Direito à verdade e à justiça; lei da Anistia deve mudar

Por Hélio Bicudo e Flávia Povesa, na Folha de S. Paulo*
Por meio de inédita ação judicial contra um coronel reformado do Exército, a família Teles objetiva obter a declaração da ocorrência de tortura nas dependências do DOI-Codi de São Paulo e

Leis de anistia, direito ao luto, direito à verdade e justiça de transição (“transitional justice”) são temas que emergem com especial destaque na agenda contemporânea de direitos humanos da América Latina.



Em 2005, decisão da Corte Suprema de Justiça da Argentina considerou que as leis de ponto final (lei nº 23.492/86) e de obediência devida (lei nº 23.521/87) -ambas impediam o julgamento de violações cometidas no regime repressivo de 1976 a 1983- eram incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que tem permitido o julgamento de militares por crimes praticados durante a repressão.
No Chile, o decreto-lei nº 2.191/78 -que previa anistia aos crimes perpetrados de 73 a 78, na era Pinochet- também foi revogado por decisão do sistema interamericano, por violar o direito à verdade. O ex-ditador chileno vive sob prisão domiciliar.



No Uruguai, recente decisão condenou o ex-ditador Juan María Bordaberry. E, no Peru, por sentença da Corte Interamericana, leis de anistia também foram invalidadas, com fundamento no dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos.



A justiça de transição lança o delicado desafio de romper com o passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática. O risco é que as concessões ao passado possam comprometer e debilitar a busca democrática, corrompendo-a com as marcas de um continuísmo autoritário. Justiça e paz, justiça sem paz e paz sem justiça são os dilemas da transição democrática.



Na experiência brasileira, se destacam a Lei de Anistia (lei nº 6.683/79) e a lei nº 9.140/95, que reconheceu como mortos os desaparecidos políticos e estabeleceu indenização aos seus familiares. Há que se romper com a insustentável interpretação de que, em nome da conciliação nacional, a lei de anistia seria uma lei de “duas mãos”, a beneficiar torturadores e vítimas. Esse entendimento advém da equivocada leitura da expressão “crimes conexos” constante da lei. Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas que se encadeiam em suas causas. Não se pode falar em conexidade entre fatos praticados pelo delinqüente e pelas ações de sua vítima.



A anistia perdoou estas, e não aqueles; perdoou as vítimas, e não os que delinqüem em nome do Estado. Ao direito à justiça conjuga-se o direito à verdade e ao acesso aos arquivos, que, no Brasil, remanescem negados. A lei nº 11.111/05 prevê que o acesso aos documentos públicos classificados “no mais alto grau de sigilo” poderá ser restringido por tempo indeterminado ou até permanecer em eterno segredo em defesa da soberania nacional. É flagrante a violação dessa lei aos princípios constitucionais da publicidade e da transparência democrática.



O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas.



Sob a ótica republicana e democrática, a releitura da Lei de Anistia e o direito à verdade rompem com o pacto do silêncio e com uma injustiça continuada. Lançam luzes à dimensão sombria de nossa história, na defesa dos direitos à justiça, à verdade e à memória individual e coletiva.



* Hélio Bicudo, advogado e jornalista, ex-vice-prefeito de São Paulo, presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos; Flávia Povesan,  professora doutora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP, procuradora do Estado



Fonte: Folha de S. Paulo