrique Simonsen, que foi ministro da Fazenda durante a ditadura militar. Simonsen foi sócio do banqueiro Júlio Bozano, que criou um dos maiores conglomerados do país e acumulou uma fortuna estimada em US$ 2,2 bilhões. Como se vê, o programa de privatizações da “era” neoliberal ainda não mostrou todo o seu potencial destrutivo para a economia nacional.