Advogado de Berzoini pede retratação da Folha por “barriga” no caso do dossiê
Em carta ao ombudsman da Folha de S.Paulo, o advogado Fernando Tibúrcio, contratado pelo presidente licenciado do PT, Ricardo Berzoini, questiona a ausência de retratação do jornal diante de uma “barriga” cometida pelo repórter Kennedy Alencar, em repo
Publicado 28/11/2006 18:39
“Barriga”, no jargão jornalístico, significa notícia falsa. No domingo, em manchete principal, a Folha anunciava que “Para a PF, Berzoini mandou comprar dossiê”. No dia seguinte, o relatório parcial apresentado pela PF à Justiça do Mato Grosso do Sul não apresentava Berzoini como mandante da compra do dossiê. Toda a imprensa noticiou o fato, mas a Folha não fez o desmentido.
“Os bem informados leitores da Folha certamente se perguntaram se o jornalista teria sozinho encontrado o fio da meada que tantos brasileiros estão procurando há dois meses ou se teria, num sentido diametralmente oposto, dado causa a um dos mais graves erros da história recente da imprensa”, escreve o advogado.
Na carta, Tiburcio relata com detalhes todos os acontecimentos e questiona o silêncio da Folha diante do “tiro n´água” do último domingo.
Leia a íntegra da carta:
Senhor Ombudsman,
A edição do último domingo da Folha de S.Paulo estampou, em manchete de primeira página, que “Para PF, Berzoini mandou comprar dossiê”. Três manchetes internas nas páginas A4, A6 e A8 anunciavam o “furo” obtido pelo jornalista Kennedy Alencar junto a fontes policiais e ao Ministério Público e “antecipavam” as conclusões do relatório parcial que acaba de ser entregue a Justiça Federal do Mato Grosso.
Ao lerem a manchete da primeira página – não corroborada por outros veículos da imprensa, que se limitaram a “cozinhar” uma reportagem que muito provavelmente julgaram ter pouca credibilidade, sempre em poucas linhas e sem nenhum destaque –, os bem informados leitores da Folha certamente se perguntaram se o jornalista teria sozinho encontrado o fio da meada que tantos brasileiros estão procurando há dois meses ou se teria, num sentido diametralmente oposto, dado causa a um dos mais graves erros da história recente da imprensa.
Antes de mais nada quero, por não ser este o espaço apropriado, deixar claro que não vim aqui clamar pela inocência do meu cliente. Deixo a cargo do tempo e das investigações a incumbência de explicitá-la.
Mas, colocando novamente o bonde nos trilhos, estou certo de que os leitores do jornal têm uma opinião claramente formada quanto ao que foi tão destacadamente trazido ao conhecimento público pelo jornal de maior circulação no País, no dia da semana com maior número de leitores e – coincidência, imagino – justamente quando se realizava a reunião do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores. Até porque boa parte dos leitores da Folha tem o hábito de ler outros jornais, de buscar a informação onde quer que ela esteja, e tem uma suficiente noção dos princípios que norteiam a produção de um jornal com a importância da Folha de S.Paulo. Isso por si só traça o perfil do leitor da Folha. Desafortunadamente, um perfil que parece ter sido ignorado ou ao qual fez pouco caso o jornalista Kennedy Alencar.
Esse mesmo leitor, lamentavelmente, ainda não pôde ver esclarecido o reprovável episódio da compra do dossiê. Algo que parece que só o jornalista Kennedy Alencar viu.
Não é meu propósito especular se Kennedy Alencar vislumbrou uma luz no fim do túnel com seus próprios olhos ou através dos olhos de outros, quem estaria por trás da notícia ou a quem aproveitava o esfolamento político do deputado Ricardo Berzoini. Nem conjecturar se os nomes de Daniel Dantas ou de outros personagens aparecem nas matérias como eco de mais uma teoria conspiratória (a propósito, a informação de que Dantas estaria sendo investigado não foi confirmada pelo superintendente da Polícia Federal em Mato Grosso, Daniel Lorenz, em entrevista concedida ontem a Paulo Henrique Amorim). Ou ainda advogar a tese um tanto nebulosa que ouvi de pelo menos um jornalista de que Kennedy Alencar teria propositalmente deixado vazar um, no jargão jornalístico, “balão de ensaio”. Sou particularmente avesso a especulações e radicalmente avesso a irresponsabilidades.
O que me interessa, sendo alguém que participou ativamente dos acontecimentos que antecederam a publicação da notícia, é discutir se o jornalista Kennedy Alencar se ateve aos princípios do bom jornalismo e dessa forma, pelas suas mãos de ombudsman, possibilitar que uma crítica interna circule pela Redação e em última análise contribua para o aprimoramento constante por que passa o jornal. Aliás, a Folha é um jornal que considero, antes de mais nada, sério. Afinal, é de amplo conhecimento que a Folha foi o primeiro veículo a normatizar a concepção de jornalismo, hoje condensada no Novo Manual da Redação. E é justamente em razão dessa seriedade que tomo a liberdade de escrever-lhe estas linhas. Fosse o contrário, não desperdiçaria o meu tempo.
Me interessa também saber se os princípios éticos do jornal contidos no Manual foram integralmente respeitados. Se o que está escrito no verbete “ética” foi, sem ressalvas, observado (de acordo com o Manual, o jornalista “Deve procurar conhecer todas as versões de um fato e registrá-las com fidelidade”; e mais, “Ele tem responsabilidade moral pelas informações que coleta e transmite, as quais devem ser sempre exatas e comprovadas”), afinal sou daqueles que apreciam o jornalismo investigativo bem feito, livre e responsável. O Manual apropriadamente ressalta que “O jornalista deve assumir compromisso apenas com a isenção na cobertura dos fatos, a liberdade de expressão, o direito de informar e o acesso do leitor a toda informação ou opinião importante”. É exatamente isso que deve nortear o jornalismo sério.
Não discuto a faculdade que tem o jornalista Kennedy Alencar de formular hipóteses e de buscar incessantemente a confirmação das mesmas. Isso é legítimo, desde que a confirmação se dê com base em enfoques e abordagens consistentes. O que não é legítimo é atribuir a hipótese a alguém ou a quem explicitamente dela não comunga. Ou, não há como não levantar essa assertiva, considerar como verdade absoluta a opinião de fontes ou quase fontes que se prestariam, no máximo, para dar a partida para o trabalho jornalístico e que prescindiriam, necessariamente, do cruzamento com as opiniões de fontes mais confiáveis.
Passo aos fatos e me aterei, exclusivamente, a eles. Adianto que os fatos levam à implacável constatação de que a conclusão trazida a público e “manchetada” pelo jornalista, agora de vez refutada pela divulgação do teor do novo relatório parcial, revelou-se um verdadeiro “tiro n’água”, em que pese, paradoxalmente, ter sido um tiro capaz de causar grandes danos a toda uma história de vida.
É importante que o leitor conheça como se desenrolaram os fatos. Na sexta-feira, dia 24, recebo um telefonema do deputado Ricardo Berzoini dando conta que o jornalista Kennedy Alencar estaria produzindo a citada matéria domingueira. A informação me causou estranheza, uma vez que se a linha sustentada pelo jornalista tivesse o mínimo cabimento, o natural é que o inquérito fosse remetido ao STF, já que o meu cliente, dada a sua condição de deputado federal, goza de foro privilegiado. Em razão disso, ato contínuo, liguei para o delegado Diógenes Curado, presidente do inquérito, que me informou ser totalmente improcedente a hipótese levantada.
No sábado à tarde, chega às bancas da capital paulista a edição de domingo da Folha. Mais uma vez liguei para o delegado Diógenes Curado, que reafirmou o que havia me dito no dia anterior. Nesse mesmo dia, às 20h03 (em notícia que foi atualizada às 22h25), enquanto Berzoini era, naturalmente, assediado pela imprensa, o site Último Segundo trazia a público que o superintendente da Polícia Federal em Mato Grosso não confirmara a notícia veiculada pela Folha. Às 20h45 o site G1 estampava com as devidas aspas a negativa do delegado Curado: “A polícia Federal não disse isso”. Às 22h14 o portal Terra informava que “O Delegado responsável pela investigação da compra do dossiê do PSDB, Diógenes Curado, ficou surpreso com a matéria da edição de domingo da Folha de S.Paulo em que afirma que a Polícia Federal incriminara o presidente licenciado do PT, deputado Ricardo Berzoini, de chefiar o dossiê.” A notícia ressalta ainda que, de acordo com um policial que preferiu não se identificar, “Curado teria ligado para a redação do jornal, afirmando não ter conhecimento da acusação”.
Nesse ponto, uma pausa se faz necessária: o delegado Diógenes Curado, segundo me informou, ligou ainda no sábado para o próprio jornalista Kennedy Alencar e o colocou a par da impropriedade da linha de argumentação por ele sustentada. Talvez fosse tarde demais. A edição já estava ou faltava pouco para chegar às bancas. O estrago era iminente ou já estava feito.
Não obstante a conversa mantida entre o delegado Diógenes Curado e Kennedy Alencar e a ampla divulgação do desmentido na mídia, tendo por base informações obtidas por outros veículos junto a “fontes tipo um” (“a mais confiável nos casos em que a fonte é uma pessoa”, segundo o Manual), a FolhaOnline se limitou a dizer, e somente às 23h09, que “O site do PT traz nota em que supostamente a Polícia Federal teria desmentido o teor da reportagem na edição de amanhã da Folha de S.Paulo”.
A edição de ontem do Correio Braziliense destaca, na primeira página, que a “PF diz não ter provas contra Berzoini”. A Folha, por sua vez, se manteve em silêncio. O pior de tudo é que o silêncio acabou por ocultar a existência, nunca noticiada pelo jornal, da ligação feita pelo delegado Curado para Kennedy Alencar.
Não parece lógico que um jornalista com a experiência de Kennedy Alencar – autor de reportagens dignas de nota, frise-se – tenha sido tão diligente para buscar informações junto a fontes da Polícia Federal e do Ministério Público e não tenha ao menos tentado falar com o delegado Diógenes Curado, como fizeram outros veículos da imprensa, especialmente em se tratando de uma reportagem especial (que, de acordo com o Manual, “Requer extenso e minucioso levantamento de informações”). Que critério para a hierarquização de fontes estaria sendo usado pelo jornalista a ponto de dispensar a oitiva de fonte tão importante?
Eu, particularmente – quem sabe até por ignorância ou por não ter o mesmo nível de relacionamento do jornalista – não consigo imaginar fontes, pela proximidade que tem com o cenário dos acontecimentos, mais confiáveis que a autoridade anteriormente referida. Se a fonte tivesse sido ouvida, a “barriga” (uma “notícia falsa”, tomando emprestadas as palavras do próprio jornalista) teria sido evitada, ainda que o repórter tivesse que pagar o preço da hipótese não se cristalizar.
Seja como for, parece mesmo que nem sequer houve uma tentativa de ouvir a fonte, uma vez que não há menção expressa no texto noticioso dessa circunstância, de acordo com a recomendação do Manual. Ou então houve e, embora uma reportagem especial de domingo seja normalmente produzida ao longo da semana – quando mais dias não são gastos –, incrivelmente o jornalista Kennedy Alencar não conseguiu estabelecer contato com o delegado Curado, a despeito de tantos outros o terem conseguido naquela semana – inclusive o repórter Leonardo Souza, da própria Folha – e mesmo no sábado à tarde, no calor da notícia.
Quando Kennedy Alencar deu ciência ao meu cliente de que a edição de domingo anteciparia as conclusões do relatório parcial, Berzoini informou a este que o jornal publicaria uma “barriga”, o que acabou de fato acontecendo.
Mas isso é passado. Espero sinceramente que o futuro nos contemple com uma bem vinda retratação por parte do jornal mais lido no País. Por enquanto, nem sombra dela, nada. Nem retratação impressa, nem retratação eletrônica. Nada, nada, em que pese o Manual expressamente prescrever, ao tratar da “barriga”, que “Quando a Folha erra, reconhece o erro”. Não é pedir muito. O bom jornalismo assim o recomenda.
Ao invés disso o jornalista Kennedy Alencar continua ocupando espaço nas páginas da Folha para centrar o foco em Berzoini – o que por si só não tem nada de ilegítimo –, num momento em que as investigações nitidamente – e nesse ponto a legitimidade passa a ser testada – caminham para outro rumo. Basta ver que na edição de hoje, terça-feira, numa matéria intitulada “Lula crê que Berzoini ocultou atuação na compra do dossiê”, Kennedy Alencar requenta e insiste na informação de que, “Como revelou a Folha no domingo, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal firmaram a convicção de que partiu de Berzoini a decisão de compra do dossiê”, como se as autoridades policiais estivessem falando para surdos. E vai mais além, ao afirmar que “Em conversas reservadas à época, o presidente Lula disse que estava convencido de que Berzoini mentira ou omitira dados”. Mas isso são outros quinhentos… (ou, colocando melhor as palavras, isso daria para escrever mais umas quinhentas páginas…).
Antes disso, às 21h11 de ontem, o portal do Estadão informava, tratando do relatório parcial, que “O documento não acusa o presidente licenciado do PT e coordenador da candidatura à reeleição do presidente Lula, deputado Ricardo Berzoini (SP), como o mandante da compra do dossiê, como chegou a ser cogitado pela imprensa”. Pouco depois, às 21h25, o site G1, que teve acesso ao relatório, esclarecia exatamente o mesmo. Duas horas mais cedo, às 19h21, o jornalista Paulo Henrique Amorim divulgara entrevista com o superintendente Daniel Lorenz. Ao ser questionado se Berzoini seria o mandante da compra do dossiê, Lorenz respondeu enfaticamente que “Esse tipo de conclusão, nesse momento do inquérito, quando nós remetemos ele para a justiça, consubstanciado todas as diligências num relatório parcial que foi concluído hoje pelo doutor Diógenes, essa conclusão é prematura e é precipitada neste momento. Somente ao findar das investigações nós poderemos fazer uma conclusão quanto à quem seria a pessoa que orientou a confecção de todo esse drama, a entrega desse dinheiro no hotel de São Paulo”.
Bom, chega de conversa. Para terminar, recorro mais uma vez ao Manual, que reproduz uma frase introdutória atribuída a Goethe: ''É muito mais fácil reconhecer o erro do que encontrar a verdade; aquele está na superfície, de modo que se deixa erradicar facilmente; esta repousa no fundo, e investigá-la não é coisa para qualquer um''.
Fernando Tibúrcio Peña